Uma lágrima!

Por Cássio Andrade

No clássico “Quo Vadis”, quando Nero é avisado sobre a mlorte de Petrônius, deixa à história sua frase ontológica: “Uma lágrima por ti, Petrônius”. Gesto incontinenti, depositava a lágrima no ambar imperial. A lágrima desta crônica, no entanto, está longe da representação hipócrita do Imperador. Ela se deposita no coração generoso do povo brasileiro. Mais que uma lágrima, a nação pranteia por ti, nobre Doutor!
Quem no oitocentismo não aprendeu a amar o futebol-arte da geração de Sócrates? Uma geração que reinventou a arte no futebol, já esquecida em 1970, em uma “década perdida” de um país afundado em dívidas e no ocaso da política pretoriana. Como tricolor, torcia às escondidas pela “democracia corinthiana” visto ter perdido dois títulos paulistas seguidos à esquadra mosqueteira, de 1982 e 1983. Como cidadão, militante estudantil e na aurora de minha adolescência de esquerda, jamais deixaria de reconhecer o respeito àquele Corínthians de uma geração lúcida que acompanhava o partido político que passei a aderir em suas fileiras. Foi a época que muitos petistas adotaram o Corínthians, visto que o Botafogo, o outro chamego da esquerda, já o era por  comunistas e brizolistas.
Mauro, Vladimir, Sócrates e Casagrande, formavam a “democracia corinthiana”, convivendo  com a “velha raça” da geração anterior de Biro-Biro. Em 1984, vi Sócrates no comício da Sé em São Paulo (àquele que a Globo tentou esconder) evocando por “Diretas já!”. No mesmo ano, em Belém, no histórico comício da “1º de Dezembro” e com minha proibida camisa vermelha, rememorava a imagem do “magro de barba curta” ao lado de “outro barbudo”. Aos 16 para 17, não vesti a camisa amarela, mas não deixava de olhar as tabelas, ainda que poucos se importassem com minha aflição.
Passes e gols antológicos do Doutor alegraram a memória nacional do futebol. Seu calcanhar malandro, o anti-Aquiles das chuteiras. As faltas, derradeiros gols antecipados. Formava com Zico a meiúca forjada no engenho e arte. Três gols se destacam na antologia socrática: contra o Ajax da Holanda (1981), contra a URSS (Copa de 82) e a Itália (na fatídica tragédia do Sarriá). Mesmo os gols feios, assumiram importância épicas, entre os quais, contra a Espanha no jogo inicial da campanha da Copa de 86 no México, que salvou a seleção de Telê (já bem envelhecida e desfigurada de 82) de um empate e até da derrota não fosse o tradicional “apito amigo” do Brasil nas Copas.
Na Copa de 86, Sócrates não escondia suas posições políticas e ideológicas nas frases estampadas em suas famosas faixas de cabeça em solidariedade aos países latinos frente ao imperialismo Yankee da Era Reagan-Bush. Por sua rebeldia, a FIFA passou a proibir manifestações congêneres. Nesses tempos de futebol-força, pouca inteligência e proselitismos morais, Sócrates provavelmente seria chamado de xiita, beberrão e anti-atleta. A geração atual não o mereceria.
Recentemente, Sócrates andava de birra com o comissariado de meu partido, herdeiro do mensalão. Decepcionou-se com a política, mas nunca perdeu o senso crítico. Acionando-se a cássica teoria dos campos de Bourdieu, poderia dizer que Sócrates migrou a crítica do campo político para o esportivo, especialmente em relação à CBF. 
2011 foi a dança do cisne. Participou de vários programas televisivos. Praticamente inaugurou o “Agora é Tarde” de Danilo Gentili antes de adoecer, esbanjando sarcasmo, bom humor e lucidez.
E assim, me despeço em reverência ao jogador-filósofo que levou a maiêutica aos gramados no diálogo permanente com a bola. E como no seriado televisivo dos anos 60, penhoradamente minha geração agradece: OBRIGADO, DOUTOR!

5 comentários em “Uma lágrima!

  1. Linda sua homenagem camarada Cássio. O futebol, aquele que conhecemos e aprendemos a amar por conta de sua plasticidade, elegância, refinamento e ofensividade e do qual Sócrates fez parte, está de luto. Ficou ainda mais embrutecido e obtuso de ideias a contar de hoje. A morte do Doutor Magrão é mais um daqueles acontecimentos que nos enche de melancolia e tristeza, pois é uma demonstração de que, aos poucos, o século passado está se esvaindo… e se tornando, para nós, cada vez mais, um caleidoscópio de meras boas lembranças. Descanse em paz Sócrates Brasileiro Paraense Futebol Genuíno Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.

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  2. “É tão estranho, os bons morrem jovens, assim parece ser, quando me lembro de você….Que acabou indo embora, cedo demais…” Esta parte, de uma música do grupo Legião Urbana, quase sempre me vem a cabeça quando sinto que estamos ficando mais pobres ao perdermos figuras como o Dr. Sócrates.

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