Atribulações de Lennon no país do rock

Por Pedro Alexandre Sanches

O filme “Os EUA X John Lennon” estreia no Brasil com quatro anos de atraso e empacotado numa frase elogiosa da viúva do ex-Beatle, Yoko Ono: “De todos os documentários já feitos sobre John Lennon, este é o que ele amaria”. Yoko deve saber de fato o que o marido assassinado em 1980 pensaria, mas a frase usada para promover por aqui a produção de David Leaf e John Scheinfeld diz apenas metade de tudo que está em jogo. A história contada é honrosa não apenas para John, mas também para Yoko. A meta é recuperar um dado específico da biografia da dupla – o esforço do governo republicano de Richard Nixon para deportar John (e Yoko) no início dos anos 1970 – e explicar os seus porquês.

Em palavras resumidas, o britânico Lennon irritou o governo norte-americano por ridicularizar a guerra do Vietnam, fazer músicas contra Nixon, escrever letras pacifistas (tipo Give Peace a Chance) que eram cantadas por milhares às barbas da Casa Branca, aproximar-se dos Panteras Negras (ou seja, do movimento pelos direitos civis dos negros), cantar em público pela soltura de um poeta e ativista de esquerda (John Sinclair) condenado à prisão por oferecer dois cigarros de maconha para uma policial disfarçada. E, quem sabe, por fazer tudo isso incitado em certa medida por uma artista plástica vanguardista esquerdista japonesa mulher sobrevivente do bombardeio de Tóquio pelos EUA em 1945, com quem ele tivera a estranha ideia de se casar.

“Essa bruxa japonesa o enlouqueceu, ele pirou”, vocifera um homem de mídia da época, logo no início do filme. Por sua parte, o casal encena uma lua-de-mel multiétnica pública numa cama rodeada de cartazes pedindo paz (e de repórteres). Bélica diante do casal, uma jornalista diz a John que ele ficou “ridículo” e que suas ações não têm qualquer serventia para a paz.

Egresso dos Beatles, Lennon continuava sendo um herói mundial, apesar das supostas “maluquices”. Era combatido, mas continuava a ser respeitado, até certo ponto. A barra pesava mesmo era para Yoko, que aparece em dez entre dez cenas de época tentando falar e não conseguindo. Sua cabeça que balança em silêncio contrasta com os depoimentos loquazes que ela concede no presente, tentando remontar o passado. E fica evidente ao espectador (se já não estava) a feroz futilidade dos argumentos corriqueiramente utilizados para rejeitá-la, no mínimo, ou ejetá-la da história, no máximo.

Uma lista bombástica de ingredientes torna a fervura suficientemente quente: direitos humanos, racismo, misoginia, machismo, autonomia feminina (os depoimentos da feminista negra Angela Davis são eloquentes, assim como são os de personas non gratas pelo conservadorismo norte-americano como Gore Vidal, Noam Chomsky e Tariq Ali), sexo, casamentos (e filhos) multirraciais, pacifismo, liberação de drogas… Até o “ame-o ou deixe-o”, muito conhecido de certo país da América do Sul, aparece ali em versão anglo-americana, nos depoimentos de ex-agentes do FBI e que tais.

É forçoso concluir que o país que queria extraditar John e Yoko era uma nação que lutava a favor de guerra, ódio racial, misoginia, eugenia, puritanismo, mordaça. Lançado antes do advento de Obama, Os Estados Unidos Contra John Lennon deixa explícitos os paralelos que quer estabelecer entre a era Nixon e a era Bush Jr. “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, diria em tom de pergunta certa cantora brasileira, se pudesse entrar na conversa.

O melhor de tudo é que, conquistas e retrocessos à parte, Yoko “sim, eu sou uma bruxa” Ono continua por aí, incomodando onde John Lennon e Elis Regina não podem mais incomodar. Não é à toa, nem sem merecimento, que ela ama tanto esse eloquente documentário.

5 comentários em “Atribulações de Lennon no país do rock

  1. Quem ama o rock ama não só a música – exatamente uma referência. Ama também (ou principalmente) a atitude implícita. O rock sempre foi atitude social – e, portanto, atitude política. Sempre foi uma visão de mundo, e visão coletiva – o rock condena o individualismo e a indiferença do entorno social. O rock é marca de contracultura, protesto, inconformismo e contestação – rejeição a ordem estabelecida. Assim, o acomodadinho, claro, não gosta da “atitude rock”. Normal que o amplo segmento conservador da sociedade americana (o governo Nixon era apenas a expressão disso) visse como extremamente perigoso o comportamento questionador do John e Yoko – o momento histórico era exatamente propício para a atitude rock – não esqueçamos que tudo isso ocorreu no pós-68 (das barricadas em Paris). Não sei se o se chama de rock atualmente segue a trilha.

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    1. Também tenho sérias dúvidas quanto à essência do rock atual, destituído de qualquer engajamento ou compromisso com seu tempo. Há um imenso vazio e mesmo as bandas que cultivam um certo ativismo parecem mais interessadas no marketing que isso pode gerar.

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  2. Vicente, sem dúvida não. Primeiro, temos que levantar a seguinte questão: o rock, enquanto forma de protesto e de afirmação (do inconformismo, da identidade de grupos e subgrupos, da veiculação de idéias…), foi o filho bastardo de um tempo de transformações e de conflitos e tensões em todas as escalas e instâncias da sociedades dos países ocidentais. O reconhecimento de sua paternidade foi proporcionado pelo show bussiness, que o alçou à condição de gênero musical de massas, sendo que nos seus primórdios, foi extremamente marginalizado (principalmente quando suas estrelas eram negros como Chuky Berry e Little Richards, pioneiros nos anos 50). O rock, então, surgiu neste contexto: a Guerra-Fria, as guerras da Coréia e do Vietnã, as ditaduras capitalistas e comunistas, o imperialismo, a revolução sexual, os movimentos pacifistas, feministas e pelos direitos civis dos negros, a proeminência das minorias, o young power, a liberalização das drogas, as tranformações no comportamento, a revolução na moda e nos costumes, a corrida espacial, o avanço tecnológico e científico, as guerras de guerrilha, revoluções e golpes de Estado mundo afora e etc. No Brasil, o rock adquiriu o status de música de massa e abordou temas mais claramente contestadores nos anos 80, num contexto de rupturas e transformações agudas, pois foi nesse decênio em que se afirmou o processo de urbanização do país (embora de forma precária, diga-se de passagem); o fim da ditadura militar e a exposição das vísceras da vida nacional, com todos os danos a ela causados, pois com a derrocada do regime automaticamente afrouxou-se a censura, o que, mesmo assim, não evitou que muitos músicos e canções fossem alvo da recriminação instituicional; o surgimento dos movimentos sociais como o MST; a inflação e os planos econômicos; a juventude respirando os ares da modernidade e urbanidade tupiniquim; e a contradição entre consumo e miséria na “terra dos banguelas”.
    Hoje, num mundo ainda contraditório, mas sem grandes causas; com a exacerbação do individualismo; sem antagonismos reais e modelos políticos alternativos factíveis; com o mercado encarado como um deus intocável, sendo a causa e o finalidade; e com transformações quase que instantâneas – onde o que ocorreu a um segundo atrás é como se tivesse ocorrido há 15, 20 anos – também refletiu um rock… digamos… “longe de suas tradições”. E há até gente especializada no tema que defende inclusive a tese de que o gênero musical morreu. E assim temos que ficar aturando nosso filhos, primos, enteados e sobrinhos, que consideram NX Zero, For Fun, Charlie Brown JR e outras porcarias “rock and roll radical”. E o que é pior: acham que Led Zeppelin é alguma grife de jeans e que The Beatles é música de “velho e tiozinho”. Pobre rock and roll, pobre juventude…

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