
Por Inácio Araújo
Não me impressionou tanto no “Ilha do Medo” a abordagem da, digamos, crise do sujeito, assunto muito contemporâneo, que quase serve de chão para o filme. Mas ele agita outros itens, como o confronto falso/verdadeiro, real/imaginário que se desenvolve ao longo da trama, mas que também é muito presente em vários filmes (bons filmes).
O que de fato me impressionou foi o tratado de cinema que Martin Scorsese elaborou e do qual vou tentar puxar alguns fios aqui. Primeiro, ele nos joga na mais clássica das aventuras. Um filme noir. Dois detetives (DiCaprio e Rufalo) às voltas com um mistério. Daí evoluímos para uma ilha em que, como nos tempos clássicos, a ciência busca a hegemonia sobre a mente, ou seja, o poder absoluto.
Toda a ambiguidade desse estilo, que está muito na série de Val Lewton para a RKO, mas não deve ser a única fonte do filme. Se ficasse por aí, já estaria bem, num registro próximo, digamos ao do Peter Bogdanovich, aquela coisa meio passadista, mas legal. Só que, passo a passo, Scorsese vai preenchendo seu cenário arrepiante com personagens como os doutores Ben Kingsley e Max Von Sydow.
Cientistas são sempre tipos ambíguos. Mas esses não só evocam, do roteiro à mise-en-scène, a tradição como despertam nossas próprias lembranças (do cinema e da vida). Assim, o dr. Von Sydow se mistura perfeitamente à idéia de cientista alemão (nazi) refugiado nos EUA no pós-guerra. E isso vai colar com as lembranças de guerra do DiCaprio.
Ao mesmo tempo, as memórias do U.S Marshal DiCaprio conferem a sua investigação um caráter pessoal a que não podemos nos furtar. Mas estamos, basicamente, dentro daquele dilema que alguns comentaristas atribuem (e acho que com razão) ao Cronenberg: saber qual a imagem verdadeira e qual a imagem virótica.
O que poderia ser um problema de roteiro, isto é, de escrita (distinguir o falso do verdadeiro, o real do imaginário), torna-se então, prioritariamente, um problema de cinema. Porque o cinema é a própria ilusão. O cinema clássico não se propõe como um sonho socializado? Pois bem, aí está: MS reproduz a estrutura do sonho como não me lembro de ter visto alguém fazer antes (o Resnais, talvez, mas tenho a impressão de que isso é marginal no cinema dele, é a narrativa em si que ele toma como questão).
Ele não reproduz um sonho para depois nos dizer: “toma, isso é apenas cinema, pode acordar, vai para a vida”. Ele nos atira no sonho de tal maneira que toda a nossa percepção da realidade parece fraturada, fragilizada. E nossa crença nas imagens de cinema sai, curiosamente, abalada e revigorada, ao mesmo tempo.
Quer dizer, se nossa idéia de que o que aparece na imagem é necessariamente verdadeiro já faz algum tempo que tem sido questionada com pertinência (me parece que o filme do DePalma sobre o Iraque é um primor quanto a isso), “A Ilha” de certa forma confirma nossas suspeitas, por um lado, mas por outro, por um trabalho de mise en scène absolutamente impecável, nos atira nas delícias que só a ficção pode criar.
Tanto a ficção do personagem, como a do autor do filme.
Por fim: me parece muito significativa a mudança de ritmo deste filme em relação aos últimos Scorseses. Tudo deve se fixar mais em nossa mente, nada deve passar rápido demais, como uma alucinação da droga. Isso, acho, nos leva a acreditar mais piamente na realidade das imagens (como faziam os espectadores clássicos), apenas para sermos arrancados mais tarde desse paraíso de fruição. Por sorte, Scorsese nos joga em outro paraís