Neymar é junior

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POR FERNANDO MOLICA

Ao xingar preventivamente os supostos críticos da seleção, Neymar – aquele jogador acusado de fraudes fiscais no Brasil e na Espanha – demonstra mais uma vez a razão de estampar nas camisas um “Junior” ao lado de seu nome. Ele, como ressalta o complemento, é apenas um menino mimado, cheio de si e que se acha acima de qualquer crítica ou lei. Um menino que sai em defesa dos coleguinhas que deram vexame outra vez.

Em 2014, depois do 7 a 1, o Joaquim Ferreira dos Santos fez um texto espetacular, ‘O fim de Tóis’, em que apontava a infantilidade de nossos jogadores, meninos que brincavam de jogar na seleção, que se julgavam predestinados à vitória:

“Não treinavam. Tinham a força, a espada de Grayskull, o grito de Shazan, o apito do japonês, o licor de jurubeba e o pó de pirlimpimpim. Na hora agá, resolveriam.” Como se sabe, não resolveram.

Quase todos os jogadores da seleção foram muito pobres na infância. Desde que descoberta a intimidade que tinham com a bola passaram a encarnar o sonho de rendenção de suas famílias. Foram adolescentes privados de muitos prazeres – pela falta de grana e pela necessidade de levar uma vida compatível com a de um atleta. O foco na carreira é tamanho que, de um modo geral, a escola acaba sendo tocada apenas para cumprir tabela.

Ao contrário do que ocorre em países mais decentes, e apesar das mudanças ocorridas nos últimos anos, por aqui o esporte ainda é uma das poucas alternativas capazes de fazer com que um jovem de família pobre possa ter uma vida melhor. Muitos dos poucos que conseguem jogar em grandes clubes acabam descontando, na vida adulta, as limitações que passaram na infância e na juventude. Podem, enfim, brincar – têm grana, prestígio, poder, não devem satisfações a ninguém.

Tanta grana, tanto prestígio e tanto poder acabam sendo vividos por uma perspectiva muito egocêntrica, como lhes ensinaram olheiros, empresários e dirigentes – é cada um por si, o que vale é o brilho individual, o “sou eu e mais dez”. E tome necessidade de brilhar, de aparecer, de se destacar para além do uniforme, de ressaltar que, Jesus Cristo, eu estou aqui, veja só minhas chuteiras coloridas, minhas tatuagens, meus cabelos esquisitos, minhas sobrancelhas trabalhadas, meus louvores, minha fé. Uma fé que, de tão grande, dispensa treinamentos, táticas, jogo coletivo – que há de, sozinha, remover cabeças de áreas, zagueiros e goleiros adversários. É nóis, é tóis.

Meu querido e pra lá de saudoso amigo e compadre Sérgio Costa me chamou a atenção para uma entrevista ao ‘Correio’, depois da Copa de 2014, dada pelo zagueiro Dante, então no Bayern de Munique, O repórter perguntou o que seria importante para reformular nosso futebol. Resposta:

A escolaridade é muito importante. O futebol tem tudo a ver com educação. Quando se fala de uma tática de futebol, divisão de espaço em campo… Tem muita coisa que o treinador fala que depende da clareza do jogador. Lá eles investem. Fica a grande dica.

“É fácil entender Guardiola?”, perguntou o repórter. Dante respondeu:

Ele é um professor taticamente. Ele não explica o futebol de uma forma muito fácil, muito clara. Se você não tiver clareza na cabeça, não vai entender nada. Ele explica matemática: dois contra um, três contra dois… Sempre trabalha taticamente para ter superioridade de um lado do campo. Trabalha muito com a cabeça do jogador, com a inteligência. Muito diferenciado.

Nossa tática aqui é outra, é como se o talento – com brasileiro não há quem possa – fosse suficiente para driblar tudo o que se exige de um time de primeira linha. É como se fôssemos capazes até de superar também a roubalheira profissional dos dirigentes amadores.

Cobranças são vistas como indevidas, inadmissíveis, um constrangimento aos meninos do Brasil – adoramos chamá-los de meninos. Meninos carentes precisam de pais fortes, repressores, durões – daí o Felipão, o Dunga, daí a saudade que tantos brasileiros têm dos militares, daí o desejo que muitos têm de entregar suas vidas para o Bolsonaro. Daí que técnicos brasileiros não costumam fazer carreira no exterior (na Copa América do ano passado, três das quatro seleções semifinalistas tinham técnicos argentinos).

Nossos jogadores não são diferentes da maioria de nossos jovens, são filhos de um Brasil individualista, que estuda pouco, que acredita que a fé é capaz de tapar buracos de formação, esforço e treinamento. Um Brasil infantil, que não admite ser responsabilizado por seus próprios erros.

http://www.fernandomolica.com.br 

9 comentários em “Neymar é junior

  1. Vamos ver o restante da repercussão. Pela manhã assisti a alguns programas esportivos e não lembro de ninguém reclamando. Acho que ninguém quis vestir a carapuça. Bom, acho que o Neimar, o articulista, como de resto cada um de nós, temos o direito de fazer nossos pronunciamentos.

    Eu, por exemplo, acho que o Neimar está já cuidando de se antecipar, a respeito do provável fiasco que será o futebol olímpico.

    Quanto ao articulista, acho que expande demais o alcance de sua crítica para a maioria dos jovens e restringe demais quando fixa nos jovens brasileiros.

    Máxime quando vemos, por um lado, que o Brasil está na situação que está por obra de pessoas que já estão lá muito distante da juventude, tipo sarneys, renans, malufs, lullas, dilmas, aécios, delcídios, jucás, dentre muitos outros; e, por outro lado, que anteontem, muito longe do Brasil, um jovem não brasileiro, metralhou cerca de 50 pessoas pelo só fato de não concordar com a inclinação sexual delas.

    No Brasil há muitas mazelas. Mas, a maioria dos brasileiros e dos jovens brasileiros, são vítimas delas e não seus autores.

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  2. Concordo, Antônio, que o fenômeno de idiotização dos jovens é planetário, mas acho que esta geração tem mais potencial do que a minha, pois também tem mais acesso às fontes de informação (boas e ruins).

    No “Grande Satã”, as ligas de basquete e futebol americano – NBA e NFL – exigem do jogador a formação universitária, com raríssimas exceções. Um dos objetivos, dentre outros, é permitir que a parte tática dos esquemas seja passível de melhor compreensão e adoção.

    Já o Brasil, que não vive sob eterna ameaça dos fundamentalistas, como a Europa Ocidental e os EUA, não aproveita para explorar essa condição privilegiada e se impor como potência.

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  3. Entendo, Elton.

    Mas, me restringindo ao esporte, indago: será mesmo que a melhor compreensão da parte tática, ainda que em caráter generalizante, é melhor obtida pelos atletas com formação universitária? Tenho cá minhas dúvidas…

    Mas, admito que com os elementos de que disponho, não tenho como dissipá-las. Máxime em se tratando dos atletas americanos.

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  4. Neymar não somente atacou a mídia . Foi grosseiro com os poucos adeptos fervorosos da cbf. Em uma época em que nossas linhas de produções estão paradas. Neymar se sente um rei.
    A educação é sim primordial no processo que estamos vivendo. Países que há 30 anos não significavam nada no mapa da bola, hoje tem fornecido chutadores para as melhores ligas no mundo. É tudo culpa da – maldita- educação .
    Colocar um menino para viver debaixo de arquibancada é algo que deveria incomodar os que nela pulam. A discussão é longa e cheia de armadilhas . Resta saber se todos se todos estão dispostos em ceder terrenos para uma nova construção .

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  5. É, como diz o velho ditado: o Neimar escapou fedendo. Mais uma vez, diga-se.

    Mas, independentemente de quem venha a ser o técnico, muito provelmente vai enfrentar o mesmo problema no time olímpico.

    Daí minha tese ser a de que ele já está se antecipando com este comentário.

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  6. Antonio, me expressei mal.

    Não quis dizer que quem não tem nível superior de instrução não tem essa capacidade de aprendizado. Estão aí Pelé e outros que provam isso.

    Apenas acredito que a instrução em níveis mais elevados permite a todos – inclusive esses que já tem o potencial – a desenvolvê-lo.

    Abraços,

    Elton

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  7. Quadrado mágico, ponto futuro, triangulação… são alguns dos termos do futebol. Conceitos matemáticos. Conceitos que precisam ser trabalhados na escola, sim. Quantos sabem o que é reta, semi-reta e segmento de reta? Quantos pontos definem um plano? O que é função? Abscissas e ordenadas? Algoritmo?… A vida tem suas linguagens, e a matemática é só uma delas. Há também a História, a Filosofia, a Biologia, a Física… Quais as leis de Newton? O que é movimento? Inércia?… Parece banal, mas faz muita diferença! Geometria são a base para qualquer pedreiro fazer uma casa, e também a chave para entender o mapeamento de um território, como um campo de futebol. A inércia está em cada frenada do carro esportivo milionário, e de cada trombada do zagueiro. Conceitos relevantes para desempenhar um bom trabalho em todo clube. São facilitadores na comunicação entre comissão técnica e jogadores. Educação é mais que escola também, por outro lado. Vejam isso:

    Nossos clubes acabam por estragar uma oportunidade maravilhosa de tornar mais cultos os mesmos meninos e meninas que visam tornar atletas. Clubes têm função social, por certo. E por que só cuidam de um lado da tarefa, do corpo, e não da mente? Porque temos a ideia enviesada de que só professores em uma sala de aula são capazes de realizar a educação formal e desperdiçamos tempo com amadores e dirigentes inescrupulosos que visam somente o lucro fácil e imediato. Estamos perdendo a oportunidade de tornar os clubes verdadeiras escolas. Por isso, o ministério do esporte deve assumir parte da educação formal de jovens, para promover bem-estar social e saúde também pelo esporte. Penso que o Brasil deve federalizar o esporte, e não só a CBF. Não digo que se deve estatizar o futebol, mas a gestão. Privada, a CBF apenas tem realizado o desmonte da paixão nacional em nome de interesses espúrios e o Brasil tem perdido sua identidade com a crença de que jogadores talentosos são inesgotáveis, mas que são, na verdade, como ouro, recursos preciosos, mas limitados.

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