Por Gerson Nogueira
Mar de sentimentos e expectativas, nem sempre fáceis de corresponder. Assim é o futebol. O conflito está na diferença entre o olhar do torcedor, essencialmente conduzido pela paixão, e o comprometimento profissional que os atletas precisam ter na era da mercantilização galopante. A situação chega ao nível do impasse absoluto quando se espera que o jogador, empregado do clube, seja tão comprometido e apaixonado quanto o torcedor.
Na condição de trabalhador remunerado, cobra-se do futebolista dedicação e disciplina em regime espartano. Deve estar apto, física e mentalmente, a desempenhar suas funções em campo. Exige-se que tenha hábitos de monge tibetano, imunizado contra as tentações do mundo pagão e das barcas noturnas.
Ao mesmo tempo, o torcedor fica tocado quando o boleiro demonstra publicamente sua paixão pela camisa que defende. Não aquele encanto fugidio e quase sempre hipócrita do beijinho no escudo, cena recorrente em apresentações de atletas no Brasil. Não. O fã não se contenta mais com gestos teatrais, prefere atitudes práticas – e heroicas. Não se satisfaz com discursos, mas com demonstrações inequívocas de amor.
Jogar com a cabeça arrebentada ou o braço apoiado na tipoia, à la Franz Beckenbauer, assegura muitos pontos na escala de encantamento que as torcidas têm para avaliar os jogadores do time. Carrinhos insanos rumo à linha de fundo para tentar evitar um escanteio, mesmo que seja humanamente impossível alcançar a bola, também ajudam bastante.
Como paixões nem sempre podem ser mensuradas, surgem aqui e ali exemplos de forçada identificação, visando ludibriar os torcedores mais ingênuos. Existem atletas que conseguem exibir raça e lealdade extremas, independentemente do clube que estejam defendendo. Não deixa de ser uma atitude profissional, embora fria e distante.
No outro extremo, aprendemos a ver o torcedor como ser primitivo, incorporado pelo fanatismo e sempre a um passo do destempero. Seria, por assim dizer, o lado sentimental do grande negócio que envolve o jogo.
Acontece que criar um fosso entre atletas profissionais e torcedores românticos é desprezar o fato de que aficionados trilham cada vez mais um caminho de conscientização sobre seus direitos. Os programas de sócio-torcedor são a face mais visível dessa nova tendência, que faz do fã um consumidor e eleva o ato de torcer a um patamar necessariamente mais profissional. Começa a ficar para trás aquele torcedor descompromissado, que apenas pagava o ingresso momentos antes do jogo.
Os novos papéis talvez ainda não estejam bem claros por aqui, mas os exemplos lá de fora servem como referência. Torcedores que contribuem regularmente para o sucesso de um clube aprendem na marra que vitórias são importantes, mas não podem ser a condição primordial para que siga pagando as mensalidades.
O decisivo apoio financeiro nas fases negativas é a chave para a construção de times vitoriosos mais à frente. Fãs do Barcelona, do Manchester United, do Bayern e do Real Madri sabem disso muito bem.
Não significa que derrotas sejam recebidas com prazer. Torcedor será sempre torcedor, sendo inimaginável que aceite perder com passividade. Prevalece, porém, a noção madura de que o esporte é feito de altos e baixos, sendo que o sócio-torcedor não pode se limitar aos bons momentos. Precisa ser engajado e solidário, sempre.
O anseio por resultados passa, então, a ser um objetivo comum, partilhado por torcedores e pelos profissionais envolvidos no processo. O sucesso normalmente vem quando todos têm plena consciência de suas responsabilidades e direitos, não se furtando a participar e influir com ideias.
No Brasil, a nova era já chegou a clubes como Internacional, Grêmio, Atlético-PR, Coritiba, São Paulo e Corinthians. Avança rápido e logo deve atingir as outras agremiações do bloco de elite. Por aqui ainda não se sabe quando. Nem se este novo mundo será bom para todos.
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A brava resistência dos dinossauros
Em tempo de mudança de comportamento nos estádios, soa até inusitada a rabugice de veteranos torcedores, que não abrem mão do prazer de cornetar até ídolos incontestáveis e desafiar o coro dos contentes. Caso – testemunhado pelo jornalista Thales Machado, da ESPN, nas cadeiras do Maracanã durante o jogo Botafogo x Corinthians – de “seu” Walter, um botafoguense enfezado que detona ninguém menos que Clarence Seedorf.
“Eu faria esse gol com a bunda! Chega, chega desse Seedorf! Não joga nada esse cara! Tira esse cara, Oswaldo, tira esse holandês de m… pelo amor de deus!”, vociferava Walter enquanto Thales anotava para nos contar depois em delicioso texto que transcrevi no blog.
“Só eu enxergo que esse traste faz mal ao Botafogo?”, arremataria o furibundo Walter, indiferente à adoração que 99,9% dos botafoguenses nutrem pelo meio-campista holandês. Torcedor à moda antiga é assim, capaz de enfrentar tudo e todos para fazer valer suas ideias.
(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO deste domingo, 15)
Não gosto da estrangeirada invadir nossos gramados, porém, craques como o Seedorf serão sempre bem vindos.
Só não gosto quando o paramaribenho se acomete de ataque de nervos com seus companheiros.
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