A volta dos que teimam em não ir

Por Daniel Malcher (malcher78@yahoo.com.br)

Os acontecimentos recentemente ocorridos no Paraguai deixaram os arautos do mais novo item do receituário pós-moderno (a democracia) em polvorosa… e naqueles que carregam em seu DNA o saudosismo de aleijões políticos que grassavam no continente um entusiasmo contido, mas inconteste.
Considerar o que aconteceu nas planícies do Chaco como um simples “impeachment do presidente Fernando Lugo” pode até soar como procedente para os menos atentos. No entanto, tal abordagem, partindo de onde partiu – de alguns dos mais poderosos veículos da grande imprensa brasileira, e também da grande imprensa paraguaia – não é mera chamada para o noticiário após o intervalo comercial e nem nome de pauta a estampar as manchetes de jornal, mas a demonstração de uma espécie de apostolado de fé em modelos políticos anacrônicos, que invocam a “legalidade” em nome de processos arbitrários que historicamente tinham – e ao que parece ainda tem – como principal plataforma política, por assim dizer, colocar as “coisas” em seus devidos lugares, ou seja, jamais permitir que essas “coisas” saiam, se emancipem – no nosso caso particular, “coisas” como os pobres, os negros, os imigrantes do Norte/Nordeste, os assalariados, os operários, os trabalhadores e etc.
Não se quer discutir os problemas da democracia de receituário dos países ricos indicada de forma profilática aos países pobres ou “em desenvolvimento”, suas contradições, suas fragilidades e suas sérias limitações. Afinal, defeituosa ou não, essa democracia que pelo Cone Sul tem andado foi conquistada a ferro e fogo. Custou sangue, suor e lágrimas. Deve-se discutir, portanto, o caráter de certas manobras agressivas à ordem institucional pelo continente afora e o tratamento destas por quem de direito e muito convenientemente, beirando a desfaçatez, como manobras de “defesa da ordem democrática e de suas instituições”.
Fernando Lugo, ao costurar extensa coalizão para chegar ao poder pelo voto (inclusive o conservador Partido Colorado, além de setores mais à esquerda da política local), trouxe os “indesejáveis” para perto dos gabinetes. O “populacho”, a “raia-miúda”, o “Zé Povinho” e suas demandas, lá como cá, incomodam. Acusado de incapacidade administrativa e responsabilizado pelos incidentes envolvendo terras e impasses agrários em seu país, preparou-se à revelia dos trâmites legais e em decurso de tempo hábil o seu julgamento ideológico, e não “político” como quer fazer crer as fontes noticiosas. Afinal, nada mais ideológico e acintoso “à ordem das coisas” em muitos países latino-americanos – Brasil inclusive – do que falar ou abordar a questão agrária. A terra ainda suscita conflitos. Sua posse é sinônimo de poder e de reprodução ad infinitum deste, ainda arquitetado e construído mediante tal posse de forma “coronelística”, mesmo em tempos de globalização econômica. Debatê-la na América do Sul é um verdadeiro tabu político, pois é ameaça aos incólumes privilégios históricos que derivam de seu usufruto ou de sua posse sem uso.
E os grandes veículos de comunicação brasileiros e paraguaios? Embarcam na tese do “impeachment” por quais razões? Seria a mídia paraguaia também proprietária de terras invadidas? Talvez. Teria a grande imprensa brasileira interesses estratégicos no país vizinho, ou seria um caso de solidariedade mediante a comunhão de interesses, uma espécie de “internacionalismo socialista” às avessas? Não se pode perder de vista a amplitude e o alcance dos setores conservadores das sociedades latino-americanas e seus interesses não menos retrógrados, aqui e alhures. A grande mídia sul-americana, via de regra denunciada por tal postura, tem se portado como advogada de causas há muito ultrapassadas, da manutenção de privilégios e como uma verdadeira porta-voz, quase um partido político, de interesses e bandeiras reacionárias das camadas favorecidas, dos “de berço”, sempre em nome do nobre combate à “desordem”. Ontem era o “perigo vermelho”, hoje pode ser o “populismo”, a “corrupção” ou, como ensinaram muito bem as elites guaranis e sua eficiente articulação política, a “ineficiência administrativa”. No caso brasileiro não é de se estranhar que amplos setores da imprensa tenham análises condescendentes de um passado recente marcado por regimes políticos que tinham como ofício quebrar e romper o decurso da ordem democrática estabelecida. E não é de se estranhar ainda mais a simpatia destes por manobras semelhantes em tempos atuais como na Nicarágua em 2009 e no Paraguai agora. O ocorrido no país vizinho não foi uma quartelada clássica como nos tempos da Operação Condor, mas a ação palaciana das elites paraguaias capitaneada por seus braços político – o parlamento eleito democraticamente, o que não deixa de ser irônico, mas historicamente rotineiro em se tratando de América do Sul – e midiático, seguindo velhos modelos operacionais, mostrou-se eficaz. Tão eficaz quanto a invocação de velhas práticas e regimes políticos para salvaguardar “a ordem”. E tão velha quanto estes aleijões que teimam em não ir embora da vida política da latino-americana.

3 comentários em “A volta dos que teimam em não ir

  1. Pesquisando sobre o tema, para me manifestar sob bases minimamente concretas, me deparei no site “BRASIL DE FATO, Uma visão popular do Brasil e do Mundo”, com dois elementos interessantíssimos.

    O primeiro é o teor do art. 225 da Constituição da República do Paraguai:
    “El Presidente de la República, el Vicepresidente, los Ministros del Poder Ejecutivo, los Ministros de la Corte Suprema de Justicia, el Fiscal General del Estado, el Defensor del Pueblo, el Contralor General de la República, el Subcontralor y los integrantes del Tribunal Superior de Justicia Electoral, solo podrán ser sometidos a juicio político por mal desempeño de sus funciones, por delitos cometidos en el ejercicio de sus cargos o por delitos comunes.

    La acusación será formulada por la Cámara de Diputados, por mayoría de dos tercios. Corresponderá a la Cámara de Senadores, por mayoría absoluta de dos tercios, juzgar en juicio público a los acusados por la Cámara de Diputados y, en su caso, declararlos culpables, al solo efecto de separarlos de sus cargos. En los casos de supuesta comisión de delitos, se pasarán los antecedentes a la justicia ordinaria”.

    O segundo elemento é o libelo acusatório que resultou no impedimento do Fernando Lugo, do qual pinço a seguinte passagem:

    (…)

    “3. PRUEBAS QUE SUSTENTAN LA ACUSACIÓN

    “Todas las causales mencionadas más arriba, son de pública notoriedad, motivo por el cual no necesitan ser probadas, conforme a nuestro ordenamiento jurídico vigente”.

    Pois bem, à vista destes dois elementos, uma verdade, me parece clara e inexorável: a própria Constituição do país é um autêntico convite ao golpe e os parlamentares paraguaios atenderam em massa ao convite que desenganadamente vitimou o Lugo.

    Pô, o golpe resulta óbvio e ululante do argumento segundo o qual os fatos não precisam de prova porque são de conhecimento público e notório.

    Bom, este (o golpe) é um dado concreto e objetivo. Outro, diz respeito à sopa que o Lugo deu pro azar. Tivesse tomado umas aulas num certo vizinho auriverde, principalmente nestes frustrantes e decepcionantes últimos 20/25 anos da tão esperada e indispensável democracia, teria sempre os parlamentares (conservadores e progressistas) nas mãos e jamais teria sido apeado do poder e o exerceria sem maiores traumas até o fim do seu mandato. E isso mesmo sem fazer, por exemplo, a reforma agrária, à custa da morte de muitos inocentes no campo; sem elevar os padrões da segurança, da saúde, à custa de milhares de mortes de inocentes nas ruas e nas filas de espera dos hospitais etc, etc, etc …

    Será que o Lugo nunca ouviu falar de “base aliada” e dos meios infalíveis de persuadi-la.

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