O ensaio de golpe branco do STF

Por Ricardo Melo (na Folha de SP)

Sem ser nova na política, a expressão golpe branco tem sido atualizada constantemente. Designa artifícios que, com aura de legalidade, usurpam o poder de quem de fato deveria exercê-lo. Para ficar apenas em acontecimentos recentes: a deposição do presidente Zelaya, em Honduras (2009), e o impeachment do presidente Lugo, no Paraguai (2011). Nos dois casos, invocaram-se “preceitos constitucionais” para fulminar adversários.

O Brasil já teve momentos de golpe branco –a adoção do parlamentarismo em 1961, por exemplo. A intenção era esvaziar “constitucionalmente” João Goulart, enfiando um primeiro-ministro goela abaixo do povo. O plano ruiu temporariamente com o plebiscito de 1962, pró-presidencialismo. A partir de 1964, os escrúpulos foram mandados às favas muito antes do AI-5. Os militares trocaram a caneta pelos fuzis e o resto da história é (quase) sabido.

Hoje a situação não é igual, ainda bem. Mas é inegável que a democracia brasileira vem sendo fustigada pela hipertrofia do papel do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal. Há quem chame isto de judicialização da política. Ou quem sabe ensaio de golpe branco em vários níveis da administração.

Tome-se o ocorrido em São Paulo. A Câmara Municipal, que mal ou bem foi eleita, decidiu aumentar o IPTU. Sem entrar no mérito, o fato é que a proposta contou com os votos inclusive do PMDB – partido ao qual pertence o presidente da Fiesp, garoto propaganda da campanha contra o reajuste. O que fizeram os derrotados? Mobilizaram os eleitores?

Nem pensar. Recorreram a um punhado de desembargadores para derrubar a medida. Até o Tribunal de Contas do Município, que de Judiciário não tem nada, surfou na onda para barrar… corredores de ônibus! Tivesse o TCM a mesma agilidade para eliminar seus próprios descalabros e sinecuras, quando não a si mesmo, a população ganharia muito mais.

A decantada independência de poderes virou, de fato, sinônimo de interferência do Poder Judiciário. Tudo soa mais grave quando a expressão máxima deste, o Supremo Tribunal Federal, comporta-se como biruta de aeroporto. Muda de ideia ao sabor de ventos (mais de alguns do que de outros), e não do Direito. Ao mesmo tempo, deixa em plano secundário assuntos eminentemente da competência judiciária –como o quadro de calamidade nos presídios brasileiros.

Os casos do mensalão e assemelhados retratam os desequilíbrios. O mais recente: enquanto o processo dos petistas foi direto ao Supremo, o do cartel tucano, ao que tudo indica, será dividido entre instâncias diferentes. Outro exemplo, entre outros tantos, é a descarada assimetria de tratamento em relação a José Genoino e Roberto Jefferson.

A coisa chegou ao ponto de pura esculhambação. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, vetou recursos do ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha. Com a empáfia habitual, decretou a prisão imediata do réu, mas não assinou a papelada. E daí? Lá se foi Barbosa de férias, exibindo desprezo absoluto por trâmites pelos quais ele deveria ser o primeiro a zelar. Resultado: o condenado, com prisão decretada, está solto. Mas se era para ficar solto, por que decretar a prisão do modo que foi feito? Já ações como a AP 477, que pede cadeia para o deputado Paulo Maluf, dormitam desde 2011 nos escaninhos do tribunal.

A destemperança seria apenas folclore não implicasse riscos institucionais presentes e futuros. Reconheça-se que muitas vezes vale tampar o nariz diante deste Congresso, mas entre ele e nenhum parlamento a segunda alternativa é infinitamente pior. Na vida cotidiana, as pessoas costumam se referir a chefes e autoridades como aqueles que “mandam prender e mandam soltar”.

No Brasil, se quiser prender alguém, o presidente da República precisa antes providenciar um mandado judicial –sorte nossa! Barbosa dispensa esta etapa: como ele “se acha” a Justiça, manda prender, soltar, demitir, chafurdar, cassar, legislar -sabe-se lá onde isto vai parar, se é que vai parar.

15 comentários em “O ensaio de golpe branco do STF

    1. O problema, que vejo até em alguns comentários aqui no blog, é o respeito à instituição que Barbosa representa. Ele é o principal juiz do país, tem que ser cobrado diante de tantas incoerências e atropelos à Lei.

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  1. O que chama atenção, amigo Gerson, é que o judiciário, que era para ser um poder sem tantos holofotes, tem realizados verdadeiros espetáculos para imprensa (e com apoio de parte desta). Enfim, vejo, no Brasil, um desequilíbrio de força.

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  2. Gerson, na verdade vejo que a defesa canina de Barbosa como o vestal incorruptível se dá mais pelo anti-petismo de muitos do que pela suposta luta pela moralidade na vida pública, haja vista que todos tem suas preferências político-partidárias e ideológicas. E muitas destas de forma bem clara por aqui.

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  3. A propósito, um exemplo rematado de manifestação vinculada a mais à preferências político-partidárias e ideológicas do que à moralidade na vida pública, especialmente no judiciário, é o próprio artigo postado pelo blog.

    Deveras, em todos os lugares do mundo o Judiciário é o último guardião do povo contra a voracidade tributária. Aqui o articulista acha que é intervenção, que é golpe branco a manifestação judicial. E a mais graciosa de todas é reclamar que o Ministro não assinou a ordem de prisão do Mensaleiro. Ora, se o mensaleiro JP tá assim tão ávido pelo encarceramento, por que ele próprio não se entrega. O ápice do chapabranquismo é o último parágrafo. ora, diferentemente do presidente, faz parte do deve de ofício do juiz mandar prender, mandar soltar.

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  4. Antonio, o que incomoda é que o STF – que é uma ÍNFIMA parte do Poder Judiciário, não esqueçamos – sempre se manteve inerte, e, no caso do mensalão, o processo chegou a desfecho.

    É natural – dentro de uma certa visão esquizofrênica dos que foram atingidos por suas condenações – a reação, embora aqueles que militam na área saibam que esses leigos que escrevem a respeito pouco ou nada sabem a respeito – e aqui me refiro a leigo no sentido de conhecimento jurídico, não sendo relevante eventual formação jurídica.

    Por exemplo, deveria ser de conhecimento do articulista que o STF não cumpre os mandados de prisão expedidos por si. Recordo-me de situações envolvendo diversas autoridades nas quais se encaminhou a ordem ao Juiz de Primeira Instância – às vezes estadual, às vezes federal. E nem por isso o mundo acabou.

    Por outro lado, não é culpa de quem quer que seja que hoje, repita-se, no caso do mensalão, o veredito, bom ou ruim, foi proferido, e antigamente isso não ocorria.

    Eu, na condição de magistrado, sempre tive a ciência disso, ou seja, que a decisão, mais do que tudo, desagrada. Por isso é que quando se fala em lentidão da Justiça, vejo com ceticismo algumas manifestações a respeito, não do fato em si, mas do declarante, o qual, via de regra, sempre se beneficiou dessa lentidão, especialmente na esfera penal, como por exemplo o Sr. Paulo Maluf.

    Foi por isso que me manifestei certa vez, quanto ao blogueiro, quando me entendi atacado por atacado, em termos de referência negativa a magistrados e outros quejandos. Vi naquela manifestação – repito, posso estar equivocado – o velho ranço daqueles que pensam que todos os Juízes estão em pedestal de cristal.

    Quem acompanha o dia a dia, especialmente da Justiça do Trabalho, sabe que não é assim, embora eu acredite que não está longe esse dia – mas isso é assunto para outra longa postagem, quem sabe.

    Abraços e, quem sabe, 3×0 Remo, hoje.

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  5. Há chapa-branquismo evidente, é claro, em muitos artigos. Contudo, outros, por seu turno, ao criticarem a postura do magistrado mais notório da Suprema Corte, bem como o recorte dos tramites da casa e seus excessos, muitos ora vejam à revelia do ordenamento jurídico, são logo adesivados como crítica-defesa do governo constituído. E muitas destas críticas partem de setores até identificados com grupos nada simpáticos à corrente política no poder central desde 2003. Será que não conseguimos mais enxergar além da dicotomia governo-oposição, PT/Base Aliada-PSDB/DEM/Grandes Grupos de Mídia? Existe crítica qualificada, de ambos os lados, embora o setor por ora oposicionista descambe via de regra para a desqualificação pura, para a escatologia ou para a apologia dos terrores vindouros. Que o digam Sardemberg, Leitão, Olavo, Jabor, Mainard, Waack e o “Tio” Rei…

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  6. Acho que a falta de qualificação nas críticas é equilibrada, independentemente do “tamanho” da imprensa. Há quem feche os olhos aos desmandos e aos abusos do governo e faça propaganda enganosa hiperbolizando as ações governistas pelo simples fato de ser chapa branca. E logicamente há aqueles que apostam no quanto pior melhor, na hiperbolização dos enormes erros e na minimização dos poucos avanços só porque não são governo.

    Mas, independentemente da crítica da imprensa, seja a grande, seja a pequena, a verdade é que a situação no Brasil anda precária, não melhorou e cada vez vai ficando pior, mesmo para os supostos beneficiários do assistencialismo governamental, eis que estes continuam p. ex., morrendo às pampas, seja pelo descaso com a saúde, seja pela violência sem controle.

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  7. Claro que é intervenção, principalmente porque não houve aumento indiscriminado do IPTU, como falsamente noticiado. Mais de 50% dos paulistanos tiveram redução no pagamento em relação ao que pagaram no ano anterior e a lei que prevê essa revisão bi-anual é anterior ao prefeito Haddad. Quer dizer se o aumento fosse linear, como ocorreu em Santos, e mantido o padrão regressivo, em que ricos e pobres têm sobre suas costas aumentos percentuais lineares, como aconteceu com o reajuste concedido por Kassab, aí pode. Mas, se o Poder Executivo propõe e o Legislativo aprova e transforma em lei essa modificação que faz quem dispõe de melhor equipamentos públicos onde mora pagar mais, aí não
    pode.
    Então, entra em ação um dirigente de entidade empresarial, representante de uma corporação, e junta-se a um magistrado que decide monocrática e isoladamente algo que interessa a milhões de pessoas, que elegeram quem tomou a citada decisão no Legislativo e Executivo, repita-se, e sem levar em conta as nuances do caso, tudo indica, baseado o julgador apenas naquilo que o noticiário tendencioso veiculou. Se isso não é golpe branco…

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  8. O poder legislativo está entre aqueles que mais ofendem as normas jurídicas do País, especialmente a Constituição. Daí que sempre que isso acontece, por ordem da própria a Constituição, e sempre que demandado, que requerido, que procurado por quem se julgou prejudicado, o Judiciário tem de atuar. E isso faz parte da democracia. Aliás, o controle judicial dos atos do Legislativo, principalmente na seara tributária, é a coisa mais comum do mundo. Um exame nas fontes corretas vai provar esta verdade mostrando um volume gigantesco de questionamentos judiciais dos atos legislativos tributários.

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  9. Uma coisa é demanda judicial, outra totalmente diferente é a substituição pura e simples. Quando a minoria parlamentar recorre ao Judiciário e este se presta pra impedir a tramitação de um projeto, claro que a intromissão de um poder na esfera do outro fica clara. E é exatamente isto que ocorre atualmente.
    Quanto às eventuais ofensas cometidas pelo Legislativo, é melhor um mau legislativo ruim funcionando do que fechado ou sufocado pela hipertrofia dos poderes. A propósito, na área tributária, há um processo que tramita no STJ há cerca de dez anos contra determinado perdão tributário à uma cervejaria, algo flagrantemente ilegal, no entanto, até aqui, os (ir) responsáveis pela cortesia (com o dinheiro público) continuam flanando por aí lépidos e fagueiros, sem quualquer manifestação do seletivo poder judiciário tupiniquim.

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  10. Não há substituição pura e simples! O Judiciário se manifestou na forma que a Constituição manda que ele se manifeste: após requerimento de quem se sentiu prejudicado. Trata-se de uma demanda como existem milhares de outras em que a pessoa (ou as pessoas) se insurge (m) contra o que considera (m) abuso do poder de tributar e pede (m) uma manifestação do Judiciário que ainda vai decidir (sabe lá quando) a questão em caráter definitivo. Por hora só há uma decisão liminar que também é medida que tem amparo na Constituição.

    O dever de qualquer Legislativo é funcionar bem, o que significa legislar obedecendo a Constituição. E quem avalia se há respeito ou desrespeito do Legislativo à Constituição, segundo manda a própria Constituição, é o Poder Judiciário. É este, e só este, que tem o poder de julgar, se há inconstitucionalidades, e quem se sentir prejudicado por alguma suposta inconstitucionalidade cometida por alguma autoridade executiva ou legislativa deve levar o caso ao Judiciário.

    Quanto à cervejaria, só conheço superficialmente o caso, mas me parece que trata de situação diferente já que diz respeito à denuncia criminal onde é comum a demora até se obter o resultado positivo ou negativo.

    E a diferença está em que se tratando o caso paulista de assunto puramente tributário é possível conseguir liminar para suspender a cobrança até a definição da questão na Justiça e nos casos criminais as prisões antes do fim do processo só em situações excepcionais.

    A Constituição admite que se suspenda a cobrança de um tributo antes de chegar ao fim o processo que questiona sua constitucionalidade. Porém, quando se trata de crimes, só excepcionalmente a Constituição admite que o sujeito seja preso antes de ficar definitivamente constatado que o crime foi cometido.

    Agora, independentemente da semelhança ou dessemelhança dos casos, o que se discute aqui, dentro do que é possível discutir entre pessoas que não conhecem os detalhes técnicos dos casos (pelo menos eu não conheço), me parece absolutamente claro que não há intromissão do Judiciário, mas pura e tão somente atendimento ao chamado de quem se sentiu prejudicado, como manda que seja feito a Constituição do país.

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  11. Não chegaremos a um consenso jamais, daí ser breve este comentário. Se um membro do Legislativo perde uma votação e bate às portas do Judiciário pra reclamar do resultado isso não obedece a Constituição significa, sim, a judicialização da política.
    E disso decorre a seletividade cada vez mais flagrante que acomete certos magistrados. Não se está aqui discutindo ritos processuais, apenas mostrando que essa flagrante intromissão leva a contradições que não se explicam. Vide o caso do desmembramento do processo contra os acusados de receber propina do cartel do metrô de São Paulo.
    Em tempo, tanto a AP Nº470 quanto o caso da cervejaria são da área criminal. No primeiro, nem direito ao duplo grau de jurisdição a maioria dos réus teve, enquanto o segundo tomou chá de sumiço após dois votos já proferidos. Patético!

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  12. Pesquisei alguma coisa a respeito do assunto. Pois bem, constatei que neste caso foram três ações. Uma da Fiesp, uma do Diretório do PSDB e outra do Ministério Público. Todas conseguiram liminar, sendo que uma foi cassada, aquela concedida ao Ministério Público.

    Judicialização da política? Não!

    Isso, no estado constitucional de direito, chama: controle externo do legislativo.

    O rito processual é uma das coisas mais importantes no estado constitucional e SERIA um dos elementos integrantes da discussão no caso do iptu paulista, afinal até uma audiência pública supostamente obrigatória TERIA sido suprimida numa votação que TERIA sido antecipada e se efetivado às pressas.

    Daí que não há intromissão porque o Legislativo não é absoluto e é papel constitucional do Judiciário julgar se o Legislativo vem cumprindo sua missão corretamente e seguindo os procedimentos normativos que está obrigado a cumprir.

    No caso do Mensalão todos os réus que tiveram pelo menos 4 votos pela absolvição tiveram direito a recorrer por um novo julgamento. Essa é a norma legal que trata do assunto e esta regra foi cumprida.

    O consenso é bom, é confortável, mas é a divergência respeitosa que verdadeiramente expande os horizontes.

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