“O país inteiro está entrando no pântano”

POR HELENA BORGES, no The Intercept Brasil

A semente do impeachment foi a onda de manifestações em junho de 2013, segundo o sociólogo Jessé Souza. “Se montou uma base de classe média, dizendo que era o povo”, observa, lembrando que “as classes que ascenderam não saíram à rua”. E diz que, com o impeachment, cria-se uma “pseudodemocracia”, que tem a aparência de uma democracia, mas a que falta seu principal fundamento: a soberania popular.

Polêmico, classifica a ex-presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de “politicamente ingênuos”, por não garantirem pluralidade nos discursos da grande mídia, principalmente nas redes de televisão aberta. E diz que as grandes empresas de televisão fazem papel de partido político no Brasil.

Ele, que já presidiu o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), critica a postura “economicista” da esquerda e, principalmente, da ex-presidente Dilma Rousseff, ao achar que um programa econômico mudaria a sociedade como um todo. Diz que “é falso” achar que a inflação afeta o voto do cidadão. E chama de “fofoca” o fato de que parte da elite se manteve em apoio à presidente afastada.

Jesse-Souza-540x338

THE INTERCEPT BRASIL: O que de fato muda na realidade brasileira com a decisão pelo afastamento da ex-presidente?

JESSÉ SOUZA: Muda muita coisa. Quem montou a coisa não tem a menor ideia do que fez, efetivamente. Este impeachment sem nenhuma legitimidade, como ficou óbvio nos debates e tudo, implica que você retirou o fundamento da vida política. É isso que não se percebe. O acordo político está montado na soberania popular. E, no fundo, o único cargo eletivo no Brasil que tem verdadeira ligação com a soberania popular é o executivo. Porque as outras eleições são muito fragmentadas, localizadas. Quando você tira o presidente eleito pelo povo, o que foi que você fez? Mexeu no fundamento da ordem democrática inteira. Se não for ligado à soberania popular, tem que estar ligado à força. Percebe? Então, o país inteiro está entrando no pântano.

TIB: Como assim entrando no pântano?

JS: Essa falta de legitimidade vai produzir cada vez mais fricção, atrito. Entrou-se agora num mundo desconhecido. Tem uma geração de pessoas que imaginavam que estavam construindo uma democracia. Quando você solapa a soberania popular, no fundo se cria uma pseudo democracia. Ela vai ter os atos exteriores de uma democracia, mas vai estar faltando aquilo que é o principal. O que houve com o impeachment foi uma usurpação, porque ficou óbvio que foi um pretexto e não tem nenhuma legitimidade. Não houve crime, a presidenta não é corrupta, ela pode ser tudo, mas ela não é corrupta. As pessoas sabem. E o crime de responsabilidade tem a ver com isso.

TIB: Mas as acusações contra ela não foram de corrupção. A questão girou em torno da mudança nos gastos sem consulta ao legislativo.

JS: Exatamente, mas isto antes estava ligado à noção de crime de responsabilidade. Aí foi se mostrando cada vez menos convincente. O fato é: como todos os administradores em todos os níveis realizaram coisas semelhantes, é um completo absurdo que só ela seja acusada e ninguém mais. 

TIB: Fala-se que este caso abre precedente para que outros políticos, não só presidentes, mas governadores e prefeitos sejam retirados de seus cargos pelos mesmos motivos. O senhor acredita que isto seja possível?

JS: Obviamente. Mas, quando se diz esse tipo de coisa, nunca se toca no principal, que é a questão da soberania popular. Quando você corrompe a nação, cria insegurança jurídica. Quando você estava dizendo “isso vai criar uma jurisprudência”, é apenas uma insegurança jurídica que é produzida quando se solapa a soberania popular.

TIB: Mas, de certa forma, não haveria —apesar de vários efeitos negativos— um efeito positivo de outros políticos do executivo se sentirem agora menos confortáveis em mexer a bel-prazer no orçamento daquilo que eles gerem?

JS: Aí a gente está pegando a noção de orçamento como se fosse um orçamento familiar, em que a conta não pode faltar. A gente não pode entrar nessa discussão, que é superficial. Ela está toda voltada para que nunca toque no que é fundamental.
Como se houvesse um livro contábil, como a dona de casa que diz “eu recebi aqui e só posso gastar isso”. Depende! Se o filho dela estiver doente, ela tem que pegar emprestado, mesmo. Salvar uma vida é muito mais importante do que a eventual composição de saldo.

Se você estiver pegando dinheiro, porque a arrecadação tem seus ciclos, e está adiantando o dinheiro para deixar com as famílias que estão passando fome. Uma lei orçamental, que é instrumental, é ridícula nesse caso. É uma questão que fica ridícula, porque ela é montada para nunca tocar na questão principal, que é um assalto. O ponto não são livros contábeis. Você vê o que está contado, a questão importante é o fato de como uma elite com dinheiro pode se apropriar do orçamento estatal. É uma elite que está usando seus dois braços práticos. O braço esquerdo é o Congresso comprado, não passa nenhuma lei que lhe taxa. E a imprensa do outro lado. Uma imprensa aliada desde sempre, comprada via propaganda, negócios e negociatas.

TIB: Não se torna um pouco paradoxal criticar as elites e ter uma pessoa como a senadora Katia Abreu —uma representante das elites do agronegócio— defendendo a ex-presidente?

JS: Veja bem… Num país capitalista, você tem que ter alguma forma de compromisso com os capitalistas. Porque você não consegue… Exatamente como aconteceu com a presidenta Dilma, por exemplo. Foi uma crise econômica politicamente produzida. Houve retração de investimento, evasão fiscal… No tipo de capitalismo financeiro que temos, a riqueza inteira vai pra essa capa superior. E como você não pode taxá-la, o Estado passa a pedir emprestado via dívida pública. Essa é a elite. O fato de que algumas pessoas ricas ligadas a esse negócio ficaram com ela, isso é secundário. Isso é uma leitura que fica na superficialidade, uma fofoca. O que importa aí é o jogo de uma elite financeira que está criando mecanismos de drenagem sistemática de recursos da população como um todo. Esta, por sua vez, não percebe como a taxa de juros funciona, ou como ela vai estar acoplada a todos os bens e serviços que todas as classes consomem, e que vão mandar esse excedente todo para os rentistas.

TIB: Algumas políticas e posições econômicas do próprio governo do PT acabaram ajudando essa elite. Por exemplo, usar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) pra financiar grandes empresários

JS: Que a esquerda fez mil erros, fez. Não só esse. Foi ingenuamente republicana. Aparelhou os partidos corporativos. Não teve uma leitura sobre a sociedade e suas lutas. Não conseguiu montar uma hegemonia simbólica. Os erros da esquerda foram inúmeros. Não que essa seja a questão principal. A presidenta Dilma, em termos de política econômica, teve a classe de proprietários completamente contra ela a partir de abril de 2013. Quando, em 2012, fez um ataque à taxa de juros, esse é o ponto principal. Todas as classes proprietárias —o comércio, o agronegócio, a indústria— aplicam seus ganhos no rentismo. Todos eles fecharam fileiras contra a presidente. E quando os juros voltam a subir em abril de 2013 e as manifestações ocorrem em junho, tem uma união. A elite já tinha se construído em uma frente contra a presidente usando seus braços: o Congresso e a imprensa.

TIB: Qual a ação da imprensa nisso?

JS: A imprensa manipula, o Jornal Nacional manipula rebeliões locais e municipais e federaliza isso para atingir a presidenta. A partir daí, tem o esquema do golpe. Tenta-se primeiro uma saída, a eleitoral, em 2014. Depois, existe a decisão por qualquer saída, mesmo que seja extra eleitoral. Tem uma narrativa do golpe que é montada a partir de interesses econômicos muito claros e que não estão sendo percebidos nesta narrativa. Eles estão sendo escondidos por conta de pessoas, personagens, uma novelização desse processo de impeachment. 

TIB: Recentemente, a presidente Dilma admitiu uma certa inocência em ter escolhido Michel Temer como seu vice-presidente. Foi inocência ou falta de noção política, na época, em não conhecer quem estava convidando para vice-presidente?

JS: O que aconteceu na esquerda em geral, chamo de economicismo. Montam um projeto econômico, imaginam que a sociedade inteira vai mudar a partir disso, o que é completamente ingênuo. A sociedade não muda e não consegue se ligar afetivamente. As classes que ascenderam não saíram à rua para proteger esse projeto. Foram várias ingenuidades nesse processo. Mas não podemos ficar nesse nível pessoal: “Ah, o Temer, e tal”.

TIB: Sobre programa econômico, existe uma diferença muito clara entre o de Dilma e o de Lula. O atual ministro da fazenda, Henrique Meirelles, já foi presidente do Banco Central no governo Lula, por exemplo. Era um dos principais nomes de seu programa…

JS: Isso obviamente não foi uma escolha. Teve a ver com a opção do Lula: “Vou deixar o rentismo intocado, porque não posso comprar essa briga com as classes dominantes”. O rentismo, em todo lugar, mas especialmente aqui, é uma rapina, são elites que não têm compromisso nacional.
Isso é exploração de classe, que é tornada invisível pela imprensa, o real partido. A imprensa conservadora, especialmente os grandes canais de televisão, cumprem a função de partido. Nenhum partido conservador cumpre a função de arregimentar, convencer. Quem cumpre é a imprensa, todos esses jornalistas econômicos são pagos direta ou indiretamente pelo capital financeiro para dizer que isso é controle da inflação. Para dizer que essa enorme extração de recursos serve para um bem supostamente comum, e não para engordar o bolso de meia dúzia. E Lula percebeu isso, montou dentro do contexto de commodities: “eu deixo o rentismo intocado para poder governar”. Claro, porque, se não, é golpe. Todas as vezes que essa elite foi ameaçada, ela tirou o governo do poder. Nunca houve governo minimamente de esquerda que não foi retirado antes. João Goulart sequer chegou a tentar implementar, ele falou na reforma de base e já foi tirado. 

5 comentários em ““O país inteiro está entrando no pântano”

  1. Gerson, um excelente comentarista esportivo, com artigos que merecem reflexão, infelizmente como comentarista politico fanático só faz afastar seus es

    Curtir

  2. Dizer que a ex presidente e seu antecessor são ingênuos ou foram ingênuos é algo tão extravagante quanto um partido que se dizia de esquerda se aliar fortemente a políticos da índole de s a r n e y, m a l u f, c o l l o r, c a l h e i r o s, c u n h a, d u c i o m a r c o s t a etc. E a prova desta extravagância foi o fatiamento da votação do impeachment e o afastamento da inabilitação da impedida, já de olho na preservação dos comparsas.

    Curtir

  3. Com esse clientelismo que existe na politica brasileira, com a maioria da populacao sendo manipulada e sem consciencia politica, acho muito dificil as coisas mudarem por ai. Penso, que so um golpe dado pelo povo, mandando essa cambada de corruptos inclusive os do judiciario que estao comprometidos com essa elite para a masmorra, para talvez mudarmos as leis e colocarmos todos no mesmo nivel de justice.

    Curtir

  4. Jaime e Charles Resende. Concordo inteiramente com as análises feitas pelos senhores, como também pela entrevista feita por Helena Borges, no Intercept, pela coerência das coisas.

    A questão central política é a superioridade de Trabalho em relação ao Capital. Os rentistas, desde sempre, agraciados com os mais altos juros do mundo, mesmo diante de um governo de esquerda, mas, mantido o rentismo instou a uma acomodação dos lados conflitantes.

    Dilma, que sequer foi Vereadora, lhe faltando os meandros políticos, ainda logrou êxito em seu 1º mandato, no entanto, no momento que aprofundou na parte confrontanye com os rentistas- seus colaboradores políticos, por sua permissão para amplas investigações, misturaqndo o tabuleiro do jogo, acendeu a luz do golpe, desencadeado desde 2003, mas em banho maria, pelas circunstâncias.

    Há, no entanto, um aspecto importante, de tornar público, à base da pirâmide,a atuação da corrupção em todos os ótgãos da república, de tal modo que agora, passou a merecer a consideração geral, que, pode alçar a uma reforma política, incluindo a justiça em sono profundo.

    Curtir

Deixe uma resposta