
POR SYANNE NENO
Antes que me joguem pedras como a Geni do futebol, que troca de time como uma meretriz do afeto, esclareço: sou Fluminense de pai, mãe e pó de arroz na cara. Mas a mística da Estrela Solitária me inspira, me entorpece em bons sentimentos. E, definitivamente, não posso me calar diante da noite épica dessa quarta-feira, na qual o Glorioso Botafogo de Futebol e Regatas se classificou para a Libertadores e confirmou mais uma vez a sua vocação para o imponderável, para o mágico.
Tudo começou com Armando Nogueira. O “Marquês de Xapuri”disputava, texto a texto, adjetivo a adjetivo, com Nelson Rodrigues, o posto de meu Mestre-mor da crônica esportiva. Mas nessa disputa, o primeiro, ainda em vida, marcou um gol de placa decisivo para arrebatar meu coração para sempre. Em 1994, quando eu engatinhava escrevendo crônicas de futebol, recebi um cartão do Rio de Janeiro. “Querida, Syanne. Vá em frente. Suas crônicas têm estilo Um dia, se Deus quiser, a aluna supera o mestre” Ass: Armando Nogueira. Sim, ele mesmo, a figura mais poderosa do jornalismo da TV Globo durante muito tempo, o poeta de General Severiano, me mandava aquilo. E eu acreditei. Passei a escrever sobre futebol para existir. E comecei a ver no Botafogo, tão bem traduzido por Armando Nogueira, um time diferente. Ninguém comum consegue ser Botafogo. A começar por Armando Nogueira.
Os poetas, cronistas e cantores que eu mais admirava/ admiro também carregam a Estrela Solitária: Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Otto Lara Rezende, Marisa Monte, Eduardo Dusek…Não dá pra imaginar nenhum deles na vala comum. Mas ser Botafogo também é carregar a ( justa) fama de azarado. Digamos que em outra vida, as almas errantes escolhem voltar botafoguenses para expiar seus pecados. “Oh, céus, oh, vida, oh, mundo cruel…” como aquela hiena do desenho animado, o torcedor botafoguense vive a se debulhar em lamúrias. Eram jogos perdidos nos últimos minutos, arbitragem contra, heróis derrotados na vida real, coisas que só acontecem ao Botafogo, resumia sabiamente Armando Nogueira.
Mas vez em quando , a mística da Estrela Solitária resplandece apagando toda a má sorte atribuída ao clube. Ontem, ela brilhou no peito do goleiro Gatito Fernández. Em menos de um mês, o paraguaio passou de reserva a herói. Entrou no segundo tempo do jogo decisivo contra o Olimpia para subir ao Olimpo. Logo o Olimpia, arquirrival de Gatito, torcedor apaixonado do Cerro Portenho, junto com seu pai. Depois de uma atuação covarde do Botafogo no primeiro tempo, Gatito entrou. Na decisão por pênaltis, o predestinado fez três defesas e confirmou que, realmente, tem coisas que só acontecem ao Botafogo.
Hoje, a hiena chorona do desenho animado, que mora em cada torcedor botafoguense, trocou o disco. “Oh, céus, oh, vida, oh sorte a nossa de ter essa estrela solitária no peito!” Quando menos se espera, ela rompe de um vale sombrio e árido, ofuscando estigmas e crenças. Virando o jogo.
O Mestre Armando Nogueira, onde quer que esteja, sorri. Seu time confirma todo o legado deixado em suas poesias. Enquanto sua aluna…bem… essa não superou o Mestre. Muito longe disso. Mas carregando uma ponta da Estrela Solitária no peito, ela ainda espera por seu dia de Gatito Fernández.
E ele ainda há de surgir.