
O André Nunes devia pegar o carisma dele, dar uma fatiada, embalar a vácuo e botar à venda na Extrafarma. Era capaz de foder com a Big Ben, tamanha a procura por este milagroso remédio contra tristeza, solidão, baixa-estima, mau-olhado e pissica. O cara é um sedutor de gentes.
Não tô falando nem de mulheres, porque ainda não chegamos na parte delas. Sim, sim, naquela parte mesmo. Ainda não chegamos. Mas nas nossas conversas os assuntos mudam tanto, o tempo todo, embora não percam o rumo, que sei lá.
O filho-da-mãe é um craque. Fora a memória privilegiada e o privilégio de ser testemunha ocular da história, André tem o dom (ou sabe Deus que feitiço das profundezas do Xingu) de contar os episódios da aventura humana com o capricho de uma jovem mãe que dá carinhosos tapinhas nas costas do neném, pedindo pra ele arrotar. Dá a impressão de que até os personagens sentam ali do lado da gente pra ouvir o caboclo falar sobre eles.
É claro que ele tem uma estratégia, uma bagagem, um ritual, uma técnica própria de seduzir os ouvintes. Mas depois de tanto praticá-la, o que era um modo de se expressar transformou-se na sua melhor expressão. O tom da voz, os meneios, o poder dos olhos cintilantes, o esteio da sabedoria, o tempero da picardia, o inevitável momento da pausa, a retomada do fôlego, o emblema da credibilidade grisalha, tudo aquilo que compunha o personagem trajando-o para subir ao proscênio de suas narrativas, são hoje a própria pele do narrador.
Mas isso não acontece apenas quando ele fala. Acabo de ler, de um fôlego, um livro que deveria ter lido há mais de 20 anos, mas que só agora caiu nas minhas mãos – e delas não desgrudou enquanto não cheguei à página 111, a derradeira.
Ao me debruçar sobre “A Agenda do Velho Comunista”, eu era de vez em quando obrigado a olhar pro lado, procurando feito um leso os olhos do André, quase ouvindo ele falar, naquela hora em que a voz do sacana dá um desdobro na gente, fingindo que vai sumir na garganta só pra fazer a orelha espichar e enfim se enfiar dentro dela. Essa obra é tão envolvente quanto o autor.
Juro pela Camila, minha filha: o livro tem calor.
Relata com surpreendente ternura um tempo de indelicadeza. Provoca, sem apelar para sofismas nem erudição barata, uma inevitável e profunda reflexão sobre mais de uma geração e o espólio de verdades e mentiras, coragem e medo, amor e amargura, esperança e decepção, que compõe a herança desses períodos. E o grande barato: sob o cenário e com o vocabulário fantástico de uma Amazônia que só é capaz de ver quem a viveu.
É uma delícia ler “A Agenda do Velho Comunista”. Tão bom quanto sentar à mesa do restaurante Terra do Meio, traçando um delicioso filhote com caldo grosso, enquanto o André massageia a inteligência da gente com suas intermináveis histórias, contadas à moda da casa.
Agora, vocês me dão licença, porque eu já tô engatado de novo no André – no bom sentido. Leio, antes mesmo de serem publicadas, as saborosas crônicas da coletânea “Xingu”. Não quero correr o risco de descobri-las somente daqui a 20 anos, quando kararaô será apenas uma palavra engraçada perdida nos escaninhos do meu Alzheimer.