A coluna trata de esportes, com ênfase em futebol, mas hoje vai versar sobre tema bem menos saudável. Estive no Rio nos últimos dois dias e acompanhei (de longe, obviamente) o desenrolar das ações de guerra contra narcotraficantes nos morros mais criminalizados da Cidade Maravilhosa – Vila Cruzeiro e Morro do Alemão. Insisto na expressão Cidade Maravilhosa porque é absurdo capitular e entregar de bandeja ao inimigo um dos pedaços de terra mais bonitos do planeta. Recuso-me a abrir mão do adjetivo nobre, que povoou minha imaginação desde a infância, tendo sequencia (e confirmação) nos anos seguintes a partir de visitas regulares.
Nas ruas, praias, bares e lojas, as pessoas tentam manter o cotidiano dentro dos níveis de normalidade. Nos bairros mais badalados, como Ipanema, Copacabana, Leblon e Catete, a movimentação é quase tranquila, sem a correria e o desespero que as imagens da TV mostram de um outro mundo, igualmente carioca e brasileiro. Enquanto os blindados da Marinha e o armamento pesado do Bope invadem as áreas antes dominadas pelas quadrilhas, procurando sufocar a indústria do crime, o Rio dos nossos sonhos agoniza aos poucos. Já existem lugares onde o cidadão é aconselhado a não ir, como numa guerra convencional. As áreas proibidas são bairros periféricos, como Vila Isabel, Penha e até a outrora idílica Tijuca.
Onde vamos parar?, pergunta no elevador do hotel uma turista catarinense, confusa com as notícias de que o narcotráfico se mantém sólido pela promiscuidade entre a banda podre da polícia e “aviões” do morro. Na recepção, enquanto um funcionário orienta os hóspedes a evitarem sair à noite, pois o perigo ronda as esquinas e a escuridão potencializa os riscos. Que dura ironia ouvir isso justo na cidade cuja vida noturna tem fama de ser uma das mais agitadas e divertidas do mundo. Os bandidos não liquidam apenas pessoas, acabam também com a alegria do carioca e dos visitantes que, como eu, ainda guardam na memória imagens de um Rio clássico e quase utópico.
Vejo na TV o desfile de especialistas com opiniões formadas sobre a melhor maneira de abater o grande monstro. A cada nova ideia ou sugestão, a certeza de que não existe receita pronta. A indústria do crime desceu o morro e se disseminou sobre setores de classe média alta e elite da cidade. Enlaçou tanto o Rio glamuroso que hoje muitos consideram impossível haver um divórcio pacífico. O tiroteio rola lá no alto dos morros, mas há um embate feroz ao nível do asfalto, quase na linha do mar, entre as forças da lei e os que são intermediários da droga junto aos ricos e vips.
Os artistas e os jogadores de futebol constituem apenas a face mais visível dessa casta dominada pelos tentáculos do narcotráfico. Os noticiários dos jornais e da TV só conseguem captar imagens da briga menor entre soldados do tráfico ao pé do morro. O verdadeiro rosto da serpente vive protegido por um pacto misterioso, que não permite vazar qualquer réstia de luz pela cortina. Em meio a isso, duas perguntas nunca respondidas ficam martelando na cabeça: quem libera a entrada de tantos armamentos pela fronteira? Por que os chefões do crime, encarcerados em presídios de segurança máxima, têm acesso aos seus exércitos no morro? Quem dá salvo-conduto livre aos agentes do tráfico nos salões mais reluzentes do Rio? Talvez tenha chegado o momento de responder a tudo isso, não mais com palavras, mas com atitude.
Enquanto ônibus e automóveis são incendiados em pontos diversos da cidade, para propagandear um terror ainda não dominante, surgem as dúvidas quanto à capacidade de resistência do Rio como sede da Olimpíada de 2016. Seis anos passam muito depressa. É improvável que os arsenais alimentados pela droga sejam exterminados, mas resistir é o primeiro passo. E há sempre o exemplo do cartel de Cáli, na Colômbia, eliminado a partir de uma ação implacável, misturando forças militares e apoio incondicional da população.
(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO desta sexta-feira, 26)
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