Na Folha deste domingo, Bernardo Carvalho falou sobre os vazamentos que revelam o conluio entre juízes e procuradores na farsa da Lava Jato, mostrando sua decepção com o ex-presidente Fernando Henrique.
Não basta estar mais ou menos resignado a viver num país de ideias fora do lugar para engolir um ministro da Justiça (este pelo menos com a desculpa de salvar a própria pele), mas também um ex-presidente ilustrado e velhos juristas conformados ao bolsonarismo, adiantando-se já na primeira hora para anunciar que não veem “nada de mais” na revelação de conluio entre um juiz e um procurador da República.
Se nossos ilustres contemporâneos não estão nem aí para a suspeição criada pelo conluio entre juiz e acusação, é simplesmente porque não podem se imaginar no banco dos réus. Continuam a se comportar no diapasão altivo da herança que esse mesmo conchavo escuso e antiético em princípio alega combater.
A ideia fora do lugar, nesse caso, é a própria justiça. Nem é preciso dizer que as consequências são gravíssimas. É ilustrativa a declaração de Sergio Moro ao jornal O Estado de S. Paulo, tentando minimizar o efeito dos vazamentos: “Sei que tem outros países que têm práticas mais restritas, mas a tradição jurídica brasileira…”.
Traduzida nos termos do absurdo semidemente (porque interessado) do “humanitismo”, a frase redefine mais uma vez o sentido de igualdade entre nós: já que somos todos iguais (partes do mesmo), não existe parcialidade.
A coisa fica ainda pior com o arremate de uma certa “teoria do benefício”, segundo a qual apenas o beneficiador consegue reter o sentido do seu ato. O beneficiado, uma vez terminada sua privação, volta ao estado anterior de indiferença. Conclusão: não vale a pena perder tempo com mal-agradecidos. Arremedo de filosofia, silogismo à brasileira, o “humanitismo” supõe que a igualdade seja de natureza metafísica, de onde conclui que as desigualdades reais são mera aparência.

Não é difícil seguir o fio que liga o raciocínio de Quincas Borba ao de quem não vê nada de mais na suspeição de um juiz. É a mesma lógica semidemente, agora na convicção de que a letra da Justiça pode valer como ideia, em algum lugar “mais restrito”, mas não aqui, terra de arbítrio, sofismas e inversões, onde as ideias são aceitas “por razões que elas próprias não podem aceitar” (Schwarz).
O desmonte do princípio de um contrato social republicano (que valeria apenas em lugares onde as práticas são “mais restritas”) é precisamente a base do círculo vicioso que fragiliza a sociedade e a lógica diante das investidas antidemocráticas. E o que leva a concluir que o conluio não se restringe a um juiz e a um procurador.