Por Elias Ribeiro Pinto, no DIÁRIO
1 Uns três domingos atrás, na Serzedelo Corrêa, tomei umas cervejas com os órfãos do Garrafão. Desde que o lendário bar e restaurante fechou, há uma legião que, desabitada de seu cais boêmio, jamais encontrou nova atracação no centro.
2 O Garrafão, que fechou no dia 5 de dezembro de 2001, ficava exatamente do outro lado da rua onde bebíamos, os órfãos. E do lado de lá, onde hoje funciona um restaurante que também serve café da manhã, ainda posso ouvir o chamado, não do além, mas da boemia, me suplicando o regresso, minha nova inscrição. Do mausoléu do Garrafão, escorado ao Manoel Pinto da Silva, 40 séculos, digo, 40 anos de boemia me contemplavam.
3 O Garrafão era um dos últimos moicanos. Em seus 39 anos de vida, foi contemporâneo da Maloca, do Biriba, do Porão, do Papa Jimi, da Tonga, do Corujão e do Primavera, bares que, instalados na área central da cidade, fizeram história nas últimas décadas.
4 Naquela quarta-feira de quase 13 anos atrás, no 5 de dezembro de 2001, seus 15 derradeiros fregueses, já sem esperança da saideira perpétua (era o bar que saía de cena), testemunharam as portas do Garrafão descerem definitivamente. Alguns deixaram a cena do crime levando um souvenir qualquer, uma lembrança do ente querido, nem que fosse o isopor térmico de cervejas ou o “galeto” (uma das especialidades da casa) escrito em acrílico, alojado na tabela de preços na parede.
Numa crônica antológica, “Os bares morrem numa quarta-feira”, publicada em 1977, Paulo Mendes Campos remonta o ciclo de apogeu e morte dos bares que marcaram época no Rio de Janeiro. Segundo o escritor mineiro, “os bares nascem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem”. E mais adiante: “O obituário dessas casas fica registrado nos livros de memórias. Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única cidade”.
5 Ainda tenho (ou as traças já devoraram?) na gaveta a camiseta comemorativa do último réveillon do Garrafão, o de antes de sua morte, numa quarta-feira, a exemplo das melhores famílias de bares cariocas. Nem parecia o último, ou talvez por isso mesmo, por antecipar a morte anunciada. Foi o mais animado de todos, com direito a banda puxada pelo cantor Eloy Iglesias.
6 Eu estava lá, naquela fúnebre quarta-feira, a tempo de escrever uma reportagem de página dupla aqui para o DIÁRIO. Contribuímos para a história ao fazer o registro do último brinde no Garrafão.
7 Ao baixar de vez sua porta, o Garrafão deixou a vida para entrar na história da boemia belenense. Como lembrou Paulo Mendes Campos na crônica citada, depois que se vai, perdoa-se, no bar-defunto, a bebida morna, o banheiro sujo, o eventual mau humor do garçom, as desavenças. A saudade a tudo perdoa e só guarda os momentos amenos e a acolhida do bar preferido.
8 “O curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua frequência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem jamais o nosso amor. O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam”, sublima o cronista.
9 Restaram, para o lendário, alguns episódios. Uma vez, durante a lei seca, proibida a venda de bebida alcóolica no dia de votação, policiais entraram no bar e queriam levar preso o Bené, gerente do Garrafão. O problema é que, na outra ponta do balcão, delegados, desembargadores e juízes se confraternizavam. Chegou-se a um consenso. Bené seria deixado em paz. Em troca, as portas seriam baixadas, com os ilustres bebedores do lado de dentro.
10 Para tudo acabar na quarta-feira.
Cabra bom. Quando crescer quero escrever assim… tidizê!
Esqueceu de citar entre os bares históricos extintos, o bar pleiboy em frente ao garrafão. E esqueceu de citar que esse era o período de verdadeira boemia porque ainda se conseguia andar nas ruas de Belém tranquilamente, com aqueles cordões de ouro, relogio orient, seiko, calça boca de sino, perfumado até o cabelo sem ser importunado por ninguém. Eu era muito feliz e sabia.
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Não houve carta-testamento, mas sobrou dignidade. Feito aquele bebum revoltado do impagável filme do Hugo Carvana, “Bar Esperança”, que prometeu jamais frequentar boteco de shopping, onde servem chopp em copo plástico, os orfãos do tiro no coração do Garrafão parecem ter encontrado o espaço minimamente digno pra se beber um morto. Nem tudo está perdido.
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Sou um desses órfãos. A morte do Garrafão foi um dos motivos para eu deixar de beber. Ficava a poucos metros de minha residência e por isso era muito cômodo encontrar parceiros para bater-papo regado a cerveja, de segunda a domingo. Bons tempos.
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Lembro-me do lendário bar-boteco-confraria acadêmica-disciplina curricular obrigatória que era o “Copo Sujo”, em frente ao portão do Campus Profissional da UFPA, também conhecido como “terceiro portão”. A birosca, um verdadeiro muquifo, povoa até hoje o imaginário e a memória etílica coletiva de acadêmicos e ex-acadêmicos da universidade. Dizem por aí que fizeram até um documentário sobre os extertores do bar. E sabem de uma coisa? Seu ocaso também foi numa quarta-feira. Sina?
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