Por Ricardo Kotscho
Se a presidente Dilma Rousseff já terminou de ler o último volume da trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas, editado pela Companhia das Letras, deve ter bons motivos para ficar preocupada nesta entressafra entre o seu primeiro e o segundo governo.
Talvez isso explique a indecisão dela para anunciar os integrantes da nova equipe econômica, como demonstrou a dança de nomes cogitados para o Ministério da Fazenda nesta semana que chega ao fim, mantendo o suspense no ar. Era este o livro que a presidente carregava na mão ao descer do helicóptero no Alvorada, quando retornou a Brasília, depois de alguns dias de folga numa praia da Bahia, logo após sua vitória apertada na eleição de 26 outubro.
É neste terceiro volume que o brilhante jornalista cearense Lira Neto mostra o cerco formado por forças civis, militares e midiáticas contra Getúlio Vargas, que começou antes da sua posse, e botou fogo no país, na segunda metade do seu governo constitucional (1951-1954), levando-o a se matar com um tiro no peito.
Dilma não é Getúlio, eu sei, o Brasil e o mundo não são os mesmos de 60 anos atrás, mas há muitas circunstâncias e personagens bem semelhantes nestes distintos períodos da vida nacional.
Não por acaso, o nome de Carlos Lacerda, o comandante em chefe da guerra contra Getúlio, nunca foi tão lembrado numa campanha eleitoral como nesta última.
Pintado pelos adversários como “O Corvo”, com muita propriedade, Lacerda ressuscitou nos discursos e nas manifestações contra a reeleição de Dilma Rousseff, durante e após a campanha de 2014, que mobilizou os setores mais conservadores do empresariado e da imprensa, a serviço de múltiplos interesses estrangeiros, exatamente como aconteceu na tragédia de 1954.
Não por acaso, também, um dos principais focos da campanha contra o então presidente da República era a Petrobras, por ele criada sob controle estatal, após longa batalha no Congresso Nacional.
O papel que era da UDN (União Democrática Nacional) de Carlos Lacerda foi agora alegremente assumido pela aliança da oposição liderada por PSDB-DEM-PPS, que trouxe de volta, com Aécio Neves, até o mote do “mar de lama”, para atacar a presidente, o PT e a Petrobras, a bordo do discurso sobre o “maior escândalo de corrupção da nossa história”.
Extinta pela mesma ditadura militar-cívico-midiática de 1964, que ajudou a implantar, dez anos após a morte de Getúlio, a UDN voltou às ruas de São Paulo no último dia 15 de novembro, pedindo o impeachment de Dilma e a volta dos mesmos golpistas ao poder, empunhando as mesmas bandeiras de sempre, contra a corrupção e a inflação.
Foi neste dia comemorativo da Proclamação da República que, em Roma, no café Ponte e Parione, ao lado da Piazza Navona, terminei de ler o livro de Lira Neto e, embora tendo diante de mim algumas fas imagens mais bonitas do mundo, não conseguia deixar de pensar no que estava acontecendo no nosso Brasil naquele preciso momento. Passado e presente se confundiam na minha cabeça e confesso que fiquei deveras impressionado com tantas coincidências.
A grande diferença é que, agora, os militares estão recolhidos às suas tarefas constitucionais, e não dão o menor sinal de apoio aos Bolsonaros da vida, que reencarnaram Carlos Lacerda na avenida Paulista. Além disso, o país não está paralisado por greves orquestradas para encurralar Getúlio pela esquerda e pela direita. E, pelos menos até aonde a minha vista alcança, não há tropas americanas se mobilizando para apoiar qualquer movimento contra a democracia que vigora forte em terras brasileiras.
A história costuma dar muitas voltas para voltar ao mesmo lugar, mas não precisa ter necessariamente os mesmos desfechos. Fiz algumas anotações sobre o que têm em comum estes momentos conturbados, separados por seis décadas:
* Os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, então alguns dos protagonistas da ofensiva da mídia armada contra Getúlio, continuam os mesmos, nas mãos das mesmas famílias, a desafiar o resultado das urnas e a vontade da maioria _ simplesmente, não aceitam mais um período do PT no Palácio do Planalto, completando, ao final do mandato de Dilma, 16 anos no poder.
* A TV Tupi, primeira e única emissora de televisão brasileira nos tempos de Getúlio, que abriu câmeras e microfones para Carlos Lacerda detonar o presidente e seu governo todas as noites, ao vivo, em horário nobre, teve o mesmo destino da UDN e fechou as portas faz tempo, mas os métodos dos Diários Associados de Assis Chateaubriand sobrevivem em outros veículos do grupo, como o jornal O Estado de Minas mostrou na campanha passada. Com maior ou menor sutileza, outras emissoras de TV, a começar pela toda poderosa Globo, que dominaram o mercado após o golpe de 1964, cumprem mais ou menos o mesmo papel nos governos petistas.
* A revista semanal Veja e seus escribas alucinados reproduzem os melhores momentos da Tribuna da Imprensa, criada e comandada por Lacerda, que foi o porta-voz oficial e amalgamou as forças reunidas para a derrubada de Vargas.
* A flácida base parlamentar montada por Getúlio em tudo lembra a de Dilma, embora ambos tivessem maioria no Congresso Nacional, balançando entre contemplar direita e esquerda em seus ministérios, para se equilibrar no centro, provocando assim sucessivas crises políticas e econômicas.
* O PT de Dilma e Lula, com todas as suas contradições e divisões internas, está cada vez mais parecido com o PTB de Getúlio, com o PMDB agora no lugar do velho PSD das oligarquias regionais.
A lista do que há em comum é grande, e eu poderia passar o resto do dia aqui escrevendo sobre isso. Antes de concluir este texto, porém, é necessário registrar outra grande diferença: ao contrário de Getúlio, que tinha a Última Hora, de Samuel Wainer, a seu lado, Dilma não conta com a boa vontade de nenhum veículo da grande imprensa para mostrar e defender as conquistas do seu governo, que também existem.
Dizem que a história só se repete como farsa, mas é bom Dilma tomar cuidado. Recomendo a leitura desta bela obra do Lira Neto, não para assustar ninguém, mas para vocês entenderem melhor o que está em jogo, agora como em 1954. Foi o que aconteceu comigo.
Que Dilma e nós tenhamos melhor sorte.
Interessante o painel com os feitos estruturais da era Vargas que ilustra a postagem. Que tal um painel com os feitos estruturais do governo brasileiro nestes últimos 12 anos?!
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Caro amigo Gerson, mas que beleza de análise, feita pelo grande Ricardo Kotscho. Que bom que compartilhaste, aqui, esse artigo. Valeu !
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Oliveira, penso que o que foi feito por FHC foi desestruturar o estado brasileiro. É inevitável a comparação, pois o estado mínimo, sonho da direita no Brasil, mostrou-se um fiasco muito antes de chegar a ser mínimo. O minimalismo tucano foi uma tragédia para o país. Com o real forte e equipe econômica se esmerando no controle da inflação, o máximo que alcançaram foi o fortalecimento dos bancos e um salário mínimo bem mínimo, distanciando ainda mais ricos e pobres, provocando, veja bem, provocando concentração de renda. O efeito de política neoliberal sobre o Brasil foi o enfraquecimento do estado e desassistência social, com implementação de políticas públicas sociais fracas, limitadas. Pior, a política de privatização vendeu as principais estatais a preço de banana, e ainda com financiamento nacional a grupos estrangeiros. E a Petrobras esteve na mira da mesma privataria tucana. Não é de hoje que há interesse estrangeiro sobre o petróleo brasileiro, sabemos disso. É preciso mensurar que antes da desconstrução dos candidatos a presidente da última eleição o próprio Brasil foi desconstruído. O PT, com Lula e Dilma, vem reestruturando a máquina pública e direcionando a atuação do estado para quem mais precisa. É bom lembrar que o estado é um feito da sociedade, para benefício e desenvolvimento da sociedade. O enfraquecimento do estado fragiliza as relações sociais, percebe? O enfraquecimento do estado brasileiro, para mim, não é apenas efeito de políticas neoliberais, mais um objetivo dos tucanos. Veja bem, um objetivo. O enfraquecimento das instituições é o mote para a privatização e estabelecimento de políticas neoliberais ortodoxas que geram as políticas públicas que se definem em alta de juros e desfazimento de bens. O prejuízo foi muito grande. E por mais que o bolsa família tenha dotação orçamentária menor que a do PAC e de outras ações de governo, é fato que a desigualdade social vem diminuindo e a economia reagindo bem à mais uma crise do capitalismo, poupando os pobres dos piores efeitos da crise internacional, ainda que a vida não esteja lá essa maravilha toda. É só observar o crescimento do nordeste, tão preterido ao longo da história, tão esquecido por outros governos. Lembre de como ficamos durante a crise da Rússia, lá no governo FHC. Nisso, ele foi democrático, nos ferramos todos, de todas as regiões do país. Por isso, não é possível comparar feitos entre esse e aquele governo, mas é possível comparar o comportamento dos políticos de oposição de hoje e os de antes, visivelmente interessados na continuidade da prática neoliberal, de entreguismo e de concentração de renda.
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Boa noite, Lopes. Inspirado como sempre, no seu firme, mas sereno mister de defender suas convicções. Vamos lá, então.
Quero registrar aqui 3 aspectos:
Primeiro que, na minha opinião, no que diz respeito à prática de malfeitorias, o governo do fhc foi tudo isso que você diz, e mais alguma coisa. Aliás, votei (e perdi) duas vezes contra o fhc, nas duas vezes em que ele se candidatou à presidência. Com efeito, aqui estamos de acordo.
No segundo aspecto, entretanto, devo dizer que quem cogitou alguma comparação foi o próprio autor do artigo, e não eu. E que tal comparação não teve como referência o período tucano, mas, sim, a situação atual do dilmismo, com a última etapa da Era Vargas. E que o cotejo não foi feito exatamente entre os governos de um e de outra, mas sim, entre as pressões efetivadas no passado, com as pressões que vem sendo efetivadas na atualidade.
E o terceiro aspecto é que, de minha parte, eu ainda não estou (e nem sei se estarei em algum momento) pretendendo estabelecer comparações, as quais, seriam feitas, se fossem, entre o governo atual e o governo Vargas.
Neste momento, estimulado pelo painel de feitos da Era Vargas, a qual, creio eu, durou mais ou menos uns 20 anos, eu queria mesmo era ver um painel, um portfólio, um inventário, dos feitos estruturais do governo brasileiro nestes últimos 12 anos.
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Pois é Oliveira, defendo minhas convicções com serenidade, como você as suas, e isso nos torna elegantes, não? Civilizados, pelo menos… A comparação que você gostaria de realizar é implícita, mas tangível, na sugestão do painel do PT, afinal, de que serviria o tal painel que você sugeriu, para simples contemplação? A intenção da comparação há, mesmo que seja entre Dilma e Vargas, e mesmo que seja motivada pelo autor do texto, mesmo que você apenas o tenha repetido. Considero que questões históricas dificultam a comparação entre Dilma e Vargas e trago minha análise para a contemporaneidade, mais sensata ao meu ver. A coincidência destacada no texto é de comportamento político, mesmo que se tenha posto o painel dos feitos varguistas para enfeitar. Aliás, a referência à imagem não é uma comparação entre Vargas e Dilma, mas a velha retórica do pai dos pobres, é um jogo para lembrar ou evocar Dilma como a mãe do PAC. É só arte. Também serve para lembrar que mesmo considerado ditador pela história, como Dilma é considerada pela mídia, Vargas tem feitos excepcionais e tão importantes que permanecem até hoje, como a própria Petrobras e a CLT. Pode ser tudo isso, e pode não ser nada disso, sei lá, não vi muita ligação entre o texto e a imagem. Mas, podemos comparar, por que não? A linguagem ora definida por uma história politicamente alinhada com a ditadura militar coloca Vargas, o pai dos pobres, como populista, mas vejo nisso apenas um epíteto. A história não é, e nem pode, ser insuspeita. Que se dirá de Dilma, a mãe do PAC, no futuro?… FHC ainda pode virar herói. Depende de quem escreve as revistas, e os livros de história.
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Lopes, pode crer, pelo menos em princípio (como, aliás, deixei registrado no comentário anterior), meu objetivo não é a comparação. Agora, é lógico que o objetivo também não é de mera contemplação do do rol de feitos estruturais. É lógico que uma vez exibido o rol , o painel, fatalmente ele será submetido a um exame crítico.
E, se for o caso de se fazer a comparação (só e somente só se for o caso), também é lógico que se buscará não perder de vista as variáveis histórico-conjunturais que permeiam as situações comparadas, as quais, apesar de dificultarem, não impedem a comparação. Tanto que o autor do artigo chega a comparar a pressão ocorrida nos dois períodos, sem se descuidar exatamente de guardar as “proporções históricas”, e, me parece, sem sacrificar a sensatez.
A propósito, eu também não disse que o texto faz uma comparação entre Vargas e Dilma. Eu disse que o texto compara as pressões sofridas pelo governo nesta transição do primeiro para o segundo mandato da presidente, com as pressões sofridas por Vargas na segunda parte de seu governo.
E não duvido que o painel lembrando os feitos do Vargas seja só um enfeite. Sim, pode até ser. Mas, independentemente de ser ou não, o fato é que a “arte” me animou a suscitar que fosse feito um rol parecido no que diz respeito aos feitos estruturais do governo nestes últimos 12 anos, os quais, cumpre lembrar, não foram exercidos apenas pela presidente reeleita.
Enfim, com os devidos cuidados histórico-conjunturais, também acho que seja possível comparar os quase 20 anos da era Vargas, com os 12 da era petista. Mas, por ora, eu me contentaria, pra começar, apenas em ver e analisar um rol dos feitos estruturais da era petista, da qual, apenas um terço teve à frente a nossa excelentíssima “mãe do PAC”.
Quanto à serenidade de nossos debates, diria que são assim porque procuramos manter os confrontos num clima de cordialidade democrática.
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Pois é Oliveira, pra começar, podemos lembrar da lei de conteúdo nacional, que possibilita o desenvolvimento da indústria nacional. Um bom exemplo são os estaleiros instalados em Pernambuco, já que a Petrobras contrata navios feitos lá. Há o PAC, mas que, infelizmente, pactuado com os estados, vem se arrastando como moeda de troca política. O Bolsa Família revolucionou a economia do país, com resultados mais visíveis também no nordeste. O Minha Casa Minha Vida, que tem feito política habitacional para o povão tem ajudado a muitas famílias carentes. Além do mais, garantiu que não se alterasse a CLT, o não prosseguimento das privatizações e do arrocho salarial, além de livrar o país das garras do FMI e EUA, ao menos por ora, o que, por si só, já é digno de aplausos. Essas ações garantem mais autonomia, se não para a própria Dilma, para todo governante que vier depois. É a soberania que nos fará independentes economicamente, não o grito do Ipiranga. A melhora social é inegável e isso por si só o povo não obteve por obra e graça divina, mas por resultado de ações de políticas públicas bem definidas e com o trabalho e apoio do povo. Note que as ações de Vargas são de fortalecimento do estado, o que vai de encontro ao estado mínimo de FHC. Enquanto Vargas bancou a Petrobras como estatal, FHC quis privatizá-la. Dilma segue uma linha varguista, por assim dizer. Prefiro esta lógica que a da privataria.
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Valeu, Lopes. Agora, sim, temos um conteúdo mínimo para iniciar a análise.
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