Por André Forastieri
Quando eu era adolescente não tinham inventado essa parada de “nerd”. Eu com quinze anos bebia, fumava, namorava, ouvia rock, tinha amigos maconheiros, arriscava umas reuniões de movimento estudantil, fabricava lança-perfume para vender em festinhas do colégio etc. E com 17, tudo isso e ainda era presidente do centro cívico. Mais normal não dá.
Só que não achava que ser tudo isso aí e ler, digamos, Denny O’Neil, Isaac Asimov, Jorge Luis Borges e Dante Alighieri fossem coisas excludentes. Em 1982 minha luz-guia era a “Heavy Metal”, revista americana de quadrinhos que considerava HQ, rock, filmes underground, drogas, alta e baixa literaturas, design e videogames tudo parte do mesmo balaio, um balaio muito cool chamado “cultura que importa”. Estou nessa desde aquela época e não saí.
Por isso, no dia 25 de maio eu não comemorei o Dia do Orgulho Nerd, que reverberou pela internet afora. Não me diz respeito. A data é por causa da estréia americana de Star Wars, em 1977. Não é história para mim, é o meu passado. Vi no cinema na semana que estreou no cine Rívoli, na rua Benjamin Constant, acho que já em 1978. Meus amigos gostaram tanto quanto eu. Mas eu era um moleque fuçador e sabia antes que era quente – tinha visto as fotos na revista Cinemin e lido a adaptação da Marvel publicada pela Bloch. Roy Thomas e Howard Chaykin? Não sabe quem são? Não sabes o que perdeu.
Nunca tive o menor complexo de inferioridade por gostar do que gosto ou não ter lido isso ou aquilo. Continuo não tendo. Fui assistir o novo Star Trek, sozinho, na sessão das seis da tarde do primeiro dia. Na saída, centenas de trekkers uniformizados aguardavam a sessão das oito. Eu vi o novo Jornada antes dos caras da Frota Estelar… e desde 1982 esperava para ver o teste do Kobayashi Maru. Quer me chamar de nerd? Fique à vontade.
Fiz minha parte para popularizar o termo. A capa da revista “General” nº 3, em 1994, era uma pauta intitulada “A vitória dos nerds”, e entrevistei para ela o Thunderbird , então recém transferido para a Globo. E fui criador e editor da revista Herói séculos. A Herói era uma revista para fãs. O site Heroi.com.br é para fãs – em breve, mais para fãs do que tem sido nos últimos anos.
Me arrependo um pouco. A palavra Nerd hoje quer dizer essa coisa boba de “sou um gordinho espinhento, antisocial e rancoroso porque não consigo namorada, mas como sei tudo sobre Marvel /Tatsunoko / filmes de Kung Fu /Lost /etc., sou superior a estes plebeus populares.” É estereótipo, mas muita gente se acomodou nele. A versão geninho da informática “não transo mas programo em Gopher” também me cheira a dor de cotovelo (aliás, também me arrependo um tanto de ter feito tanta propaganda de Hunter Thompson. Agora, qualquer molenga que não sai de frente do computador é “gonzo”).
Eu sei um trilhão de coisas sobre quadrinhos e cinema e outras várias coisas que não fazem automaticamente parte do “universo nerd”. Mas sou crítico, o que para mim é a única diferença que importa. Esse negócio de gostar das coisas de maneira babona, acrítica, cega me enoja. É perfeitamente possível gostar de alguns filmes de Star Trek e outros não; ou de Tarkovski; ou de Chabrol; ou gibis do Batman; ou livros do Philip Roth; ou qualquer coisa.
Me irrita trombar jovens que acham que a vida se resume a ler gibi, jogar MMORPG, assistir desenho animado japonês etc. Tem muito mais coisa interessante por aí. Assistir 200 episódios de seriados por mês, quando você podia estar assistindo um filme do Mario Monicelli, é coisa de retardado mental e emocional. Paixão, sim. Visão estreita, não, por favor.
Vou mais longe: quem só lê gibi não entende o que está lendo. Porque os caras que escrevem gibi lêem outras coisas, e os caras que desenham são interessados em arte em geral, não só em quadrinhos. Se você tem um repertório mais variado, vai fruir de uma maneira muito mais profunda seu artefato pop predileto. O exemplo mais na cara é “A Liga dos Cavaleiros Extraordinários”, de – sempre ele – Alan Moore. Cada página faz alusão a algum universo ficcional, a maioria literários. Se você não pesca as referências, a “Liga” perde 90% da graça. Vale para gibi e para quase tudo na vida. Quem nunca tomou uma margarita não sabe que gosto tem um burrito.
E se você se sente meio incomodado ou atacado quando lê essas linhas, saiba que te falo isso de coração porque me importo. Quero o seu bem. Você é um dos meus. Te admiro porque já trabalhei com gente que parecia o mais fechado, acrítico e recalcado nerd por fora; e por dentro era de ouro.
E porque já trabalhei com gente que tinha desprezo por nerds e fãs e todo mundo que tem paixão infantil e teen e pura no coração. Gente que achava que a única coisa a fazer com essa nerdaiada era tirar o máximo de dinheiro dos trouxas. Assim tratava a quase todos com quem convivia, e assim tratava a mim. Aturei mais que devia. Não ature.
Quando eu achava que valia defender a palavra Nerd, costumava explicar para os incautos que nerd é um cara que gasta mais dinheiro e mais tempo que a média com coisas em que as massas normalmente não gastam dinheiro nem tempo. Por exemplo, é de se esperar que um homem de vinte anos de idade gaste muito tempo e dinheiro com, digamos, carro e futebol, e saiba tudo sobre carburadores e escalações. Mas, se ele tiver a mesma atitude com trilha sonora de filme pornô ou gibis brasileiros de terror dos anos 50, vira instantaneamente nerd. Entendeu?
Essa definição é justa e me inclui. Mas transforma em nerd qualquer um que tem uma relação apaixonada e informada com suas obsessões. É uma maneira de incluir, por exemplo, a tara de um amigo meu por comédias italianas. Essa explicação do conceito era uma atitude meio defensiva da minha parte. Retiro. Não é boa o suficiente. Embora eu continue achando muito melhor gastar tempo aprendendo sânscrito e dinheiro em collectible toys da Kotobukiya que seguindo bestamente a lavagem cerebral da mídia de massa.
A única coisa a fazer é rejeitar o epíteto de nerd e pronto. Não vamos mais conseguir resgatar o conceito do significado que ele ganhou. E de fato o mundo não se divide entre nerds e normais, ou geeks e populares. O mundo se divide – para efeito deste texto, pelo menos – entre gente interessante e desinteressante. Para mim, saber quem é Jim Steranko, Carl Stalling, Ken Adam ou Flávio Colin – de uma lista interminável – faz uma pessoa ser instantaneamente digna de atenção. Se você leu esse texto até aqui, já merece a minha.
Agora: se a figura conseguir conectar Conan com Alice no País das Maravilhas via pintores pré-rafaelitas e socialismo fabiano, estamos falando de uma pessoa interessante. Que não lê só gibi. Mas lê gibi. Eu leio. Você não? Que dó. E leio livros também, e vou a museu, e ouço música que não toca no rádio e ouço música que toca no rádio também. Eu não como só feijoada, nem só sashimi. O homem é um animal onívoro. Variedade é o tempero da vida.
Na minha infância e juventude nós, que hoje somos chamados de da periferia ou comunidade, éramos apenas suburbanos porque da Conselheiro prá cá (mundurucus, pariquis, caripunas descendo pela generalíssimo)e convivíamos numa boa com os “remediados” alí da Gentil prá cima. Íamos ao cinema regularmente.( no mínimo uma vez por semana, mas quando o filme era bom tinhamos que assistir quantas vezes fosse preciso para gravar até mesmo os diálogos na era pré-video tape) e líamos todos os livros e gibis comprados e depois trocados na frente dos cinemas Poeira, Iracema, Popular, Moderno e Opera.Líamos os jornais jogados fora ali pela Braz(Ultima Hora e o Globo de dias anteriores e especial o Jornal dos Sports com suas folhas cor de rosa e desenhos dos lances de gols do Otelo Caçador além das cronicas do Nelson Rodrigues sobre futebol e “A Vida como ela é” tinha também Millor, Stanislaw Ponte Preta e Carlos Drumond de Andrade, Carlinhos Oliveira, etc.mas, como disse o André a gente não era esquisitão, jogava bola no meio da rua, empinava papagaio, jogava peteca, bricava de pira, ferrinho(assassino – aquele que a gente ia espetando no chão e traçando labirintos para o adversário superar com linhas retas).A gente sabia dos filmes, das atrizes, músicas, tudo enfim que “tava bombando” mas não tinha isso de nerd (ex-cdf) e quando alguém nós achava esquisito nos taxava de comunistas.
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Sensacional a crônica do Forastieri. Dorivaldo, quando alguém era ligado em algumas coisas, classificado como “esquisito” (na verdade, meio fora dos padrões), de fato, naqueles tempos (pós-64 e por toda a década de 70, sendo que as coisas se abriram mais nos anos 80), este alguém era no mínimo alvo de suspeitas. Mas com o seu relato e com a crônica acima, podemos ver que, de fato, as gerações pós-80 passaram por um processo de emburrecimento atroz. Mas, talvez o estranhamento coletivo de certas “esquisitices” ou o não reconhecimento de padrões comportamentais “anormais” pelo senso-comum à época fossem mais uma espécie de sub-produto da paranóia dos tempos ditatoriais, haja visto o caráter moral extremamente conservador e recionário do regime e suas práticas de manutenção do poder (dentre os quais a delação) inauguradas então. Até por que, naqueles tempos, o rádio por exemplo ia do “comum” (o popular, o brega, Fernando Mendes, Jovem Guarda e quejandos) ao “exótico” (Caetano, Gil, Tropicália, Mutantes e etc). Lia-se da Folha do Norte ao Pasquim. Via-se do Gerra nas Estrelas a Jules e Jim ou Apocalypse Now.
Detalhe: o “comum” não era tão “comum” assim. Secos e Molhados, Clube da Esquina, Beatles pós-Revolver, Pink Floyd, Baiano e os Novos Caetanos, Raul Seixas, Ednardo, Belchior e mesmo Roberto Carlos eram bem sofisticados… sendo populares. Conclusão: emburrecemos!
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Cresci lendo Roy Thomas.Ele, americano formado em letras ,para mim era magistral ,criador dos diálogos das revistas de aventura de Conan.
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