Na tarde fatídica em que o Brasil perdia para a Holanda no estádio Nelson Mandela Bay e pulava fora da Copa do Mundo, não fui o único a lamentar a ausência de um jogador capaz de mudar o jogo àquela altura. Alguém capaz de pôr a bola no chão, descobrir atalhos e reorganizar a caótica Seleção Brasileira em campo. Mais que a recuperação tática holandesa no segundo tempo, entendo que a carência de um autêntico camisa 10 – problema que vem de longa data – manifestou-se em sua plenitude naquela partida e foi fatal para as pretensões nacionais na África do Sul. Desconfio que o próprio Dunga, apesar dos arroubos de auto-suficiência, sentiu o mesmo vazio ao olhar para seu paupérrimo banco de reservas. E o nome que todos tinham na ponta da língua, jornalistas ou não, era o de Paulo Henrique Ganso.
A lamentação em torno do jogador paraense começou bem antes da Copa, quando o Brasil ainda fazia treinos contra Zimbábue e afins. A indigência criativa daquele meio-campo – com Gilberto Silva, Felipe Melo, Elano e Kaká – era por demais eloquente para que se esperasse uma boa surpresa no Mundial. Como se imaginava, o time viveu de lampejos contra norte-coreanos, marfinenses e chilenos. Contra a seleção portuguesa, nem isso. Aliás, no confronto diante dos lusos, uma outra verdade se materializou: a fragilidade dos suplentes. Dunga lançou naquele jogo Júlio Batista, Kleberson e Josué. Todos jogadores de meio-campo e nenhum capaz de dominar a bola com um mínimo de respeito. Deu no que deu.
Pode-se dizer que, sem ir à Copa, Ganso brilhou intensamente. Não estou falando daquele célebre anúncio de um dos patrocinadores do torneio, que tinha como protagonistas Robinho, Neymar e o craque paraense. Minutos antes dos jogos e nos intervalos, os telões dos estádios sul-africanos exibiam as embaixadinhas e evoluções do trio para espanto (seguido de aplausos) das torcidas, que só conheciam mesmo o titular da Seleção. A não convocação do paraense impunha-se, a cada nova dificuldade enfrentada pelo Brasil, como um erro monumental, uma atitude infeliz do técnico.
Certas situações afetam a compreensão do torcedor médio durante um torneio de tiro curto como é a Copa do Mundo. A invencibilidade até as quartas-de-final chegou a encantar grande parte da torcida brasileira, ávida pela comemoração do hexacampeonato. Para muitos, pouco importava o jeito tosco de atuar da meia cancha do escrete. Quando Dunga elegeu a eficiência como palavra de ordem, muitos até aplaudiram e se posicionaram ao lado das dunguices óbvias. Em determinadas situações, somente a derrota tem o dom de repor algumas verdades e clarear as ideias. Depois do apagão que se abateu sobre a Seleção frente à Holanda, a maioria recobrou o bom senso, admitindo que as escolhas do técnico foram determinantes para o fiasco.
Depois da purgação das tristezas pela má campanha, um novo comandante assumiu e não hesitou em corrigir as falhas provocadas pela teimosia. Mano Menezes convocou um time inteiramente renovado, cujo maestro é inequivocamente Paulo Henrique Ganso, talhado para a missão de nos restituir a glória da camisa 10, cujo simbolismo mágico surgiu entre nós – embora sua decadência também tenha começado por aqui. Desde que Pelé elegeu o 10 como selo oficial de sua genialidade, o Brasil só fez acumular conquistas. Sempre que os técnicos se puseram a menosprezar a importância de um autêntico camisa 10 a Seleção só colecionou dissabores.
O Brasil nunca foi a pátria de volantes, como muitos (Cláudio Coutinho, Zagallo, Lazaroni, Parreira e Dunga) tentaram impor por decreto. Aqui nasceu o futebol talentoso, de perfil artístico, que a todos encanta. Não é possível que, por obra e graça de alguns infiéis, toda uma longa dinastia de craques seja repentinamente deixada no esquecimento. Ganso, de passadas largas e passes de primeira, como Sócrates, consegue fazer lançamentos longos e gols como Gerson. A comparação, sempre perigosa em futebol, justifica-se pelo nível das atuações do jovem meia com a camisa do Santos. De mais a mais, há quanto tempo não se vê na Seleção alguém que tenha peito de disparar um passe de 30, 40 metros, como se via até o final dos anos 80? Chegou a hora de fazer as pazes com o melhor futebol brasileiro pelos pés de um garoto paraense, nascido no interior e sem parentes importantes, como na velha canção de Belchior. O surgimento de Ganso, praticamente do nada, como tantos outros craques, confirma que o futebol talvez seja o único esporte que permite a ascensão fulminante, sem escalas ou empecilhos, para quem reconhecidamente sabe tratar bem uma bola. É claro que, para cada Ganso que se salva, dezenas de outros ficam pelo caminho, sem direito a um teste sequer. Mas, na seca atual, só resta comemorar seu aparecimento. Sem planejamento, trabalho de base ou investimento de clubes. Um retrato da total incompetência dos clubes paraenses para gerir pé-de-obra. Tuna e Paissandu, que tiveram o jogador em suas fileiras e não souberam retê-lo. Nem mesmo se beneficiaram direito de seu grande talento.
Por outro lado, talvez tenha sido melhor assim, pois na Vila Belmiro ele teve o privilégio de se juntar a outros jovens craques. E o futebol, como se sabe, é sempre melhor e mais prazeroso quando reúne uma constelação de estrelas.
(Coluna publicada na edição especial do Bola/Revista do Canso, neste domingo, 1)