Por Xico Sá
“Ai naquele maior barraco, ele, rapaz acadêmico, vem com uma citação de Deleuze (o Gilles, filósofo francês) pra cima de mim, vê se pode uma coisa dessas?!!”. Pior é que pode. Sim, como o desabafo da amiga N. não nos deixa mentir, intelectual (ou metido a) bota Delleuze & Sartre até no meio de uma D.R., a sigla como é conhecida hoje (graças às meninas do 02 Neurônio) a mitológica “Discussão de Relação”.
Embora seja escritora de mancheia e conhecedora do mundo afrancesado, N. não se conteve diante do esnobe mancebo-dos-rizomas. Deu “download” na brava cabocla Iracema que mora na sua alma cearense e sapecou: “Diabeisso?!” (Corruptela alencarina de “que diabo é isso?!”, este blog também é cultura). Ela não concebia que naquelas cinzas das horas, a casa caindo, alguma criatura esquecesse de mirar o próprio teto e convocasse um pensador francês metido para resolver o drama de alcova. Como se a vida a dois fosse uma tese, como se desconsiderasse o conhecimento do belo inferno dos lares. D.R. com intelectual ou artista envolvido é assim mesmo. Não tem jeito. Daí lembrei de catalogar outros tipos de D.Rs do mesmo gênero, veja a que lhe serve de carapuça, amigo leitor:
D.R. Kurosawa – Outro noite adiei a saideira por horas, reparando num embate de casal que imitava a arte deste cineasta. Uma discussão lenta, imagens lindas, arrozais sob montanhas, silêncios que falam coisas, uma peleja quase em ideogramas.
D.R. MPB – Indecifrável e incompreensível como o “zum de besouro ímã” do verso do Djavan. Muita onomatopéia e nem uma idéia os males da D.R. são.
D.R. Erística – Como na corrente homônima herdada dos gregos e consagrada por Schopenhauer, a arte de vencer um debate ou um barraco oral mesmo sem ter razão.
D.R. punk-rock – Três acordes e vai cada um pro seu lado, dormir na casa da mãe, de um(a) amigo (a), hotel, flat, amante, homeless…
D.R. Paulo Coelho – Depois da prosa, só resta sentar, desiludido(a), na margem do Rio Piedra e chorar. Assim como na escrita coelhística, o barraco começa com parábola bíblica ou uma lenda árabe.
D.R. Bartleby – “Prefiro não discutir”, diz uma das partes, repetindo o mantra do escriturário do livro homônimo de Melville.
D.R. free-style – É a discussão rimada, estilo rap, passionais MC´s: “Assim você me afunda/ com esse pé-na-bunda/ com essa insensatez…/ meu barquinho já naufraga/bossa nova é uma praga/veja só que a vida fez!”
D.R. brechtiana – A arte de enfrentar o público, seja num botequim seja numa festa, com o distanciamento do personagem, como se dissessem do palco, a cada golpe, “não é nada disso que vocês estão pensando, controlem-se”.
D.R. Abaporu ou D.R. arte moderna _ Típica discussão sem pé nem cabeça, que para nenhum dos dois interessa.
D.R. metalingüística – A D.R. da D.R., tipo roteiro de Kauffman (“Adaptação”, o filme), exercício das cabeças requentadas ou das mentes ressentidas.
Sensacional. Cabra bom. Um dia ainda escrevo assim.