Por Elias Ribeiro Pinto
As mulheres sentiam-se intimidadas ao atravessar aquele corredor polonês, varejadas por olhares empapuçados
1 A coluna “Para tudo acabar na quarta-feira”, publicada na semana passada, em que escrevi sobre o Garrafão – uma lenda da boemia belenense – e seu melancólico fim, trouxe mensagens de leitores e rendeu dezenas de comentários no Facebook, onde o texto foi reproduzido.
2 Fundado por dois sócios em 1962, os portugueses José Lopes, alfaiate de profissão, e Antônio Mendes Gonçalves, ex-vendedor ambulante, o Garrafão criou logo freguesia cativa. Nos fundos, o restaurante começava a firmar a excelência de seu galeto, estraçalhado por gente que começava também a firmar o nome na sociedade belenense.
3 Na frente do bar, o sorvete atraía a garotada. Suas prateleiras repletas, da pilha ao leite em pó, passando pelas guloseimas, faziam as vezes de mercadinho do bairro. “Seu” José ficava responsável pela administração direta, marcando ponto no salão de vendas. Já “seu” Antônio estendia-se por outros ramos de atividades. Recebia o visitante no escritório, instalado numa espécie de mezanino, a que se chegava por uma estreita escada situada ao fim do balcão do lado esquerdo do prédio, onde, na outra extremidade, ficava o caixa.
4 Essa intensa atividade, de quem ia almoçar, tomar sorvete, comprar pão (sim, também se vendia pão) ou subia ao escritório para tratar de negócios com “seu” Antônio contrastava com a última fase vivida pelo Garrafão, à entrada do século 21. As prateleiras, à medida que zerava o estoque, deixavam de ser reabastecidas. Na última semana de existência da casa, teias de aranha ocupavam o vazio nas prateleiras. Restavam algumas “mentas”. O sorvete, uma das últimas mercadorias a resistir, teve seu derradeiro cartucho vendido quase dois anos antes do fechamento do botequim decadente em que o comércio se transformara.
5 O escritório da casa, por sua vez, virou depósito de trastes, incluindo a imensa bandeira do Paissandu (favor não relacionar à coleção de trastes) que um torcedor fanático lá guardava depois de desfraldá-la na frente do bar em dias de jogo do bicolor. O restaurante se foi bem antes, mas o galeto resistiu até a derrocada definitiva.
6 O que bem poucos lembram – ou ninguém, para ser precisamente estatístico, com margem de erro de um boêmio – é que na mesma quarta-feira de 5 de dezembro de 2001 em que morria o Garrafão, um outro bar – espécie de primo-rico do parente pobre que se finava – completava risonhas 15 primaveras, com direito a convite e camisa comemorativa.
7 Naquela noite de 13 anos atrás, apenas duas esquinas separavam o lúgubre enterro na Serzedelo Corrêa do concorrido acesso, na Benjamin Constant com a Braz de Aguiar, ao Cosanostra. É bem possível que muitos dos que confraternizavam, brindando aos 15 anos do Cosanostra, tenham passado um dia pelo Garrafão, desconhecendo-lhe o fim no mesmo momento em que cantavam os parabéns e tiniam taças.
8 A clientela dos dois bares, à época, era bem distinta. Ao aniversariante, com seu estilo “esportivo social”, mezzo bistrô mezzo pub, ia tanto o profissional resolvido na vida quanto o jovem que se inaugura na noite. Acompanhadas ou sozinhas, as mulheres sentem-se à vontade no ambiente propício aos que querem ver ou ser vistos. O brilho emanado pelo Cosanostra atraía tanto mariposas quanto aspiradores de carreiras sociais.
9 Ao finado Garrafão iam aposentados, a vizinhança masculina, taxistas, homens maduros de paletós, lavadores de carro, camisados e descamisados. Já as mulheres sentiam-se intimidadas ao ter de atravessar aquele corredor polonês, varejadas por olhares empapuçados. E com seu ar francamente soturno o Garrafão não conseguia atrair as novas gerações.
10 Depois de anos sem ir lá, no último final de semana retornei ao Cosanostra, que continua resistindo, aos 28 anos de existência. Comemorará três décadas? O Garrafão viveu 39 anos.