Pensata: Não haverá vencedores

Por Marcelo Freixo

Dezenas de jovens pobres, negros, armados de fuzis, marcham em fuga, pelo meio do mato. Não se trata de uma marcha revolucionária, como a cena poderia sugerir em outro tempo e lugar. Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida. Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa.
As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.
O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores. Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.
Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática. Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas? É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.
Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza -onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV. Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna “guerra” entre o bem e o mal.
Como o “inimigo” mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da “guerra”, enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual. É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.
O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela. Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente – com as suas comunidades tornadas em praças de “guerra” – não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.
Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário…


Marcelo Freixo, professor de história, deputado estadual (PSol-RJ), é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

12 comentários em “Pensata: Não haverá vencedores

  1. A realidade de hoje é fruto da displicência em combater o tráfico no passado. Como um câncer, esse mal se alastrou e exigiu este aparato todo, mais pensando nas futuras competições que a cidade terá como sede. São Paulo deve ser a bola da vez. Que aproveitem esssa oportunidade para implementar tudo de social que a carência exige e proporcionar aos moradores daquela localidade melhores condições de vida futura.

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  2. TEXTO -LIXO?É CARA-PÁLIDA O BRASILEIRO PRECISA MESMO SE RECICLAR E PARAR DE PENSAR QUE O ESTADO É O RESPSNSÁVEL SOZINHO PELA ORGANIZAÇÃO SOCIO-FILOSOFICA-ECONOMICA DO POVO .PENSAR ASSIM É SER MARXISTA E O MARXISMO NÃO TEM MAIS VEZ NUMA ÉPOCA DE AVANÇO TECNOLOGICOE CIENTIFICISMO.LAMENTÁVEL…

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    1. A precarização das condições de vida nas periferias do Rio de Janeiro, que institucionalizou as favelas (hoje, eufemisticamente chamadas de “comunidades”), remonta ao fim do século XIX, com a abolição do trabalho escravo em 1888. Portanto, é anterior até mesmo ao tráfico de drogas e armas.
      O tráfico de drogas é apenas uma das variadas modalidades criminosas, tais como os assaltos a bancos, as “saidinhas”, os arrastões, os assaltos “comuns”, o sequestro e o tráfico de armas; muito embora todas estas modalidades estejam intimamente articuladas. E o tráfico de drogas, o carro-chefe de organizações criminosas no Rio e em diversos lugares do Brasil, ocupa os vazios de poder e do Estado brasileiro há décadas. Sabemos que as precárias condições de moradia, de saneamento básico, de acesso à educação, a bens e serviços configuram uma constante violação dos direitos e do acesso à cidadania, e o crime encontra neste estado de coisas um terreno fértil para o recrutamento de seus “soldados”. Negar isso é alimentar uma perspectiva a-histórica e de profunda ignorância e negligência com a história de nosso país e da construção do capitalismo à brasileira, que combinou atraso e modernidade, bens de consumo e miséria, condomínios de luxo/especulação imobiliária/concentração de terras e favelões que formam cinturões em torno das grandes cidades e êxodo rural no campo. Não se trata, como querem fazer crer alguns, de “marxismo barato” e sua pretensa inadequação. O mundo “moderno”, “cientificista” (o que nos faz lembrar o “século das luzes” com sua fé cega na ciência) e “tecnologicamente avançado” é tão excludente quanto eras ditas “obscuras” como a Idade Média ou quanto a era das grandes civilizações do mundo antigo, onde imperava a escravidão e as guerras de conquista e expansão.
      Retomando as questões abordadas por Marcelo Freixo, deve se acrescentar outros aspectos que explicam a escalada do crime e da violência articuladas ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro (e, por conseguinte, no Brasil): além das notórias questões políticas, sociais e econômicas, há ainda questões de caráter moral. Estas últimas estão diretamente relacionadas aos valores culturais, à degeneração do tecido social, à desestruturação das famílias, à espetacularização e banalização da violência associada à banalização da vida do “outro” e à concepção do crime não apenas como ato infracional ou violador das leis e do código de conduta social, mas como um “meio” ou “estilo” de vida.

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  3. Estes sociologos de porta de botéco dos “direitos humanos” deveriam adotar todas essas crianças que fujiram pro morro do alemão…Eles devem estar precisando de um colinho.

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    1. É verdade caro Afonso. O grande problema é creditar APENAS ao Estado a opção pela vida criminosa. Fazer isso é desconsiderar a individualidade humana, com suas escolhas e, logicamente, o livre-arbítrio.

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  4. Daniel,
    O fato é que, hoje vivemos em uma sociedade neurótica, ou com problemas de caráter! O que aconteceu com a responsabilidade pessoal de nossa sociedade?
    – Acredito que muitos exageram um pouco no Sigmund Freud neste país, especialmente, na tentativa de justificar o que acontece no Rio de Janeiro. Embora Freud tenha dado imensa contribuição ao campo da psiquiatria, e por isso lhe devemos ser gratos, ele plantou as sementes do determinismo que tem dado á nossa sociedade todas as desculpas para os maus comportamentos, evitando assim assumir a responsabilidade adequada por seus atos.

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  5. As considerações do sociólogo em questão são pertinentes, obviamemte com os devidos reparos oportunistas do partido que professa. É verdade que a melhoria de políticas públicas são os remédios institucionais às mazelas sociais da sociedade dividida em classes (pelo menos nesse aspecto, Marx ainda não está morto). É preciso pontuar, porém que a reação do Estado situada num contexto determinado de fatores positivamente operantes, não pode ser diminuída ou observada somente pelo viés da ideologia. O Estado, enquanto instituição mantenedora da segurança pública, precisou sim reagir com os instrumentos legais que lhes estão disponíveis, com uso da força necessária para combater um poder paralelo também opressor às classes populares. O resto se resolve com políticas públicas e claro, com vigilância ao cumprimento dos direitos humanos e da execução de promoção social. Não posdemos transformar uma ação de segurança estratégica de combate ao crime em mera questão social ou, o que é pior, na ideologização dos direitos humanos. É necessária a sensata mediação entre o fascismo e o sectarismo, para que não se contamine esse momento peculiar de reação do Estado pela violência legítima.

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