Por André Miranda
Com 30 anos de carreira no cinema e 32 na TV, o gaúcho Jorge Furtado sempre foi uma unanimidade nacional: diretor de especiais como “Doce de mãe” e de longas-metragens como “Meu tio matou um cara” (2004) e o recente “O mercado de notícias” (2014), ele é considerado um dos maiores talentos na criação de histórias no país. Por isso, entre os dias 9 e 21 de dezembro, a Caixa Cultural apresentará no Rio a mostra Palavra em Movimento — Filmes e Roteiros de Jorge Furtado, uma retrospectiva de seus principais trabalhos para cinema e TV. Nesta entrevista ao GLOBO, o cineasta fala sobre o passado e também sobre o presente do cinema brasileiro. “O que existe hoje é um cinema descartável”, afirma.

Como você encara a ideia de fazer uma retrospectiva do seu trabalho?
Eu disse que estou considerando como o intervalo de um jogo, em que a TV mostra os melhores momentos do primeiro tempo. Mas ainda falta o segundo tempo. Olhando o que vai ser exibido, é interessante perceber como a TV mudou. A gente fazia programas mensais, “A comédia da vida privada” (1995) era mensal. Era um luxo: três ou quatro roteiristas trabalhando um mês num programa. Projetos assim não existem mais. A TV, num certo sentido, se empobreceu. A competição com o cabo e a internet faz com que a TV aberta navegue numa faixa mais estreita.
O que o levou a trabalhar com audiovisual?
Sempre gostei de escrever e sempre gostei de imagens. Mas eu achava que esses mundos, o da palavra e o da imagem, eram inconciliáveis, então fui estudar Medicina. Só que aí, no início dos anos 1980, o pessoal começou a fazer cinema em Porto Alegre, e percebi que minha busca era pelo cinema. Antes, eu já frequentava ciclos de cineastas, em que só passavam filmes do Resnais, do Kurosawa, do Bergman. Ali eu comecei a abrir minha cabeça. Então, larguei a Medicina e fui estudar Jornalismo, onde havia uma cadeira de cinema.
E logo um de seus primeiros filmes, o curta “Ilha das Flores” (1989), fez um sucesso gigantesco.
Ele é um fenômeno, realmente. Toda semana, recebo notícias do “Ilha”. Deixa eu olhar agora no Twitter, espera aí. Olha só: tem aqui, de 13 horas atrás, alguém dizendo que o filme é “nostalgicamente atual”. Eu perdi o controle sobre ele.
Acompanhando seu blog no site da produtora de que você é sócio, a Casa de Cinema de Porto Alegre, e também o que você faz em seus filmes, esse tema do “Ilha das Flores”, o da injustiça social, parece estar sempre em discussão no seu trabalho.
Eu me interesso pela vida real, e não consigo separar esse interesse do meu trabalho. Tive uma formação no cinema político. Para a minha geração, o cinema sempre foi um formador de opinião. A gente ficava esperando o que Truffaut, Scorsese, Godard ou Resnais iriam dizer sobre o mundo. Hoje isso não existe mais. O cinema perdeu muito da sua importância para pensar a realidade, a sociedade. São poucos os filmes ainda relevantes.
Por que isso aconteceu?
O cinema perdeu a relevância. Antigamente todo mundo queria saber o que o Bergman fez de novo. No fim dos anos 1970, eu fui até Buenos Aires de ônibus para ver “Laranja mecânica” (de Stanley Kubrick), que ainda era proibido no Brasil. E hoje? O que aconteceu é que, com a internet, veio uma profusão de imagens que banalizou muito o que é feito. É muito raro aparecer um filme que gere reflexão. No cinema brasileiro, são poucos os que ajudam a pensar o país.
Mas são poucos filmes relevantes mesmo num momento em que a produção brasileira não para de crescer?
Exatamente, são mais de cem filmes por ano. Acho que falta fazer um cinema útil, durável, que nos leve a debater. O que existe hoje é um cinema descartável, de puro entretenimento. Não é apenas no Brasil. Eu não sou contra o cinema pop, mas esses filmes de super-heróis me interessam pouquíssimo. Um filme como “Boyhood”, que é espetacular, só aparece de vez em quando. São raros. O cinema perdeu sua força.
E ainda é possível fazer esse cinema útil e atrair pessoas? Os filmes brasileiros, quando estreiam, não passam muito de uma semana em cartaz por falta de interesse do público.
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Acho que a resposta passa por garantir o espaço do filme na sala, para que o público possa encontrar esse filme, mas passa também por uma autocrítica dos realizadores para saber se eles estão conseguindo fazer algo interessante para as pessoas. Se não houver uma preocupação com o público, o cinema vira um clube de aeromodelismo.
Esse debate esbarra numa discussão antiga que existe no Brasil, sobre o financiamento dos filmes.
As leis de incentivo que nasceram no Brasil têm como vício de origem essa isenção de 100% do imposto de renda. Às vezes a pessoa não está nem aí se vai lançar o filme ou não. Não faz diferença se o público viu ou não: o cara já pegou o dinheiro, fez o filme, circulou nos festivais e deu entrevista. As leis de incentivo criaram um descompromisso com o público. Mas, por outro lado, se só existirem filmes cujo interesse é fazer milhões de espectadores, você acaba criando um cinema descartável. São essas comédias fáceis que têm um megapúblico, mas, passados cinco anos, viram peça de museu. Não servem para nada, são muito frágeis. Acho que todo tipo de filme deve ser feito, mas é preciso repensar como financiar essas produções. E também sou a favor de encontrarmos um cinema intermediário entre os filmes totalmente cabeça e esses arrasa-quarteirão. Um cinema popular de qualidade.
É o que você buscou nas suas ficções?
É o que eu, o Guel Arraes e nossa turma sempre pensamos. Queremos fazer coisas populares, mas que não sejam só bobagem.
Você já disse que seus filmes são sobre pessoas modificadas por uma paixão. Por que esse tipo de história lhe interessa?
São paixões diversificadas, não apenas por mulheres. Em “Saneamento básico”, por exemplo, a paixão era pelo cinema. Acontece que eu sempre vi a ficção como um exercício para a alma, onde a gente exercita nossas emoções através do outro. Quando vê um filme como “Ladrões de bicicleta” (1948), você se transforma, passa a enxergar a vida de outro ponto de vista. Ou, quando você vê “Corações e mentes” (1974), entende o horror da guerra. São situações que te educam emocionalmente, numa diversidade de temas. A outra opção de cinema é apelar para os instintos mais básicos. Se quiser, você pode fazer um filme com sexo e violência pelo qual qualquer ser humano vai se interessar. São situações que sempre vão funcionar, mas isso acaba banalizando o cinema. Para fazer algo mais complexo, é necessário elaboração.
Você escreve bastante sobre política em seu blog e nesta última eleição declarou voto em Dilma Rousseff. Numa campanha mais raivosa como foi a deste ano, houve uma reação dos leitores por conta de você se posicionar politicamente?
Desde que tenho o blog, declaro em quem vou votar. Este ano, porém, tentei pegar mais leve, falei menos do assunto do que normalmente falo. Nós estamos numa democracia há 25 anos, e na democracia a gente vai aprendendo aos poucos. Eu sou bem otimista, e temos que aprender a conviver com pessoas que pensam diferente. Meu amigo vota em alguém, e eu voto em outra pessoa, isso é normal. Na política o que precisamos fazer é buscar as coisas que temos em comum. Alguém é contra uma melhor educação pública? Um melhor sistema de saúde? Ninguém é contra isso. A questão é como chegar lá. Política não é só opinião, é ação. Esta semana nós ficamos sabendo que a mortalidade infantil no Brasil caiu pela metade nos últimos dez anos. Isso é uma coisa que só a política faz, o cinema não diminui a mortalidade infantil.
É possível resgatar a crença do brasileiro na política?
Nós temos uma geração que não viveu a ditadura e que pode achar que o Congresso é uma porcaria e que a política é uma atividade quase criminosa. É verdade que a política realmente atrai muito picareta. Mas daí a dizer que os políticos não servem para nada é demais. A gente tem que lembrar que sem partidio político não há democracia. É importante lembrarmos dessas cosias e debatermos com civilidade.
Mas que tipo de críticas você recebeu por declarar voto?
Eu sempre sou criticado em todas as eleições. É normal. Não indo pelo lado pessoal, sendo uma discussão no campo das ideias, eu gosto de debater. Eu só evito baixarias. Tenho uma regra: não bato em quem gosta de apanhar, porque aí será um trabalho interminável. Meu blog não aceita comentários e não tenho Facebook. Eu só escrevo alguma coisa quando tenho algo a dizer. Com essa quantidade imensa de mídia, tenho a impressão de que está todo mundo falando, mas ninguém escutando.