Canonizando Margaret

Por Vladimir Safatle

“Não existe esse negócio de sociedade. Existem apenas homens e mulheres individuais, e há famílias.” Foi com essa filosofia bizarra que Margaret Thatcher conseguiu transformar o Reino Unido em um dos mais brutais laboratórios do neoliberalismo.

Com uma visão que transformara em inimigo toda instituição de luta por direitos sociais globais, como sindicatos, Thatcher impôs a seu país uma política de desregulamentação do mercado de trabalho, de privatização e de sucateamento de serviços públicos, que seus seguidores ainda sonham em aplicar ao resto do mundo.

De nada adianta lembrar que o Reino Unido é, atualmente, um país com economia menor do que a da França e foi, durante um tempo, detentor de um PIB menor que o brasileiro. Muito menos lembrar que os pilares de sua política nunca foram questionados por seus sucessores, produzindo, ao final, um país sacudido por motins populares, parceiro dos piores delírios belicistas norte-americanos, com economia completamente financeirizada, trens privatizados que descarrilam e universidades com preços proibitivos.

Os defensores de Thatcher dirão que foi uma mulher “corajosa” e, como afirmou David Cameron, teria salvo o Reino Unido (Deus sabe exatamente do quê). É sempre bom lembrar, no entanto, que não é exatamente difícil mostrar coragem quando se escolhe como inimigo os setores mais vulneráveis da sociedade e quando “salvar” um país equivale, entre outras coisas, a fechar 165 minas.

Contudo, em um mundo que gostava de se ver como “pós-ideológico”, Thatcher tinha, ao menos, o mérito de não esconder como sua ideologia moldava suas ações.

A mesma mulher que chamou Nelson Mandela de ” terrorista” visitou Augusto Pinochet quando ele estava preso na Inglaterra, por ver no ditador chileno um “amigo” que estivera ao seu lado na Guerra das Malvinas e um defensor do “livre-mercado”.

Depois do colapso do neoliberalismo em 2008, ninguém nunca ouviu uma simples autocrítica sua a respeito da crise que destroçou a economia de seu país, toda ela inspirada em ideias que ela colocou em circulação. O que não é estranho para alguém que, cinco anos depois de assumir o governo do Reino Unido, produziu o declínio da produção industrial, o fim de fato do salário mínimo, dois anos de recessão e o pior índice de desemprego da história britânica desde o fim da Segunda Guerra (11,9%, em abril de 1984). Nesse caso, também sem a mínima autocrítica.

Thatcher gostava de dizer que governar um país era como aplicar as regras do bom governo de sua “home”. Bem, se alguém governasse minha casa dessa forma, não duraria muito.

6 comentários em “Canonizando Margaret

  1. Para Louis Althusser existe o aparelhamento ideológico de Estado, cuja finalidade é reproduzir as ideologias das repartições públicas. Tatcher usou o Estado contra o Estado. Usou o aparelhamento do Estado para acabar com ele ideologicamente. Talvez isso fosse o mais próximo da anarquia que algum dia já se chegou, quando do maior enfraquecimento do Estado. O aparelhamento do Estado o torna algo difícil de prescindir e eu só tinha uns 10 anos de idade quando Tatcher deixou o poder. Não sou anarquista, sou comunista, sou um filho dos planos cruzados, verão, Bresser, do gatilho, etc… Sou de uma geração que não tomava iogurte por causa dos reajustes diários de preços. Quando meus pais recebiam seus salários era preciso gastá-lo no mesmo dia porque a inflação era diária. Mas os melhores anos de que me lembro foi quando o Bill Clinton era o presidente do mundo, apesar de o FHC ter sido o presidente dos bancos. Não ousaria chamar de populismo, ou de lulismo, quando o Estado brasileiro se volta para os pobres e deixa os ricos um tanto desprotegidos. Bem medido e bem pesado, as palavras de Tatcher funcionam bem ao mercado que concorre livremente. É preciso entender que a livre concorrência é bem restrita, na verdade. Restrita a alguns players. Lançar pequenos empreendedores num mercado de gigantes é condená-los ao insucesso, e garantir a longevidade das mega-empresas. O que sei é que o que a Tatcher pensou não deu certo nem na Inglaterra, avalie o desastre que seria no Brasil.

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  2. O mundo anda mesmo meio maluco. Dois ou três anos atrás, ocorreram no espaço de umas semanas, a beatificação do Papa João Paulo II, o casamento do príncipe William e o assassinato do terrorista Osama Bin Laden, então, um professor escreveu a seguinte frase irônica: “Neste mês santificamos um papa, casamos um príncipe e matamos um mouro, sejam bem vindos a Idade Média.”

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  3. O prestígio da Dama de Ferro estava tão baixo por aquelas bandas, que no jogo Manchester United x Manchester City, não teve nem minuto de silêncio em sua honra.

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  4. Margaret Thatcher, com seu pensamento retrógrado, conservador e preconceituoso, tem relação direta com a crise capitalista, que instituiu no mundo a Teoria da Especulação de Mercado, mal que, ainda, afogará a humanidade por muito tempo. Se estivesse no poder, certamente, estaria uma hora dessas inflamando o mundo conservador, a atacar os Coreanos do Norte, povo que continua a sonhar com um amanhecer mais explêndido e que desafia a ideia fixa de que o Capitalismo é o único e o melhor caminho.

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    1. O pior é que a Dama de Ferro teve sua morte mais pranteada no Brasil do que na Inglaterra, onde aconteceram até manifestações de “comemoração” por sua morte.

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  5. A crise do petróleo no início dos anos 70, vista como grande contribuinte da “oneração” dos custos estatais dos países desenvolvidos do mundo ocidental, à época ainda seguindo os mandamentos do Welfare State – misto de política econômica de universalização do bem estar-social e antídoto contra o perigo “vermelho” – foi, a bem da verdade, apenas o gatilho, o “boi de piranha” de uma política consciente de desregulamentação e liquefação do Estado como entidade a dar guarida à sociedade e aos cidadãos, contribuintes e observadores de suas instâncias administrativas, fiscais, jurídicas e policiais. Tudo, é claro, em nome das liberdades “parciais”, quer dizer, do mercado que tudo pode. O esvaziamento do embate ideológico proporcionado pela queda do Muro de Berlim carnavalizou e canonizou os mandamentos neo-liberais, que uma vez tornados mantras, espraiaram-se pelo mundo mesmo tendo assolado o Reino Unido, uma das primeiras nações a experimentarem o gosto amargo dos ditames neo-liberais – juntamente com o Chile de Pinochet – sob a batuta da “Iron Lady”. Não à toa, as altas taxas de desemprego – similares aos tempos da Segunda Grande Guerra – e a precarização do trabalho provocaram enormes fissuras sociais na Inglaterra, que o diga a efervescência punk e o fenômeno do hooliganismo nos estádios de futebol (e não somente nestes). Mesmo o Reino Unido indo à bancarrota nos anos 70/80, a artilharia neo-liberal mirou o Brasil nos anos 90. E ainda sofremos com muitos efeitos colaterais desse amargo remédio que sabia-se, de aviso prévio, que causava muitos males.

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