Verissimo: “O brasileiro está mudando de caráter”

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POR FLÁVIO ILHA, no Extra Classe

O cidadão Luis Fernando Verissimo, 81 anos, nascido em Porto Alegre no dia 26 de setembro de 1936, está oficialmente livre desde 1º de setembro de 2017. Demitido da RBS depois de 40 anos de contribuição quase diária, o escritor, cronista, músico, desenhista e pensador tem agora um imenso desafio pela frente: manter atualizado o recente contrato de comodato que firmou com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). O acervo de textos, rascunhos, traduções, cartuns e outras criações está sendo transferido para a biblioteca do novíssimo campus de Porto Alegre. Tarefa difícil, já que o acervo é composto por 382 livros, entre títulos do autor, antologias e edições estrangeiras, mais de mil títulos de periódicos, além de troféus, quadros, esculturas e outros objetos recebidos pelo escritor como forma de homenagem. Difícil porque Verissimo ainda está em pleno exercício produtivo. E também porque não pretende morrer tão cedo.

“Eu acho que o acervo devia ser apenas de obra acabada, o que evidentemente não é o caso. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo”, brinca Verissimo com sua ironia contumaz. Formalizado na última quarta-feira, 13, o acervo irá ocupar a partir de agora, segundo Verissimo, “um cantinho” da biblioteca da Unisinos e estará disponível para consulta por estudantes, pesquisadores e público em geral.

Com recorrentes problemas de saúde desde meados de 2013, que lhe renderam algumas semanas em UTIs e muitas horas em salas de cirurgia, o escritor continua sagaz e extremamente crítico, especialmente com os rumos do Brasil.

Elegante e discreto, diz que sua demissão da RBS – depois de uma ruidosa homenagem pelos seus 80 anos, comemorados em 2016 – foi uma decisão administrativa. Mas sabe que, na prática, foi o último laço profissional que o ligava ao Rio Grande do Sul – descoberto pela L&PM, há anos ele publica seus livros pelo selo Cia. das Letras. “Hoje, a única relação do pai com o Rio Grande do Sul é apenas morar em Porto Alegre”, lamenta a filha Fernanda, que junto com a esposa Lucia ajuda a cuidar do acervo do cronista.

A demissão da empresa que ajudou a revela-lo nacionalmente e se tornar um best-seller acabou determinando a interrupção de projetos que tomavam tempo demais do escritor, como as tiras semanais da Família Brasil e os textos semi-ficcionais publicados aos domingos no jornal O Estado de São Paulo. “Eu realmente estava trabalhando com coisa demais, então foi só para trabalhar menos. Como fui demitido da Zero Hora, não tinha mais sentido manter só para um jornal”, diz nesta entrevista para o ExtraClasse, realizada na sexta-feira, 15, no escritório intocado que foi do pai, o romancista Erico Verissimo.

Na conversa, Verissimo relatou um pouco sua relação com a escrita, as preocupações com a onda reacionária que toma conta do país e o arrependimento de não ter seguido a carreira de músico – o escritor é um saxofonista amador desde os 16 anos. “Eu lamento não ter me aprofundado na música porque hoje eu preferiria ser músico do que qualquer outra coisa”, confessou. Divertido, paciente, com sua conhecida parcimônia com a palavra falada, Verissimo chegou inclusive a revelar qual livro seu poderia ser queimado em praça pública pelo MBL – quando esse momento chegar. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Extra Classe – Por que essa ideia de ceder seu acervo a uma instituição universitária?
Luis Fernando Verissimo – A ideia do acervo é justamente essa: pesquisadores, estudantes e qualquer pessoa se informar sobre o autor, fazer pesquisa, essas coisas. Está ali para quem quiser ver. Então, o acervo vai ser um cantinho ali da biblioteca da Unisinos (no campus de Porto Alegre). Ficou simpático. Por enquanto reunimos material físico, mas é uma discussão que temos de ter. De vários anos para cá os textos são digitais, não há mais originais impressos. E muito material está só no formato digital, nunca foi para uma publicação física.

EC – Começa em 1969?
Verissimo – Sim, com as primeiras publicações na Zero Hora. Algumas coisas de publicidade, também, muitos anúncios publicados, com autoria. Roteiros da TV Pirata, da Comédia da Vida Privada. E vai para lá também um exemplar de cada primeira edição, as traduções em russo, inglês, francês, italiano, coreano, sérvio. Tem troféus, presentes.

EC – Os horóscopos não?
Verissimo – Não, acho que não (risos). Tem muita ilustração, também. Campanhas da Ipiranga, da época da (agência) MPM. Coisas que a Lúcia guardou ao longo do tempo. Tem muito rascunho, muitos papéis avulsos. Frases. Muitos desenhos, geralmente de figuras humanas. Mas nada feito para usar em textos, é só passatempo mesmo. Enquanto se está pensando sobre que escrever, vou desenhando. Nesse caso, apelo muito para o jogo da paciência também. Mas isso não está indo para o acervo (risos). A tesoura da Lúcia é incrível.

EC – Era hora de fazer isso?
Verissimo – Sim, estava na hora. Todo esse material estava guardado aqui em casa, numa catalogação caseira, doméstica. A ideia da Unisinos, desde o início, há cerca de dois anos, era que o acervo ficasse em Porto Alegre. Viesse junto com a abertura do novo campus, o que acabou ocorrendo. A ideia é de o acervo ser usado por diferentes áreas, o que me agrada.

EC – Qual é a sensação de virar um acervo?
Verissimo – Eu acho que o acervo devia ser a obra acabada, o que evidentemente não é o caso (risos). A minha biblioteca pessoal naturalmente não vai para lá, o que é um elemento importante de pesquisa, saber quem me influenciou, o que eu li. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo (risos). Mas não vou reclamar, não.

EC – Teus livros têm anotações? Ou páginas dobradas nos cantinhos
Verissimo –
 Anotações não. Mas páginas dobradas nos cantinhos têm bastante. Só que às vezes, como não tem anotação, esqueço por que marquei aquela página. (risos)

EC – Como lidar com um volume tão extraordinário de informação, necessário ao teu ofício?
Verissimo – O grande problema é que esse ofício, de escrever sobre o que está acontecendo de fato, não me permite mais ler livros, literatura de ficção. Faz anos, nem sei quantos, que não leio um livro de ficção inteiro. Apenas trechos esparsos. O prazer de ler, que me levou a esse caminho, ficou de lado. Leio muita revista, muito ensaio, jornais estrangeiros.

EC – Isso te incomoda?
Verissimo – Sim, porque perdi o prazer da leitura descompromissada. Estou perdendo muita literatura boa, de novos autores. Conheço muito pouco do que se produz atualmente. E lamento muito não ter esse tempo para autores novos.

EC – Tu achas que a tua primeira crônica (publicada em abril de 1969) já era uma credencial do que serias dali para a frente? As tuas características principais já estão ali.
Verissimo – Eu acho que sim. Eu comecei muito tarde, então já tinha lido muito durante toda a juventude. Nunca tinha escrito nada mas, como tinha lido bastante, sabia como se fazia. Quando comecei eu já sabia, estava formado.

EC – Nunca ensaiaste nada? Nunca escreveste para ti mesmo?
Verissimo – Não, nunca. Nunca me vi como escritor, nem como jornalista. Tinha apenas algumas traduções, publicadas na (revista) Mistério Magazine. Nem lembro os autores, mas basicamente americanos e ingleses, de suspense, terror. Mas o fato de sempre ter sido um leitor voraz, quando comecei já conhecia os truques todos.

EC – E os cartuns?
Verissimo – Sempre gostei muito de quadrinhos, então comecei a variar entre texto e cartum. Especialmente nas colunas de segunda-feira, em que eu fazia a crônica do futebol do domingo em desenho. Bonequinhos dialogando sobre os jogos do domingo.

EC – Quem te influenciou nessa área?
Verissimo – Principalmente Saul Steinberg (1914-1999). Meu desenho era muito rudimentar, não tinha acabamento. Fazia com canetinha mesmo, em qualquer papel. Cheguei a fazer um curso de desenho com o Glênio Bianchetti (1928-2014), desenho, pintura, trabalhávamos com modelo vivo, essas coisas. Por um ano mais ou menos. Mas não passou disso. Nunca fiz uma tela.

EC – Tem algum livro novo sendo organizado?
Verissimo – A Cia das Letras está organizando um volume de crônicas que estão sendo selecionadas pela (roteirista e escritora) Adriana Falcão, que deverá sair até o final do ano. Basicamente com as crônicas mais ficcionais, publicadas aos domingos no Estadão. As crônicas sobre política atualmente perdem a atualidade com muita rapidez.

EC – Como estás acompanhando a conjuntura política?
Verissimo – A novidade é essa nova direita, que sempre existiu mas está mais evidente agora. É uma onda de reacionarismo que me preocupa muito. Imaginar um cara como o Bolsonaro com os índices de intenção de votos que ele tem é realmente preocupante.

EC – Já foste alvo de alguma agressão ou ameaça?
Verissimo – Recebo muita carta desaforada, dizem para eu viver em Cuba, me chamam de comunista, uma vez até me mandaram viver na Coréia do Norte! Seria uma experiência muito boa. Quer dizer, boa não sei, mas pelo menos diferente (risos). Eu não dou bola, é claro.

EC – Alguma ameaça?
Verissimo – Só na candidatura do Collor (em 1989). Me mandaram uma carta ameaçando meus filhos, que sabiam da rotina deles, iam atacar e tal. Mas não fizeram nada. O tom de agressividade subiu nos últimos meses, é verdade, mas não chega ao extremo da ameaça violenta.

EC – Qual livro teu colocaria à disposição dessa nova direita para que seja queimado em praça pública, quando chegar o momento?
Verissimo – (risos) Tem um livro meu com crônicas bem políticas, A Versão dos Afogados (L&PM, 1994), que imagino que eles gostariam de queimar. Está meio desatualizado, mas acho que isso não fará muita diferença (risos).

EC – E a tua relação com a ficção?
Verissimo – A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os Espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os Orangotangos Eternos (Cia.das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias.

EC – Por escrever entretenimento?
Verissimo – É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito… (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial.

EC – Como esperas contribuir para que novos leitores entendam esse período da história brasileira?
Verissimo – Meu trabalho é testemunho desse tempo, isso pode ser lido em todos os cronistas. Quem quer saber como era o Brasil nos anos de 1960 vai ler Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria. Se eu puder fazer isso também, estará bom.

EC – Que tipo de testemunho acha que deste?
Verissimo – Nós falamos há pouco sobre essa nova onda reacionária, coisas que hoje são preocupantes que há algum tempo, pouco tempo, não eram. Apesar desse conflito social no Brasil ser permanente. O que mudaria no meu jeito de ver a realidade seria um crescimento nesse jeito de ação reacionária evidente e preocupante.

EC – Na tua opinião, não para por aí?
Verissimo – Acho que não para. Principalmente por essa desmoralização crescente do Congresso e da política em geral, isso motiva as pessoas que imaginem a solução num governo de força. Não sei se é inevitável, mas é uma ameaça real. Um perigo. Quando se poderia esperar tanta nostalgia da ditadura, mesmo sabendo de tudo que aconteceu? Isso é surpreendente. Comecei em plena ditadura, no governo do general Médici, então a gente já sabia dos limites. Sabia quem citar e quem não citar. A censura era implícita, havia autocensura, e eu tentava escrever nas entrelinhas mas às vezes nem eu entendia o que queria dizer. (risos)

EC – Temes a volta da censura?
Verissimo – Acho que isso é possível, sim. Eu me preocupo com isso. Há uma ameaça e uma tendência possível de ser notada aí.

EC – E o que achas do MBL?
Verissimo – Começa com a ironia do próprio nome: Brasil Livre. Livre de quê? É só uma das manifestações do que pode nos esperar no futuro. Esse tipo de pressão, esse tipo de censura, tem até características paramilitares, o que preocupa até a imprensa internacional.

EC – O brasileiro deixou de ser aquele homem cordial do Sergio Buarque de Holanda?
Verissimo – Quando a gente fala no perigo desse crescimento da direita está se referindo a isso, que não sei aonde vai nos levar. Certamente está havendo uma mudança no caráter do brasileiro, na personalidade comum do brasileiro. Estamos nos transformando, para continuar na comparação que você fez, no brasileiro selvagem. Acho que estamos ficando mais intolerantes.

EC – Por quê?
Verissimo – Em parte em razão desse desencanto com a política, culminando no desencanto com o PT. Foi uma promessa que apareceu mas que, no entanto, degringolou. Não sei se é para a gente perder a esperança no PT ou ainda não, se esse partido pode nos dar algum tipo de esperança, mas o fato é que houve um acúmulo de desencanto que culminou no que estamos vivendo.

Papão libera Lombardi e traz zagueiro da Série C

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Enquanto Fernando Lombardi está indo embora, liberado pelo clube, um novo zagueiro já treina na Curuzu para compor o grupo de defensores para o restante da Série B. É Douglas Santos, que disputou a Série C pelo Salgueiro. Ele chegou ontem e já foi inscrito na competição, tendo seu nome registrado no Boletim Informativo Diário (BID), da CBF. Apesar de ter sido liberado para jogar, Douglas não foi relacionado pelo técnico Marquinhos Santos para a partida deste sábado diante do ABC. (Foto: FERNANDO TORRES/Ascom-PSC)

Ministro do STJ critica Moro e condenações prévias na Lava Jato

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POR FERNANDO BRITO, no Tijolaço

Não saiu nos jornais, porque os alvos foram o “querido Moro” e a “sagrada Lava Jato”.

Mas o que disse o ministro Sebastião Reis, do Superior Tribunal de Justiça, em palestra realizada ontem no Instituto Vitor Nunes Leal, que congrega  juristas – vários deles ex-integrantes do Supremo Tribunal Federal e do próprio STJ é notícia, porque ele foi muito mais direto que o gaguejar de Ricardo Lewandowski na crítica à Lava Jato.

Foi na veia de Sérgio Moro:

“Não posso admitir e concordar com juiz emitindo nota para a imprensa, vídeos na internet, filme com tapete vermelho, dando entrevista para falar não de casos que poderá vir a apreciar, mas de casos que já está examinando naquele momento”

Criticou, sem meias palavras, a “condenação obrigatória” , pré-determinada ao Judiciário pela mídia:

Hoje em dia, não é mais necessário ter coragem para prender alguém, mas para absolver um inocente. “[O magistrado] começa a decidir de acordo com o que o povo quer ouvir, no que a imprensa quer ouvir, naquilo, vamos dizer, chamado de politicamente correto, mesmo que não seja o que está imposto na lei, não reflita o que está no processo”.

No site jurídico Conjur, onde suas declarações estão registradas (sem destaque) diz-se que ele  afirma que “o Ministério Público e a polícia usam a imprensa com o intuito claro de criar pano de fundo favorável à acusação em processos e para defender projetos de lei absurdamente imorais, aproveitando-se da sanha acusatória que toma conta do país. Com isso, qualquer um que discorde dos órgãos de acusação é taxado como inimigo, cúmplice de bandido e favorável à corrupção.

“(…) ele afirmou que há um silêncio “assustador” em órgãos que deveriam protestar contra essa atuação, mas se calam e, pior, muitas vezes aplaudem e incentivam esse tipo de procedimento. “Vejo a Ordem dos Advogados do Brasil se calando e em várias oportunidades pedindo que documentos ocultos sejam tornados públicos”, discursou, aplaudido por todos os presentes, entre eles, os ministros aposentados do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso, Ayres Britto e Sepúlveda Pertence.
Ele lamentou que esse tipo de prática também esteja presente no Judiciário e citou casos em que tornam público um documento porque ele já foi divulgado de forma informal. “É um contrassenso, pois dizem que não adianta preservar como oculto algo que já foi noticiado, mas nenhuma atitude é tomada em relação ao vazamento, [nem para investigar] quem é o responsável ou, ao menos, medidas para complicar, controlar esse tipo de situação”, observou.
A omissão das instituições, apontou, levou o Brasil a uma situação absurda, onde as pessoas precisam ter coragem para defender o que acham justo. A presunção de inocência, segundo ele, acabou. E um dos motivos disso é uso indevido da mídia por instituições. “Quem é exposto na imprensa, independente se de maneira justa ou injusta, do dia para noite está condenado”, lamentou.

Ainda há juízes em Berlim. Jornalistas, nas editorias, não sei…

Manifestações como as de 2013 provavelmente se repetirão

POR VLADIMIR SAFATLE, na Folha 

Um dos traços mais evidentes do pensamento oligárquico está em sua forma de descrever o povo e as massas.

São normalmente representações de uma espécie de sonâmbulo que age de forma irrefletida e nunca escapa por completo de um estado de sonolência.

Daí as injunções sobre o estado de anestesia do povo, de sua apatia e indiferença. No Brasil, tal pensamento está tão enraizado que o país costuma se ver a si mesmo como um gigante dormindo.

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No entanto, há de se perguntar se muitos não confundem deliberadamente o povo com suas representações pelo poder e pelas instâncias que procuram construir um imaginário social.

Assim, por exemplo, uma história como a brasileira, marcada por sucessões de revoltas populares (Cabanada, Revolta de Carrancas, Cabanagem, Revolta dos Malês, Sabinada, Revolta do Quebra-Quilo, Revolta do Vintém, Canudos, Revolta da Chibata, Contestado, Coluna Prestes, Luta armada contra a ditadura de 1964) é apresentada como o movimento plácido de um povo servil e cordial.

Foi assim que as manifestações de junho de 2013 pegaram todos de surpresa. A despeito de o ano ter começado com uma impressionante sequência de greves, da frustração relativa resultante do fim do processo de ascensão social ser palpável no ar, da revolta contra promessas não cumpridas (seríamos a quinta economia mundial, nossas grandes cidades seriam repaginadas por investimentos vindos da Copa do Mundo e das Olimpíadas etc.), ninguém parecia perceber nenhuma placa tectônica movendo-se abaixo do solo brasileiro.

Até que a revolta explodiu.

Projeções temporais não têm validade objetiva, é verdade. Mas elas podem indicar latências da situação atual, possíveis, de que muitos gostariam de nem sequer tomar ciência.

O fato é que algo como Junho de 2013 provavelmente se repetirá.

A verdadeira questão é se estaremos preparados para isso ou se iremos perder a oportunidade, mais uma vez, de colocar abaixo a estrutura institucional degradada e sua casta política.

O nível de desencanto e insatisfação popular chegou a níveis dificilmente descritíveis.

A despeito da propaganda massiva de defesa do que se chama de “política econômica” atual, a rejeição por parte da população é tenaz e completamente majoritária.

À parte os economistas do Itaú e do Bradesco, ninguém apoia tal “política”.

O sentimento generalizado de espoliação e desrespeito está aí para quem quiser ver.

Por outro lado, os níveis de rejeição à classe política são absolutos. Há dias, o Instituto Ipsos publicou uma pesquisa sobre a percepção das brasileiras e brasileiros a respeito dos representantes políticos.

Somando aqueles que desaprovam totalmente ou um pouco, os números são da ordem do inacreditável.

Michel Temer tem 93% de reprovação, seguido de Aécio Neves com 91%, Eduardo Cunha (91%), Renan Calheiros (84%), José Serra (82%), o endeusado pela imprensa FHC (79%), Dilma (os mesmo 79%, mas com um índice maior de aprovação do que FHC), Alckmin (73%) e Lula (66%).

Primeiro, há de se salientar o descompasso entre como a população avalia e como setores majoritários da imprensa falam sobre a percepção popular.

Que todos os cardeais do PSDB sejam mais reprovados do que Lula, eis algo que merecia uma reflexão honesta.

Que um ocupante da Presidência tenha 93% de reprovação e continue fazendo a mesma política, eis um caso de internação forçada.

Por fim, a mesma pesquisa mostra que aquele que tem menor reprovação (Dória, com 52% e apenas 19% de aprovação) continua tendo um número monstruoso.

Ou seja, todos sem exceção tem mais de 50% de reprovação. Isso demonstra o descolamento entre a casta política e o povo que ela julga representar.

Sinais dessa natureza mostram como há uma latência de explosão no Brasil.

Como a história não é o terreno do necessitarismo, são as configurações contingentes que determinarão se tal latência passará ao ato ou não.

Mas é certo que um outro 2013 é possível.

Nudes, água gourmet e pouco rock’n’roll

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POR XICO SÁ, no El País

A partir das exigências do Rock In Rio,

uma crônica sobre derrota política e

hedonismo envergonhado

Eis que me pego, cronista de costumes profissional, no baculejo da lista de exigências dos artistas do Rock In Rio 2017. Fontes murmurantes de água gourmet, caro M.C. Karam, chá de todas as procedências e uma linha de suco verde capaz de fazer clorofilar o Incrível Hulk.

No lugar do barulho das guitarras, solos de centrífugas e liquidificador.

Guns N´Roses pelo menos manteve o humor: balinhas gelatinosas em formato de ursinho. Fofo no mofo.

Só o velho The Who pediu bebida alcóolica – melhor morrer de vodka de batata do que de tédio.

Sintomas de uma nova era, dirá o leitor comedido e à prova de assombros. Normal, soprará um amigo normalíssimo e paulistano. Acaba, mundo véiogourmetizado sem porteira, grunhirá uma voz roqueira mais ou menos dinossáurica.

Não revelaram ainda a lista de exigências da Nação Zumbi, que toca Secos & Molhados com Ney Matogrosso. Não me decepcionem, malungos. Estou de olho neste mafuá.

E que os meganhas das redes sociais, com sua patrulha moral de bairro, não me venha com essa de apologia. É que rock com leite de amêndoas (pedido do Def Leppard), sei não, deixa pra lá.

São tempos estranhos de um certo hedonismo envergonhado. E não apenas no que sobrou do rock´n´roll. Tempos de cerveja sem álcool, café sem cafeína, massa sem glúten, feijoada sem pé e orelha, sexo sem sujeirinhas… A que estadão das coisas chegamos, nobilíssimo escriba Reinaldo Moraes!?

Futebol sem a bola no Brasileirão, centro cultural sem arte provocativa, movimento liberal a favor da censura braba, bis de denúncia do golpista sem panelaço, prefeito eleito para a vida real que faz gestão no Facebook, a pátria ecumênica chutando a macumba no beco, o país do Carnaval e de Jorge Amado contra o erotismo.

Nudes, água gourmet e quase nada de rock´n´roll.

Chupa, cronista casmurro, perdeste em 68 (viva a imaginação uma ova!), perdeste em todos os golpes, amém, e até o punk morreu. Só resta lamber o frio chicabon da nostalgia. Bem-feito.

Acaba, mundo véio sem porteira, mas aos pouquinhos, não com bombas coreanas ou americanas, devagar, devagarzinho, afinal de contas, subscrevo os versos do irmão piauiense Torquato Neto:

“Eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranquilamente/todas as horas do fim”.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Catecismo de devoções, intimidades & pornografias” (editora do Bispo), entre outros livros. Comentarista dos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.

A origem de “coxinha”

POR MÁRCIA TIGANI, via Facebook 

Quando estou entre meus amigos eu costumo relatar uma historieta acerca da gênese da expressão “coxinha”. Hoje, depois que um amigo me pediu para contá-la novamente, eu achei que seria uma boa hora para registrá-la por aqui para que todos vocês pudessem conhecê-la.

O nome/termo “coxinha” veio de uma gíria já existente há décadas na cidade de São Paulo e que antes designava apenas um xingamento direcionado aos policiais. “Encarregados de fazer a ronda, eles se alimentavam de coxinha em bares e lanchonetes – e, em troca, garantiam a segurança local.” Prestavam, em meio ao seu turno de serviço público, um bico de segurança momentânea a certos comerciantes que lhes ofereciam como pagamento apenas migalhas (coxinha e café coado).

Esses policiais costumavam e ainda costumam espantar das portas das padarias e similares os pivetes e os jovens moradores das comunidade locais. Eles costumavam e costumam espantar/afastar jovens que muitas vezes cresceram juntamente com seus irmãos e que por vezes frequentaram ou frequentam as mesmas escolas que eles frequentaram. Ou seja, são todos conhecidos, têm o mesmo berço econômico e social.

Tais jovens, ao serem “afastados/espantados” para longe dos estabelecimentos comerciais guardados pelos policiais ficavam furiosos e gritavam para os tais policiais: “Seu coxinha, você sabe que eu não sou bandido. Você me conhece. Você está defendendo esse cara em troca de uma mísera coxinha. Coxinha, coxinha!”

Ou seja, o coxinha, naquele contexto, era um xingamento dirigido a um policial que se escondia de sua própria condição (pobre, favelado e sem estirpe, mas que enganado por seu uniforme, pensava ser igual ou próximo ao rico comerciante e o avesso dos jovens pobres que ele espantava do local).

A expressão coxinha passou então a ser sinônimo daquele que defende um status quo ao qual ele não pertence. Ele defende os ricos, pensa ser rico, mas na verdade é um objeto a serviço dos ricos. Um instrumento para subjugar os seus iguais. O coxinha nunca terá o poder de um Aécio, dos Marinho ou de qualquer outro milionário ou mero empresário, mas ao defendê-los, o coxinha julga ser igual a eles.

Esses milionários não reconhecem o coxinha como seu par em igualdade, mas sim como um instrumento barato que defende e garante que ele (milionário) sempre tenha mais e mais.

O coxinha (na acepção primeira) é o policial que faz segurança na frente das padarias: defende o rico comerciante, acha que é amigo do dono da padaria, mas no fundo é apenas um instrumento barato. Esse policial vira as costas para os seus iguais, impede-os de esmolar por ali, usa da força para tirá-los do campo do rico comerciante.

Mas, caso uma desventura aconteça e esse policial venha a perder o seu emprego, esse rico comerciante não lhe garantirá direitos, nem comida e nem apoio. De modo oposto, os seus iguais, a sua comunidade, certamente lhe oferecerão o apoio necessário e até farão alguma rifa para ajudar sua família a não passar fome.

É isso: o coxinha é aquele que luta por alguém que nunca, jamais irá garantir-lhe os direitos de que ele precisa. O coxinha é o enganado. O termo se generalizou e passou a descrever o cara que pensa que um governante rico e poderoso irá construir melhorias para os trabalhadores, quando na verdade esses trabalhadores receberão desse tipo de governante apenas migalhas.

O coxinha pensa que é classe dominante. Ele se uniformiza à classe dominante: usa camisa polo de marca, já foi aos States, comprou casa e SUV financiados, critica as cotas e os nordestinos, fala mal do SUS e da ignorância da faxineira. O coxinha é o cara que põe gel no cabelo e sai por aí esnobando o seu brega Rolex e pensa ser igual ao CEO da multinacional. Ambos enganados, ambos coitados, ambos à mercê da fuga de suas origens.

Essa é a história da gênese da expressão coxinha e que eu desencravei há alguns anos em uma das tantas pesquisas que fiz por São Paulo.

Coxinhas são aqueles que viverão ao sabor das migalhas frias acompanhadas de café coado. A eles restará sempre e tão somente a azia e a má digestão, pois quem se iguala ao diferente recebe o que esse diferente acha que ele merece: coxinhas frias e nunca uma CLT.

(*) Márcia Tigani é médica psiquiatra, escritora e poetisa