
O mundo do futebol está cheio de jogadores que mudam de time. A expansão do negócio permitiu que essas contratações sejam cada vez mais frequentes, e a globalização possibilitou que haja cada vez mais informações disponíveis e que os jogadores se tornem mercadoria valiosa. Um desses jogadores migratórios foi Carlos Henrique Raposo, que passou por vários clubes e neles teve uma trajetória singular: ainda que recebesse um salário, não disputou nenhum jogo.
Raposo é conhecido no mundo do futebol como o maior golpista que viveu desse esporte tão popular. As estatísticas são notáveis: atuou como jogador por 20 anos e esteve em 15 clubes diferentes, alguns tradicionais: Botafogo, Flamengo, Puebla, Bangu, América, Vasco da Gama, Fluminense e Independiente.
Pode-se dizer que soube aproveitar ao máximo seus dons. Alguém poderia pensar que tivesse um chute extraordinário ou faro de artilheiro. Não, sua maior virtude era a de fazer amizade com grandes jogadores para conseguir ser contratado.
Bom papo, simpático e comunicativo, conseguiu se relacionar bem com craques do calibre de Romário, Renato, Bebeto, Maurício, Gaúcho, Branco e Edmundo. O primeiro passo era tentar convencê-los, aproveitando-se da intimidade criada, a incluir sua participação nos contratos firmados com os clubes. Picaretagem pura e simples.

Kaiser tinha várias maneiras de evitar encostar em uma bola de futebol, ato que desmascararia toda a sua farsa. O principal método era se fingir machucado nos treinos, por isso até pagava os mais jovens para dar uma entrada violenta (ou quase) nele. Ou então, inventava a suposta morte de sua avó, que devia ter pelo menos sete vidas, pois “matou” a pobre senhora diversas vezes para não entrar no campo.
Raposo conta que, após 20 anos de carreira, nunca disputou jogos oficiais no Brasil. Fora do país, alcançou a impressionante marca de 30 jogos atuando pouquíssimos minutos em cada um deles. Conseguir a média de menos de um jogo por ano de “carreira”, coloca Kaiser na condição de autêntico recordista.

MALANDRAGEM
Como era um gênio das mentiras, este falso jogador de futebol não deixava espaço para erros. Seus companheiros de equipe gostavam dele, fazia amigos nos bastidores e também conseguia conquistar o público. Algumas dessas pessoas foram pagas para gritar seu nome quando o presidente do clube estava perto, bem como repórteres para falar bem dele na mídia.
O próprio Raposo explica sua maneira de agir para se tornar amigo de jogadores consagrados. “A gente se encontrava num hotel e eu levava mulheres para eles”. E explica a técnica: “Alugava apartamentos com uma diferença de dois andares dos jogadores, assim ninguém precisava sair do hotel.”

Além de oferecer facilidades aos amigos jogadores, Raposo cuidava para que não faltasse nada a eles no dia a dia, encarregando-se de pagamentos e pequenas compras pessoais. O problema é que, indicado por eles aos clubes, devia também mostrar serviço nos treinos. Sem a menor habilidade para o jogo, era o jeito caprichar na malandragem.
Sua alcunha no mundo do futebol devia-se ao único atributo que lhe permitia passar-se por jogador: o físico. Sua aparência era muito similar à do superastro alemão dos anos 70, Franz Beckenbauer, cujo apelido era Kaiser. A partir dessa semelhança com Beckenbauer, campeão do mundo em 1974, que se originou o apelido.
No final dos anos 80, Raposo conseguiu, no futebol, o seu primeiro contrato ou, o que muitos consideravam, seu primeiro golpe, já que foi convocado pelo simples fato de estar ligado a uma figura do meio. O atacante Maurício foi quem o levou ao Botafogo, onde era ídolo – marcaria o gol do título alvinegro de 1989. O vínculo entre eles tinha nascido na infância e ganhou importância nos anos seguintes.

TRANSFERÊNCIAS
Assim como os comediantes quando sobem ao palco para iniciar seu monólogo num stand-up, Raposo tinha seu método para viver o dia a dia no clube: “Fazia algum movimento estranho, fingia dor, tocava minha coxa e ficava 20 dias no departamento médico”. Era assim que, numa época em que as ressonâncias magnéticas não existiam, esse atleta fictício se mantinha no clube.
Por mais que soe hilário, Raposo conseguiu concretizar sua primeira transferência, passando a jogar no Flamengo. Tudo graças a Renato Gaúcho, um de seus grandes amigos. Hoje, o atual técnico do Grêmio recorda as façanhas de Kaiser. “Eu sabia que o Kaiser era inimigo da bola, então combinava com um colega que batesse nele e, assim, o mandávamos para a enfermaria”.

Durante sua passagem pelo Flamengo, seu modus operandi incluía um toque mais sofisticado. Raposo chegava aos treinos com um celular, o que, à época, demonstrava um status econômico superior. Diante dos companheiros, ele simulava uma conversa em inglês ao telefone fazendo crer que estava falando com dirigentes de equipes europeias interessadas em contratá-lo.
Em algum momento, a malandragem quase foi abaixo. Um médico do Fla, que havia morado na Inglaterra, o desmascarou. Apesar de toda a equipe, dos jogadores e da parte técnica acreditarem nas lorotas em inglês, o médico explicou que os diálogos que Raposo mantinha pelo celular não faziam sentido. Apesar do vexame, nosso herói não se abalou e seguiu na sua inusitada trajetória futeboleira.

AVENTUREIRO
A vida o levou a fingir ser jogador por vários anos, mas antes ele se virou em diferentes tarefas. Foi quebra-galho, gigolô – homem mantido por mulher, muitas vezes em troca de sexo -, faz-tudo, manobrista e até planejador de festa.
Kaiser se compara a Jesus ao justificar suas ações: “Eu só queria ser um esportista e não queria jogar futebol”. E acrescenta: “Se todas as outras pessoas queriam que eu fosse um jogador de verdade, esse era um problema delas”. Para arrematar, sem pudor: “Mesmo Jesus não conseguiu agradar a todos, por que eu faria isso?”.
O futebol da América do Norte abriu as portas de maneira generosa para esse boleiro especial. Decidido a aplicar golpes além-fronteira, deixou o Brasil com a cara e a coragem, valendo-se da proximidade com amigos famosos, como Carlos Alberto Torres e Zico. Foi contratado pelo Puebla, do México, onde também não jogou. Depois, resolveu invadir os EUA: “Eu assinava o contrato de risco, o mais curto, normalmente de poucos meses e recebia as luvas do contrato”, conta.
Suas peripécias pelos Estados Unidos e pelo México duraram apenas dois anos. Voltou ao Brasil e foi então que, no Bangu, do bicheiro Castor de Andrade, protagonizou uma de suas grandes histórias.

Certo dia, para seu pavor, foi escalado porque muitos jogadores estavam suspensos e contundidos. Quando aquecia à beira do campo, não teve dúvidas: inventou uma briga fictícia com um torcedor por causa de suposta ofensa gritada ao treinador. Tudo isso para que conseguisse ser expulso antes de entrar para “jogar”.
Minutos depois de ser expulso, ele teve que enfrentar o treinador no vestiário. Quando ele estava pronto para encará-lo e repreender sua atitude em campo, Raposo se adiantou: “Deus me deu um pai e depois me tirou. Agora que Deus me deu um segundo pai – referindo-se ao técnico – não deixarei que nenhum torcedor o xingue”.
Seu período no Ajaccio da França foi movimentada. Até jogou (por 20 minutos), mas não lembra detalhes da partida e nem o nome do clube adversário. Poucos minutos depois de entrar em campo, ele disparou a correr e os fãs deliravam porque, apesar de estar lesionado, Raposo não abandonava o campo pelo amor à camisa. Uma loucura!

DOCUMENTÁRIO
Sua história de vida começou a se espalhar e se tornou famosa. Em 2015, uma empresa britânica comprou o direito exclusivo de lançar um documentário que inclui entrevistas com Carlos Alberto, Zico, Bebeto, Junior e Renato Gaúcho, além do depoimento do próprio astro. O documentário tem lançamento previsto para este ano.
Como muitas lendas que foram se estabelecendo ao longo do tempo, as circunstâncias de vida que Raposo viveu naqueles vinte anos de sua vida já parecem surreais. Anos já se passaram, mas em sua memória permanecem histórias com detalhes fantásticos. Embora tudo até pareça mentira, uma coisa que temos certeza: essa loucura toda realmente ocorreu devido aos variados testemunhos que a sustentam.
Renato Gaúcho, que era um dos jogadores de futebol brasileiro mais destacado da época, o chamou de “o maior jogador de futebol de todos os tempos”.
A arma de sedução de Raposo era sua maneira de falar e o que ele expressava. Ele tinha uma maneira de se comunicar que era único. O atacante Bebeto, destaque brasileiro na Copa do Mundo de 1994 nos Estados Unidos, declarou: “Ter uma conversa com ele era tão bom que, se você o deixasse abrir a boca, ele iria pegar você e seduzi-lo. Você não conseguia evitar, era o fim”.
“Toda a minha vida girou em torno do sexo”, confessa. “Se eu fosse a uma boate, e passava 10 minutos com uma menina, eu tinha que a levar em algum lugar, fosse um banheiro, ou o primeiro cubículo que eu encontrava”, diz. Atualmente, e depois de ter desfrutado por anos de um salário de jogador que não merecia, ele passa seus dias na academia como “personal trainer” para mulheres. Com mais de 50 anos, já não consegue se passar como jogador, porém continua sendo um atleta, sem perder a velha lábia.

Tranquilo, Kaiser diz não sentir qualquer remorso dos golpes que aplicou: “Não me arrependo de nada. Os clubes trapacearam e ainda trapaceiam muito os jogadores. Alguém tinha que se vingar deles”. Justiceiro ou um mero impostor?
(Com informações e fotos da ESPN e do site Desafio Mundial)