Por Manuel Dutra
Bettendorf e a perfeita simbiose da fé com o império
O mês de janeiro é particularmente significativo para a cidade de Belém, capital do Pará. Foi nesse mês que os portugueses deram início ao efetivo domínio do que mais tarde viria a ser a Amazônia. No dia 12 de janeiro de 1616 começou a construção do ponto de apoio da ocupação. A construção do Forte do Castelo do Senhor Santo Cristo do Presépio de Belém foi o primeiro marco da posse prolongada. E foi também num janeiro que, 219 anos depois, começou o movimento que pretendia construir outra forma de sociedade, opondo-se aos construtores do Forte e a tudo que ele representava: a Cabanagem.

Como se vê claramente nas palavras e nas imagens, Belém nasceu sob o signo da Fé e do Império, cunhados inclusive no nome do Forte. A história das conquistas dos povos das Américas foi marcada por essa hipócrita e trágica realidade: violência e catequese. Numa das mãos a espada, na outra a cruz. A cruz para persuadir. A espada para forçar a persuasão. Assim agiram portugueses e espanhóis, mas também os puritanos que dizimaram os indígenas da Nova Inglaterra, hoje Estados Unidos. Eles lá chegaram afirmando hipocritamente que não vinham dominar e saquear, mas “to perform the ways of God”, ou seja, palmilhar os caminhos de Deus.

Lembra aquele episódio de um cacique na ilha que viria a ser Cuba, ao afirmar aos espanhóis, numa tarde de domingo, após dezenas de homens, mulheres e crianças degolados pelos invasores: Se o Deus de vocês aprova isso, eu prefiro ir pro inferno.
Aqui mais perto podemos observar a ação do jesuíta João Felipe Bettendorf, que foi diretor do Colégio de Santo Alexandre, em Belém, ao lado da igreja do mesmo santo e que mais tarde viria a abrigar o arcebispado da capital. Hoje é museu.
Ao chegar à confluência dos rios Tapajós e Amazonas, para fundar a missão religiosa que daria origem à cidade de Santarém, Bettendorf pronunciou o seguinte sermão, que era traduzido por um português já aclimatado, de nome João Corrêa. Disse o padre (mantida a grafia da crônica do jesuíta):
“Olhae os Mandamentos da Lei de Deus, todos se fundam em a razão, e quem os seguir deve-se chamar homem racional, e pelo contrario quem não os quer seguir este se póde chamar de bruto, e se deve governar com pancadas como se governam os animaes irracionaes”.
Como se percebe aí, o sermão do “fundador” de Santarém revela-se a perfeita simbiose da cruz com a espada.
No Grão-Pará de ontem, que viria a ser a Amazônia de hoje, o processo inaugurado no Forte do Presépio está vigente neste início de século 21. No meado do século 19, o povo tentou mudar as coisas, mas saiu perdedor na guerra civil entre 1835 e 1840, que ficou conhecida como Cabanagem, que é ensinada nas escolas e nos livros como um “motim”, ou uma “revolta”, etc. Foi na verdade a mais encarniçada guerra civil brasileira, a que mais matou e que terminou com o genocídio praticado pela elite branca contra os paraenses não brancos. Isso após a “independência”. A desigualdade absoluta que deu partida à guerra da Cabanagem deixou marcas tão profundas que ainda hoje estão aí, vivas, nesta Belém do Grão-Pará e por toda esta imensa Amazônia.
(Transcrito do blogmanueldutra.blogspot.com.br)
Ótimo texto, mas como historiador e professor de escola pública, devo me posicionar contra o pertinente imaginário de que ainda estamos discutindo a história com o olhar do europeu. Não, não mais é prática comum perceber a Cabanagem como “motim” ou “revolta”. Muitos professores desconstroem esse discurso e mostram a força do povo paraense que tomou o poder e mostrou sua insatisfação diante das injustiças sociais da época.
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Que bom Rosivan, que estão ensinando de outra forma agora>
Quando estudava, ainda no primário/secundário no Colégio Salesiano Nª Sª do Carmo, e, nos anos 80´s, realmente nos apresentavam a Cabanagem com um simples motim.
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