
Por Márcio Sotelo Felippe
Fatos recentes me lembraram uma frase do jurista alemão Ossip K. Flechtheim, que já citei em textos e palestras. Dizia ele que por uma deformidade profissional difícil de evitar o jurista às vezes tropeça em uma espécie de muralha da China. Juízes, promotores e advogados pensam que entre eles e o delinquente existe um abismo. De um lado o mundo imaculado do Direito e da ordem e de outro o pensamento do mal, da delinquência e do crime atroz. Acrescenta que por trás disso pode haver uma pretensão de superioridade, agressividade pessoal ou mesmo complexo de inferioridade, mas também uma relação de domínio ou vínculo de classe.
Não há um mundo imaculado da ordem.
A palavra ordem parece ter poderes mágicos. Pode transformar a delinquência política ou atrozes crimes do Estado em coisas naturais e corretas. O século XX mostrou como os regimes mais cruéis que a História conheceu agiam em nome da “ordem” e dominavam consciências com essa simples palavrinha.
Bons alunos do mestre Goffredo da Silva Telles aprenderam a desconfiar da palavra ordem desde o 1º. ano da Faculdade: “a desordem é uma ordem que não nos interessa”, dizia ele nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito. Goffredo, como bom Filósofo do Direito, ensinava a pensar sobre o Direito: quando alguém diz a palavra ordem, antes de mais nada veja a quem ela interessa. Ensinava, enfim, a usar o método socrático. Se o seu interlocutor diz “ordem”, pergunte: “o que é a ordem”?
Explicando a frase de Goffredo, Tércio Sampaio Ferraz Jr. dizia que mesmo um depósito de lixo é uma ordem, a ordem ditada pelo ato de atirar os objetos ao solo. A ordem é uma disposição conveniente a um fim. Dizemos que é desordem quando o fim a que ela serve não nos interessa.
A ordem social que está posta aí convém a uns e não convém a outros. Para nós outros, que queremos mudá-la, esta estrutura desigual é desordem. Longe de ser revolucionário, o liberal e progressista Goffredo apontava para o sentido que Marx dava à palavra “ideologia”: o leque de convicções, opiniões e o senso comum que encobrem a dominação de classe e lhe dá a aparência que ilude. E apontava para o que move todos os revolucionários sérios: a ordem pode e deve ser transformada. Não é uma cláusula pétrea, algo como um fato da natureza, como o pensamento conservador (muitas vezes metodologicamente ingênuo) que pensa que a ordem que está posta é sempre “A ORDEM”, e em sua defesa pode-se tudo. Até matar, torturar ou justificar que pessoas sejam jogadas nos depósitos horrendos que denominamos de prisões. Uma tal “ORDEM” entendida como sagrada vale mais que as pessoas, sem que se precise perguntar o que ela expressa de verdade ou qual o seu fim. Talvez não haja coisa mais banal e ao mesmo tempo tão levada a séria do que a ideia de “ordem”, em nome da qual agiram os mais torpes perpetradores de crimes contra a humanidade. Banal no sentido arendtiano: quem diz ordem e não se detém sequer um fugaz instante para refletir sobre o que na verdade está dizendo simplesmente renunciou ao pensamento.
Flechtheim conclui a passagem citada falando da gravidade pseudomoral com que frequentemente se pronuncia uma sentença. Os operadores do Direito agem como representantes de uma ordem imaculada e sagrada combatendo o mal e a desordem. E seria cômico não fosse trágico constatar como tantas vezes transgridem a própria ordem que dizem defender. Pode acontecer, por exemplo, de um juiz coibir os reús de mencionar pessoas que têm foro privilegiado porque com isso retém sua competência. Ou decretar prisões preventivas porque não está satisfeito com as confissões. E então, nas redes sociais ou nos botequins esse juiz é transformado em herói, o justiceiro que defende a “lei e a ordem” e que age em nome do povo brasileiro contra a corrupção e a desordem. Mas garantir o direito de defesa e respeitar as competências processuais não são coisas que fazem parte da lei e da ordem? Parece que há um problema de lógica aí, posto que para defender a ordem deve-se transgredi-la…
Há um clássico do cinema italiano chamado In nome del popolo italiano (Dino Risi, 1971). O título brasileiro é Este crime chamado justiça. Não sei qual dos títulos é melhor. Os dois são ótimos. Um juiz italiano investiga um empresário suspeito de matar uma mulher. Na apuração surge a personalidade do empresário, um inescrupuloso que foi destruindo tudo à sua volta em seu próprio benefício. (Quem não viu e odeia spoiler pode pular agora para o próximo parágrafo). O juiz, ao final da investigação, descobre que a vítima havia se suicidado e o empresário era inocente desse crime. Mas, para o juiz, não era inocente de uma vida abominável. Ele destrói o documento que absolveria o empresário do homicídio e por sua conta o condena pela iniquidade de toda sua vida.
O título italiano e o brasileiro se completam: este crime chamado justiça em nome do povo. As pessoas podem imaginar bons argumentos para defender a atitude do juiz no filme. Vejo uma reles atitude “justiceira” que não pode ser “em nome do povo”.
Quando alguém em tom indignado dispara a palavra “ordem” já vislumbro bombas de gás lacrimogênio. Antes de mais nada, socraticamente, cabe perguntar: o que é a ordem? Nada mais revolucionário do que pensar.
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal. Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o site Justificando.