Vi no cinema, alguns anos atrás, a história de um professor de música que vivia numa pequena cidade americana e cujo filho era surdo. Quando tocava algum instrumento em casa, o pai sempre pensava que o menino não conseguia ouvi-lo. Quando John Lennon foi assassinado, botou uns discos do beatle mais invocado e se pôs a escutar. Quando o garoto se aproxima, ele explica sua melancolia dizendo que naquele dia havia morrido um grande músico. O filho então diz, por sinais, que também gosta de música e adora os Beatles. Nunca esqueci a cena.
Ao meu filho João, de oito anos, disse quase o mesmo sobre mestre Armando Nogueira, que nos deixou depois de uma vida de dedicação ao jornalismo, aos esportes e – por que não? – à poesia. Nortista como nós, filho de um Estado até mais distante dos grandes centros, venceu as barreiras geográficas e tornou-se cidadão do mundo muito cedo.
Contou em antiga entrevista que foi testemunha do desastre de 50 no Maracanã ainda na condição de “foca” de jornal. Foi à Copa de 1954 e, glória das glórias, deu a volta olímpica na conquista de 1958 na Suécia, puxado pela jaqueta por outro mestre, Nilton Santos.
Por admiração e empatia natural – o amor pelo Botafogo –, acompanhei boa parte da trajetória de Armando, principalmente sua obra de jornalista e escritor, através dos vários livros e da sensacional coluna Na Grande Área. A erudição fazia dele uma ave rara, transitando naquela fronteira invisível entre o texto jornalístico e a literatura, sem cair na chatice.
Houve uma época fantástica da crônica brasileira que tinha um timaço escrevendo nos jornais: João Saldanha, Nelson Rodrigues, Sandro Moreyra e Armando. Cada um na sua, mas imbatíveis na arte de traduzir para as massas a simplicidade complexa do universo do futebol.
Diante do destemor, do escracho e da ironia dos outros três citados, Armando conseguia se sobressair pela fina arte de esgrimir e dourar as palavras. Fosse jogador seria um craque de perfil clássico, mais afeito à cadência elegante do que à correria estabanada.
Sua influência de estilo se estendeu à linguagem da TV, mais sintética e conectada à imagem, e é visível no trabalho de outros bambas das letras boleiras no país, como Ruy Castro, José Roberto Torero, Luís Fernando Veríssimo, Juca Kfouri e Alberto Helena.
Como muita gente mais abalizada ainda irá se manifestar sobre Armando, meu modesto tributo fica por aqui, não sem antes reproduzir trecho afiado de uma tocante crônica sobre o nosso Quarentinha, herói silencioso do Botafogo dos anos 60:
“Quarentinha nasceu no Pará, filho de um atacante e lhe herdou, intactos, o chute poderoso e o apelido. Não sei se o pai era tão tímido quanto o filho. Quarentinha jamais celebrou um gol, fosse dele ou de quem fosse. Disparava um morteiro, via a rede estufar, dava as costas e tornava ao centro do campo, desanimado como se tivesse perdido o gol. Sempre que o via voltando da área, cabisbaixo, eu o imaginava a parodiar, bem baixinho, os versos de Manuel Bandeira: ‘Faço gol como quem chora / Faço gol como quem morre.’ Era uma flor de melancolia o Quarentinha. Que Deus o tenha”.
(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO desta terça-feira, 30)