Por Mauro Ventura
A “Veja” desta semana fala em “regime militar” para designar o período entre 1964 e a anistia. Tecnicamente não está errado. Mas é evidente que é uma escolha ideológica. Desde o fim da censura, o mais comum é “ditadura militar”.
A “Folha de S. Paulo”, dia desses, usou o termo “ditabranda”, alegando que o autoritarismo brasileiro tinha sido suave perto dos seus similtares latino-americanos. Uma alegação insustentável – se fosse assim, a sanguinária ditadura chilena não poderia ser chamada dessa forma porque no Camboja Pol Pot matou entre um milhão e três milhões de pessoas.
O jornal teve que voltar atrás, diante das reações contrárias. Mas o que parece estar em jogo é uma espécie de revisionismo histórico. Se até o Holocausto é negado, não duvido nada que dentro de alguns anos estejamos lendo “democracia militar” para se referir aos anos de chumbo no Brasil.
Pode ser que cole para as futuras gerações. Mas minhas lembranças do período são apavorantes. Pais e tio presos, visitas à cadeia, encontro com a viúva e os filhos pequenos de Vlado (assassinado pela repressão), censura, um medo difuso no ar, exílio de amigos e conhecidos como Chico Buarque e Betinho, desaparecimentos.
Meu pai não tinha ligação com qualquer organização de esquerda ou movimento estudantil. Era apenas, como muitos, favorável a um estado de direito. Mas bastou uma denúncia anônima para ser preso. Minha mãe foi visitá-lo na prisão e também não saiu. Meu tio, cinegrafista, sem nenhuma militância política, foi levar comida para eles e igualmente ficou por lá. Na época era assim: na dúvida, prendia-se.
Meu pai dizia para minha irmã, durante as visitas à cadeia – ele esteve em três prisões -, que estava muito bem ali, podia até jogar basquete durante os banhos de sol. Era uma forma de tranquilizá-la. “Só muito tempo depois soube que essas revelações provocavam nela um efeito paradoxal e lhe faziam muito mal. Ela concluía que eu havia feito uma opção voluntária entre a nossa casa e a prisão. Se eu me dizia tão satisfeito, era porque preferia a cadeia a voltar para junto dela, do irmão e de minha mulher.” A sensação de abandono perseguiu-a por muitos anos.
Também tive minha cota de desamparo. A caça às bruxas era tamanha que meus pais tiveram que passar quatro meses fora, quando eu tinha menos de sete meses. Fui mandado para a casa de minha tia, em Friburgo. Devo essa ao jornalista Sérgio Noronha, que me levou às pressas para lá. Obrigado, Sérgio.