Para que serve o jornalismo em 2016

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POR ANA FREITAS (*), no Linkedin

Lá pra 2012, escrevi no meu blog – O Olhômetro, então vivo – sobre os rumos do jornalismo. O texto fez sucesso: eu escrevi que, embora tivesse me formado na faculdade três anos antes, parecia que tinham sido 30.

O motivo: muito pouco tempo depois que eu conclui o curso, a lógica da produção e do consumo de conteúdo já tinha mudado completamente. E o curso de jornalismo no qual eu me formei falhou bastante em dar conta disso – por sorte, eu tive uma formação profissional, já no mercado, e pessoal, muito próxima da produção de conteúdo pra web.

Se muita água já tinha rolado por baixo da ponte em três anos, é desnecessário pontuar que agora as coisas nessa área já estão em outro patamar. Conteúdo ainda é rei, mas o vídeo é a bola da vez (e das vezes que vem aí, segundo muita gente que eu respeito); as pessoas se acostumaram à ideia de que podem ter notícias de graça; ninguém sabe avaliar bem se uma informação, que pode chegar por uma dezena de canais diferentes, é verdadeira ou não. E o jornalismo institucional, moleque, de várzea, respira por aparelhos, com tentativas aqui e ali de gerar lucro e se manter – muitas vezes, fracassadas.

É sintomático que hoje nos EUA o melhor exemplo de jornalismo de qualidade – com critérios de apuração, inovador e adequado aos formatos e à linguagem das redes sociais – seja o Washington Post. É que o jornal foi comprado há alguns anos pelo empresário Jeff Bezos, da Amazon, numa espécie de fetiche: ele sabe que não vai ter lucro com o WP. Mesmo assim, o mantém por idealismo e por acreditar na função social do jornalismo. Chega até a ser poético, embora bastante desolador.

Por algum motivo, eu sigo tentando fazer o jornalismo dar certo (Não tipo, nogrand scheme of things. Na minha vida, mesmo. Pagar as contas e ser feliz, essas coisas bestas). É uma tarefa cada vez mais ingrata, mas deve ser teimosia minha (sou de Touro). É ingrata porque:

  • Ninguém lê mais textos longos – quando o faz, é com a atenção dividida entre outras 30 coisas mais bonitas e divertidas. Não me leve a mal, adoro memes, pôr do sol do Instagram, os vídeos de gatinhos fofos. Só tô dizendo que meu trabalho, como jornalista, é fazer um texto que concorra com isso, e obviamente eu saio perdendo.
  • O jornalismo é uma profissão de um idealismo triste e bem trouxa, porque ela consiste numa busca meio dura, às vezes sem resultado, pela verdade. E sei lá o que é a verdade, né? Mas mais do que isso: no meio de uma apuração, você pode descobrir que “a verdade” contradiz crenças pessoais e políticas que são caras pra você. Você pode descobrir que a verdade vai ser usada, de maneira maliciosa, por grupos de pessoas que lutam contra coisas que você pessoalmente defende. Não é agradável, mas você segue fazendo.
  • Às vezes, as pessoas não querem ler aquilo que contesta algo em que elas acreditam. Elas querem ler o que reforça as convicções de mundo delas. Na real, não tem problema nenhum nisso. O problema é quando a pessoa acha que BOM JORNALISMO é JORNALISMO QUE JUSTIFICA MINHA VISÃO DO MUNDO. Todo o resto é ruim. E cara, isso é muito comum.
  • É muito mais atraente acreditar numa corrente de Whatsapp que escreve tudo do jeito que a gente entende – e entrega a mentira ou a teoria da conspiração de um jeitinho com cara de plot da novela – do que ler um textão, cheio de informação difícil de absorver e uns gráficos esquisitos. Aí entra a capacidade e a obrigação do jornalista de transformar dados em coisas agradáveis de consumir, claro. MAS AINDA ASSIM a corrente de Whatsapp com imagem tosca ganha. Garanto.

Não só no Brasil, a gente vive um momento de polarização política – e ignorância – muito acentuado, por parte de sujeitos em todas as faixas do espectro ideológico. E o meu trabalho, quando apuro e escrevo, envolve escolhas minuciosas a todo segundo: quais informações incluir ou excluir do texto e como isso vai impactar as pessoas envolvidas na história, porque eu deveria contar uma história de um jeito ou de outro, as palavras que eu uso e o impacto delas, e mais um monte de coisas.

Essas escolhas, a maioria delas, são feitas conscientemente. São fruto de reflexões, de anos de estudo e leitura acerca de uma variedade enorme de temas, e até – claro, às vezes inconscientemente – das minhas convicções pessoas. Às vezes você erra: aí re-apura, corrige, pede desculpas, segue em frente e se torna ainda mais minucioso nas próximas, pra não repetir. Tudo certo.

Mas às vezes as suas escolhas e as motivações delas são contestadas com base em outras coisas. Com uma frequência maior do que é justo, especialmente numa sociedade politicamente polarizada, essas escolhas são acusadas de terem motivações políticas. E muito frequentemente, a mesma escolha é acusada por gente diferente de estar servindo a interesses políticos opostos. Já fui chamada de feminazi e de misógina por gente diferente por causa de um mesmo texto.

Por isso, andei pensando na função social que o jornalismo ainda tem. É uma coisa que a maioria das pessoas talvez esnobe, ignore, despreze – especialmente quando acusa a ~mídia~ de ~manipular informações~. Essa ideia de que os repórteres são ~todos vendidos~ não é a realidade do trabalho no dia-a-dia da maioria das redações.

Com exceções de coisas muito descaradas, a maioria das pautas, dos títulos e matérias é sugerida e apuradaspor gente que tá, de verdade, tentando fazer a coisa mais equilibrada possível. Aliás, até na Veja eu arrisco que esse seja o caso e aí a edição faz o trabalho sujo depois.

Eu diria que essa preocupação com “fazer jornalístico” é o caso em uns 70-80% do tempo nas grandes redações dos jornais  e na maioria das revistas (por observação empírica acumulada nos mais de 10 anos de profissão).

Pra entender isso, tem um vídeo muito legal do John Oliver sobre o assunto. É longo, é em inglês e talvez você fique desapontado quando terminar de assistir porque vai perceber que perdeu tempo lendo o texto e só precisava ter visto o vídeo pra entender o ponto, mas me perdoe (lembre-se, estou o tempo todo tentando acertar):

Deu pra sacar porque a coisa tá meio feia?

MAS PRA QUE SERVE O JORNALISMO AFINAL, MEU

Eu concluo esse texto com um trecho de um livro do Alain de Botton, filósofo cool dos nossos tempos, numa reflexão sobre censura com motivações políticas nos nossos tempos. Lê aí:

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É meio isso. Um ditador não precisaria proibir as informações nocivas a ele de circularem. Só precisaria garantir uma ENXURRADA de outras informações circulando também. No meio desse bolo, é quase impossível avaliar o que é relevante, o que foi escrito com critério de apuração, o que tentou olhar pra questão do jeito mais abrangente possível (nem sempre a gente consegue, mas o esforço existe).

Ainda me espanto com gente inteligente e bem informada compartilhando links e notícias que são claramente mentirosos. E é super comum. Mas em determinado momento, me dei conta que pra mim é mais fácil, porque sou treinada pra farejar e descobrir essas coisas de longe.

Jornalista é (ou deveria ser) tipo o protagonista daquela série LIE TO ME – só que sobre conteúdo: é um sujeito que sabe ler e interpretar sinais em níveis conscientes e subconscientes, objetivos e subjetivos, avaliando desde os fatores estéticos e tecnológicos associados a uma notícia até o teor do discurso e a escolha de palavras – tudo isso culminando habilidade mágica de dizer se há indícios de que um texto está mentindo ou não. Depois disso, ainda tem todas as ferramentas do método jornalístico pra separar o joio do trigo.

Não deixa de ser curioso que uma atividade que é, essencialmente, tão fundamental em um mundo com esse volume de circulação de informações esteja ameaçada – talvez porque não esteja claro o quão fundamental ela é.

(*) Repórter de Contemporaneidades do Nexo Jornal

Excelente reflexão sobre a encruzilhada em que se meteu (ou meteram) o jornalismo.

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