
Por Isabel de Luca, n’O Globo
O futuro do futebol brasileiro – especialmente depois dos 7 a 1 na semifinal da Copa do Mundo em casa – virou tema de discussão em Harvard. No início da noite de quinta-feira, uma sala da Escola de Negócios daquela que é considerada a melhor universidade do mundo, em Cambridge, Boston, nos Estados Unidos, foi tomada por um debate que tratou a goleada da Alemanha como consequência dos problemas de gestão do esporte-símbolo nacional. E apontou uma série de políticas públicas e iniciativas privadas como possível salvação.
– Achei inusitado ser chamado para falar de futebol brasileiro em Harvard, quando, no Brasil, não se discutem as causas do vexame na Copa e, pior, não se fala no que devemos fazer para que isso não se repita – diz o brasileiro Pedro Trengrouse, que passa uma temporada como professor-visitante da Escola de Direito da instituição e coordenou o seminário a convite da Associação de Estudantes Brasileiros em Harvard. – O resultado deve servir de motivação para a sociedade discutir o futebol brasileiro como nunca discutiu. Certamente, só organizaram este evento aqui por causa do trauma que o Brasil sofreu.
Professor de direito desportivo e coordenador do curso FGV/Fifa em gestão da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Trengrouse – ex-consultor da ONU para assuntos relativos à Copa do Mundo e de empresas como AmBev e Coca-Cola em suas estratégias de marketing voltadas para o esporte – começou a sua palestra lembrando que a estrutura que comanda o futebol no Brasil teve origem com o decreto-lei de Getúlio Vargas que criou o CND (Conselho Nacional de Desportos), durante a ditadura do Estado Novo. E aproveitou para questionar a pouca (ou nenhuma) atenção dada aos esportes na última campanha presidencial, apesar dos 7 a 1 e às vésperas das Olimpíadas de 2016.
– A gente não pode medir o sucesso ou o fracasso de uma estrutura pelo resultado de uma partida. Mas a goleada é um indicativo, sim, quando se observam as estruturas de organização do futebol no Brasil e na Alemanha e se identifica o tabalho feito lá: o programa de formação que a federação de futebol tem em todo o país; o campeonato de clubes, que é um dos mais equilibrados da Europa, referência pela organização. O sucesso não acontece por acaso – provocou. – Claro que, em futebol, existe o imponderável. Mas perder porque o nosso campeonato é frágil, no sentido de que não permite aos clubes desenvolver ao máximo o seu potencial esportivo e econômico, ou perder porque o governo não tem uma ação mais efetiva no futebol brasileiro, é que não podemos aceitar.
O professor questionou a legitimidade da eleição para presidente da CBF, lembrando que os comandantes das associações desportivas americanas são escolhidos por representantes de todos os segmentos que compõem o esporte em questão (no caso do futebol, o colégio eleitoral é formado por jogadores, treinadores, árbitros, executivos, federações estaduais). A plateia, composta apenas por brasileiros – que, este ano, atingiram pela primeira vez a marca de 100 alunos em Harvard –, logo começou a se manifestar.
– O problema, além do jeito de eleger o presidente da CBF, é a gestão amadora dos clubes, que hoje são financiados, basicamente, pela receita de direitos de TV, mas têm muito a crescer se explorarem marketing, bilheterias. E a mudança na estrutura do esporte é pouco discutida no governo. Aqui, nos EUA, eles sabem explorar bastante esse potencial – ressaltou um.
– E o futebol está crescendo aqui – completou outro. – Vemos as crianças jogando, e outro dia teve um jogo com cem mil pessoas no estádio. O esporte é popular nos EUA, só não tem a força dos clubes. No Brasil, a verdade é que só existem 12 clubes que monopolizam a torcida do país todo.
Trengrouse evocou a ideia do Clube dos Treze de reunir os principais times nacionais para fazer um campeonato próprio:
– Se esses clubes quisessem realmente revolucionar o futebol brasileiro, seria factível. Eles têm tradição, torcida, e se bastariam. Mas, enquanto isso não acontece, os clubes estrangeiros vendem suas marcas no Brasil, e os clubes brasileiros não conseguem vender suas marcas fora.
RONALDO E O SÃO CRISTÓVÃO
No rol das boas notícias, foram lembradas iniciativas privadas bem-sucedidas para tornar os clubes financeiramente mais fortes, como o programas de sócio-torcedor Movimento por um Futebol Melhor, da AmBev, que reúne 15 empresas para oferecer, em mais de 15 mil pontos de venda no país, descontos que ultrapassam a mensalidade paga por 158 mil sócios a 45 times. Também surgiram na conversa ações como a do Itamaraty, que, quando o país começou a se preparar para a Copa e as Olimpíadas, criou uma coordenação só para esportes – e, como resultado, o Mundial deste ano recebeu o maior número de chefes de Estado da História.
– No século 21, cada ator relevante do futebol precisa rever o seu papel. Qual o papel do Estado para arrumar uma casa que construiu em 1941, deu autonomia na Constituição de 1988 e largou de lado? A defesa da CBF é sempre a da autonomia, mas deram autonomia para uma confederação criada na ditadura. Por que os 40 milhões de torcedores do Flamengo não são ouvidos na gestão, não participam, não votam? Será que os clubes podem ter um programa em que o sócio também vote para eleger o presidente? Não seria mais legítimo? Um presidente do Flamengo eleito com 1.414 votos tem legitimidade? Já o presidente da CBF é eleito com 47 – frisou Trengrouse.
Os times menores, segundo o professor, poderiam revelar mais craques se não passassem a maior parte do ano inativos:
– O Ministério do Esporte criou a Secretaria Nacional do Futebol, que, este ano, com a Copa no país, teve orçamento de R$ 21 milhões, enquanto a Secretaria de Alto Rendimento do mesmo ministério teve R$ 1,5 bilhão, ou seja, cada modalidade teve R$ 50 milhões. Talvez os 20 times que disputam Série A, ou os cem das Séries A, B, C e D não precisem de dinheiro, mas são 783 times no Brasil, e 383 só jogam quatro meses por ano. O Estado poderia investir em promover a atividade permanente de clubes importantes, como o São Cristóvão, de onde saiu Ronaldo.
Foi a deixa para a os ouvintes voltarem a pedir a palavra. Um lembrou que, na Inglaterra, onde o futebol tem hoje forte intervenção do governo, até os clubes da segunda e da terceira divisões conseguem gerar receita e marketing – os da segundona constam até do videogame da Fifa, frisou. Outro alegou que, diferentemente da Inglaterra, uma cidade do interior do Brasil que sequer tem restaurante jamais vai poder sustentar um clube. Num ponto, porém, todos concordaram: a importância de a discussão acontecer em nível acadêmico.
– Falta ao futebol pessoas com formação participando mais – apoiou Trengrouse. – Será que a associação de estudantes brasileiros em Harvard não pode ter um papel mais consistente, mais permanente, se o futebol é um tema tão importante para o Brasil?
Tudo indica que sim: o secretário-executivo do Ministério do Esporte, Luis Fernandes, foi convidado para falar na universidade no próximo dia 24.