Filme resgata a era de ouro da MPB

Por Marco Tomazzoni, do iG SP

Imagine um palco que reúna na mesma noite Chico Buarque, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Elis Regina. Ainda coloque na conta Mutantes, Edu Lobo, Jair Rodrigues, MPB4 e Geraldo Vandré. E Nara Leão. E Nana Caymmi. O que hoje parece um desvario, algo impossível, aconteceu há 40 anos e figura como um dos momentos mais emblemáticos da cultura nacional. Pois o III Festival de Música Popular Brasileira volta à baila no documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, escolhido para a abertura do festival É Tudo Verdade.

A chamada “era dos festivais” começou em 1965, na TV Excelsior, e o formato deu tão certo que se espalhou pelas outras emissoras da época. As eliminatórias e finais eram realizadas em teatros tradicionais, enormes, e o clima, de torcida frenética: o público tinha seus preferidos e, de acordo com o candidato, acompanhava a performance vaiando ou cantando junto. Os programas serviam também de plataforma para novos artistas – Chico Buarque chegou ao estrelato em 1966, com a vitoriosa “A Banda”, e Milton Nascimento com “Travessia”, no ano seguinte –, novas tendências e como palanque para a contestação política. Uma janela e tanto para fisgar a opinião pública.

Abrigado pela TV Record, o Festival de Música Popular Brasileira (ou Festival da Record, como chegou a ser conhecido) teve seu auge em 1967 por registrar o ápice das tensões que moviam a cena na época. O samba tradicional convivia em razoável harmonia com a canção de protesto, mas a presença da guitarra elétrica, empunhada pela turma da Jovem Guarda, representava uma pretensa ameaça à integridade da música nacional, tanto que Elis e Gil chegaram a liderar uma passeata contra o instrumento e a influência da cultura norte-americana poucas semanas antes do programa – passeata, aliás, cujas imagens vêm pela primeira vez a público, resgatadas da Cinemateca Brasileira.

“Existia uma divisão muito clara, duas correntes musicais que não se falavam”, afirma Terra, um dos diretores do filme. “A partir dali, começou a se produzir um tipo de música que existe até hoje, misturando elementos regionais e da vanguarda musical no mundo inteiro, que chamavam na época de ‘som universal’. Acho que o festival de 67 foi o mais representativo, o mais importante.” Esse “som universal”, na verdade, era nada mais, nada menos do que o embrião do tropicalismo, tanto que Gil e Caetano apresentaram duas canções que se tornariam bandeiras do movimento: “Domingo no Parque”, ao lado dos Os Mutantes, e “Alegria, Alegria”, com os Beat Boys.

“Ponteio”, defendida por Edu Lobo e Marília Medalha, “Roda Viva”, com Chico Buarque, e “Maria, Carnaval e Cinzas”, samba surpreendente cantado por Roberto Carlos no auge do iê-iê-iê, completam as cinco primeiras colocadas pelo júri e que formam a espinha dorsal do documentário. A equipe do filme reuniu depoimentos saborosíssimos de todos os envolvidos e de quebra ouviu Sérgio Ricardo, nosso primeiro rockstar – incomodado pelas vaias que o impediam de tocar a música “Beto Bom de Bola”, ele destruiu seu violão em uma cadeira do palco.

Aquele era o embrião do tropicalismo, movimento que incorporou o “som universal” à música brasileira. Universal por querer unir, como lembra Gil, Pífaros de Caruaru com Jefferson Airplane, ou berimbau com a guitarra, como fez com Os Mutantes em “Domingo no Parque”. Testemunhar Caetano falando sobre música pop e sua intenção de “assumir todas as formas da cultura massificada” num dos programas com maior audiência do país era o sinal de que, a partir dali, tudo seria possível.

Uma Noite em 67 registra os bastidores e o contexto daquela época de forma singela, mas potente – tudo é contado apenas com as imagens de arquivo da Record e, o grande mérito, entrevistas atuais com os protagonistas do evento. Até pessoas ariscas à imprensa, como Chico, comparecem, mas a surpresa maior fica mesmo com o quase eremita Roberto Carlos. Popstar máximo, símbolo do iê-iê-iê, participou do festival com um samba, “Maria, Carnaval e Cinzas”, e lembra no filme seu passado como crooner.

5 comentários em “Filme resgata a era de ouro da MPB

  1. Época de ouro. Por mais que os compositores da geração atual se esforcem para voltar aquele clima de qualidade musical, não conseguirão, faltaria o cheiro no ar da ocasião,

    Curtir

  2. E teve também a célebre vaia ao grande Sérgio Ricardo, que retribuiu com uma “violãozada” no público intolerante.
    Roberto Carlos também foi vaiado( a música que cantou era linda), Caetano Veloso foi vaiado, Tom Zé idem, enfim, predominava entre o público uma espécie de ortodoxia que execrava experimentos como o uso de guitarras elétricas na nossa sacrossanta MPB, coisa que depois provou-se totalmente idiota.
    De qualquer modo, e apesar de vivermos sob uma ditadura, ao menos na música essa foi uma época marcante, basta ver quem revelou. Além dos monstros sagrados já citados, ainda teve o saudoso Sidnei Miller, autor de “A Estrada e o Violeiro”, considerada a melhor letra daquele festival, que defendeu magistralmente em duo com a não menos saudosa Nara Leão; Dori Caimmi e Nelson Mota, nesse tempo ainda com um discurso arejado, autores de “Cantador”, que proporcionou à Elis Regina o título de melhor intérprete e muito mais entrou, a partir daí, na história de nossa música enriquecendo-a definivamente. Saudade que pode ser “matada” um pouco assistindo esse documentário. Desde que não seja nesses abomináveis moviecons.
    Depois a Globo entrou no circuito e acabou por destruir os festivais atingindo em cheio, com uma bala perdida da mediocridade, a nossa música que até hoje capenga e vive do que aconteceu nesse recente passado de ouro.

    Curtir

Deixe uma resposta