Por Daniel Malcher
É verdade que cinquenta anos se passaram. Verdade não, é mais do que isso. É um fato atestado pelo calendário pinçado nos cantos inferiores direitos das telas de computadores e nas margens superiores dos jornais impressos, bem abaixo de seus pomposos nomes.
Não somos como éramos há cinquenta anos. É verdade. Verdade não, talvez seja uma meia verdade. Já explico. Pois vamos aos fatos.
Sabe-se que há cinquenta anos uma das mais tacanhas ditaduras instaurou-se nos trópicos. Revolução para alguns, golpe para outros, contra-revolução para todos. Enganou-se (e engana-se) quem acreditava que os milicianos depuseram um governo constitucionalmente legal para “salvar o país” de todos os males que o assombravam: inflação, alta dos preços, precária infraestrutura, corrupção política, o “esgarçamento da sagrada instituição da família”, o ateísmo, a reforma agrária capitaneada por levantes “insurrecionais” e, claro, o “perigo vermelho”, o supremo medo a assolar nove a cada dez países no período pós guerra.
É duro dizer, mas há cinquenta anos, talvez tenhamos deixado de avançar no mínimo um período equivalente a uma geração (por volta de vinte e cinco anos) em questões que tanto afligiam (e ainda afligem) a vida cotidiana nacional. A democracia deixou de ajustar-se aos interesses nacionais. Pior, foi estrangulada. A melhoria da infra-estrutura necessária à economia do país e à geração de riquezas e ao fomento de serviços no campo e nas cidades foi relegada ao último plano em nome de um modelo de desenvolvimento que tornou o país mais dependente do capital externo e que propiciou aos estrangeiros o conhecimento de uma região que nós, ao coroarmos as patentes, fizemos questão de não conhecer. Aliás, esquecemos que ela também é Brasil. Não nos enganemos: tem gringo que por obra e graça dos homens fardados conhece a Amazônia melhor do que nós mesmos. Nossas ferrovias, que poderiam ser úteis na integração de nosso território e no escoamento de produtos e insumos que poderiam abastecer de forma mais efetiva a crescente demanda de consumo interno, bem como reduzir os custos do transporte de mercadorias e barateando preços ao consumidor foram solapadas pela vocação modernizante das quatro rodas. A indústria de automóveis e os grandes grupos de exploração do petróleo e beneficiamento de derivados como os combustíveis, aliados do planalto desde JK, tornaram-se amigos íntimos do pessoal de cinco estrelas e óculos escuros. Ou vocês acham que foi por plena obsolescência que desativaram a estrada de ferro Belém-Bragança, não por coincidência colocada fora de operação em 1965, um ano após os fardados tomarem o cetro? A educação pública precarizou-se a partir dos anos 70. O acesso à saúde, embora fortemente controlado pelo estado, piorou deveras.
Mas, como tão brilhantemente foi abordado pelas historiadoras Denise Rollemberg e Samatha Viz Quadrat em “A construção social dos regimes autoritários”, falar do que ocorreu há cinquenta anos é necessário. Desde que para além da dicotomia resistência versus opressão, do maniqueísmo entre bem versus mal. Torturas, assassinatos sumários, estupros, censura, perseguição política e o rolo compressor sobre os movimentos sociais, sindicais e trabalhistas foram chancelados por todos. O “medo” do “perigo vermelho” deu aos militares a cabeça de Jango em uma bandeja de prata. Lembram dos que se enganaram com o salvacionismo militarista citados acima? Pois é… este é o às na manga do discurso triunfalista dos generais instaurado em 1964. E da direita política que os apoiou.
Agora posso explicar o que deixei pra depois. Desde então, forjou-se no imaginário político e social nacional a marginalização e a estigmatização de movimentos sociais e da classe trabalhadora e estudantil. “Estudante tem que estudar” não é o que dizia o “filósofo” Erasmo Dias? Isto posto, logo, agricultor tem que arar a terra, e trabalhador tem que trabalhar. Greve? Vagabundagem. Bandido bom? Bandido morto…
Estes discursos ainda tem eco, reverberam. As chamadas “jornadas de junho” do ano passado mostraram grupos numerosos que ainda se aglutinam em torno destes acintes. Não somos como éramos há cinquenta anos. Mas a simpatia que tais “verdades” consagradas há meio século ainda conseguem arregimentar tornam esta assertiva uma meia verdade. Só sei de uma coisa: 31 de março de 1964 foi uma mentira.