A escola de datilografia de Dona Rosinha

Por André Forastieri

Dona Rosinha era nossa vizinha, no casarão da frente. 

Daqueles com janelas altas dando pra rua. Um portãozinho abrindo para uma ampla varanda que se afundava até o quintal de trás. Uma porta de uns quatro metros de altura, entrada pra sala enorme, sempre fresca, porque protegida do sol, pé direito de catedral. Móveis dos anos 40, toalhas com crochê.

Mas a vida era na cozinha. Ela me chamava na rua, “Andrezinho, venha comer um bolinho!”.

Era lá que ela, dona Meninha, e Maria me serviam bolinhos de laranja com cobertura de raspa de coco e leite com groselha. Que era produzida no galpão ao lado, Fábrica de Bebidas Orlando, da família dela. 

Cresci vizinho de uma fábrica de refrigerantes. Passeava livremente no meio dos tonéis de xarope e esteiras rolantes, centenas de garrafas de Gengi-Birra e Orlan-Cola recebendo tampinhas. 

Era de casa. Era da família. Os dois netos de dona Rosinha moravam em Campinas. Virei sobrinho-neto adotado, mesmo com minha avó de verdade morando na parte de baixo do nosso sobrado.

(Francisca Sajovic Forastieri me adorava, único neto até poucos meses antes da sua morte, quando eu tinha 14 anos. Sua presença doce, elegante, resignada me conforta, talvez minha mais forte impressão de amor incondicional.)

Dona Rosinha era pequenita, um palito, e elétrica. Tinha a mais tradicional escola de datilografia da cidade, onde era a única professora. Estudei lá por quase um ano. Meu pai zombava, dizia que só um aluno tinha demorado mais para fazer o curso do que eu, o então prefeito da cidade…mas aprendi bem. Sou rápido nas teclas. Não tanto quanto ela.

Era no centro de Piracicaba, uns sete quarteirões de casa, no alto de um sobradinho. Umas 20 máquinas talvez. Eu ia a pé, 12 anos, às vezes direto da educação física no campo do XV de novembro, todo sujo de jogar bola.

Do lado ficava a melhor fornida revistaria da cidade, a Distribuidora Gianetti. Lá comprei uns 90% dos gibis mais importantes da minha vida, os lidos entre os oito e catorze anos. E muitos li de pé lá mesmo, que o dono liberava, sabia que eu era cliente fiel.

Uma ver por mês, por aí, minha mãe ia visitar as cunhadas de dona Rosinha, e vira e mexe levava. Na casa de Heleninha e Belica Canto tinha um cachorro amedrontador, que sempre cheirava minhas as partes, e a eterna empregada delas, Neguinha, filha de escravos que cuidou das duas quando pequenas, e seguiu cuidando até elas passarem a cuidar dela, até sua morte.

Neguinha sempre fazia gelatina pra mim, quando sabia que íamos aparecer, e em vez de “Andrezinho” me chamava de “Minino”. Meu pai tratou, não me lembro do quê, e descobriu o nome verdadeiro dela, que me contou, e esqueci.

Minha mãe acreditava muito em cuidar dos outros, em estar presente. Para os parentes e amigos que estavam longe, ligava regularmente. Fazia umas visitinhas pra quem estava perto, e levava o filho único junto. É forte parte da minha infância, as conversas, os aromas, o carinho.

Eu cresci em mundo assim, que não existe mais. Protegido, educado, amado por tias. Tia isso, tia aquilo, tias-avós, tias de adoção. Mães e tias dos meus amigos. Primas da minha mãe. Minha tia queridíssima, a mais próxima até hoje, Lourdes Maria.

Quando dona Rosinha fechou a escola, bem velhinha, ganhei de presente uma das máquinas. É uma Remington 1927, que levei para São Paulo, usei pra fazer os trabalhos de faculdade, e onde escrevi o currículo inventado que garantiu meu primeiro emprego. 

Está um pouco enferrujada e empoeirada, mas bem-guardada – como minhas lembranças.

O PRIMEIRO JORNALISTA QUE EU CONHECI

Foi o Cecílio Elias Neto, editor do Diário de Piracicaba. Grande memorialista da cidade, escreveu o dicionário definitivo do piracicabanês, “Arco, Tarco, Verva”. Ele escreveu esse artigo sobre a Dona Rosinha.

OUÇA

novo podcast dos amigos progressivos! Que, como sugeriu um ouvinte, devia mudar de nome pra Febeapá. Que encaixa certinho com nossas iniciais, e temos tradição em festival de besteiras. Dessa vez o tema foi “como eu não conhecia essa banda!”. Os camaradas capricharam. Tem até post-rock de Wuhan!

Eu fui de duas canções queridas aqui da casa, sendo uma de um cara até célebre, mas que eu só conhecia de dois hits chiclete. É um calipso de Harry Nilsson, que botou John Lennon no crime na famosa “Lost Weekend” do Beatle: um ano e meio de sexo, drogas e rock´n´roll, longe da maleta Yoko.

Na foto, os dois mais Alice Cooper, Mickey Dolenz dos Monkees, e uma moça que não ligava pra más companhias.

RENDA BÁSICA SALVA VIDAS

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2 comentários em “A escola de datilografia de Dona Rosinha

  1. Grande emoção ao ler esse Belo artigo do André Forastieri sobre minha dileta e saudosa avó Rosinha Orlando Canto!
    O André fez-me voltar no tempo,com sutilezas de detalhes!
    Tempo de nossa infância nos anos 70!
    Muito obrigado,André, por descrever tão bem a personalidade cativante de minha tão querida avó!
    Ela tinha muita estima por você e por toda a sua família!
    Grande abraço
    Ricardo Canto de Sá

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