Por Cássio Andrade
Mais que a condição ontológica, dentre os problemas filosóficos que atribulam o ser humano, reside um de especial relevância aos brasileiros: por que torcemos? País que exala futebol em mais de 190 milhões de pulmões, essa é uma questão crucial. Buscada na razão plena cartesiana, tal questão problematizadora não teria suporte adequado. A racionalidade extrema não costuma dar resposta ao fogo do coração. Mesmo a língua dos anjos e dos homens, somente poderia suportar a questão, abrasada pelo amor, poderia concordar o Apóstolo. Mergulhando na ontologia, ainda que na aventura empírica da experiência, poderia primeiramente apontar a saída à intrigante questão nos caminhos do coração, da alma, da cultura e outros que tais. Um novo problema se defronta: como explicar as razões desses caminhos, posto que entranhados de desrazão? Volto à experiência!
A questão regional poderia ser facilmente explicada. Nasci numa grande torcida de remistas. A influência do manto azul e sagrado estaria a mim destinada pela lógica. Mas, por que diabos passei a me apaixonar por escudos outros, além de meu recanto? Por que sou rubro-negro no Rio, Tricolor em São Paulo, Colorado no Rio Grande e Cruzeiro nas Alterosas? Não chego a exagerar como um amigo próximo que em cada região do país e até do mundo, torce por um clube (meu amigo até a queda do Muro de Berlim, torcia pelo Dínamo de Kiev, por exemplo). Não, não chego a esse extremo! Por toda loucura à cruz do futebol (olha aí o apóstolo de novo), confesso, porém que minhas preferências não seguem muito os roteiros definidos.
Antes de 1978, não gostava de futebol. Por mais incrível que pareça, passei a nutrir simpatia pelo esporte, durante a Copa da Argentina. O diabo é que já torcia pelo Remo. O pior é que, meus gostos eram um tanto estranhos. Ao invés de glorificar o Dirceu, admirava o Oscar e o Amaral. Se bem que naquela seleção do Coutinho, torcer por um atacante era bem difícil! Passada a Copa, passei a gostar de futebol de botão (o meu era tão velho que a onzena era formada por Andrada, Abel, Edu, Assis, Oliveira, Toninho, Dirceu Alves, Carlos Alberto, Clóvis e mais dois que a foto do botão já nem aparecia). Minha velha equipe do botão somente foi substituída nos anos 80, quando ganhei de minha mãe, duas novas equipes de acrílico, da marca “Canindé”, sem fotos de jogadores, cujos goleiros eram verdadeiras caixas de aparelhagem antigas. Aliás, meus colegas de “Estrelão”, reclamavam do tamanho de meus goleiros, pois tomavam um bom espaço da trave e eram resistentes aos choques. O vento derrubava a trave (jogávamos na calçada de casa), menos os goleiros.
Do “campo de botão” ao “campo das tevês”. Passei a assistir os jogos dos campeonatos cariocas aos sábados à tarde (sim, naquela época, os horários de jogos de futebol eram bem melhores) e meu irmão, convenceu-me a torcer pelo Flamengo. O primeiro jogo do Mengão que assisti foi uma goleada sobre o São Cristóvão. Timaço aquele! Por lá eu vi Cantarelle, Rondineli, Marinho, Toninho (depois o Júnior), Andrade, Adílio, Zico e até o Cláudio Adão (antes de brilhar no Fluminense).
Em 1979, torci demais pelo Colorado! A explicação foi tão somente passional: naquele ano, meu Flamengo fora impiedosamente derrotado no Brasileirão pelo excelente Palmeiras de Telê Santana, em pleno Maracanã, por 4×1. Nas semifinais, o Inter de Benitez, Mauro Pastor, Mauro Galvão, Falcão, Batista, Caçapava e Bira, vingar-me-ia a alma: 3×2 no jogo heroico do Morumbi e 1×1 no Beira-Rio. Na final, o Inter contra o bom time do Vasco da Gama e sagrara-se tricampeão brasileiro.
Minha simpatia pelo Cruzeiro é meramente sinestésica. A cor da camisa é azul e durante muito tempo, freguês histórico do Clube do Remo. Lá jogava também o Nelinho, o maior lateral direito que já jogou no Remo, em toda sua história. A torcida pelo Tricolor do Morumbi é mais estranha de se explicar. Por incrível que pareça, soube que existia uma equipe chamada São Paulo, durante um jogo do Clube do Remo no Morumbi, no brasileirão de 78, em plena Copa do Mundo (nessa época, o campeonato não parava durante os jogos da Copa). O Brasil iria jogar contra a Suécia e nas vésperas, jogaram São Paulo e Remo no Morumbi. O Remo fez uma grande partida e perdeu de 1×0 contra o Tricolor completo de Edu, Serginho, Tecão, Marião, Bezerra, Getúlio e Antenor. O que chamou a atenção nesse jogo, além do magro resultado, foi a torcida do Remo que fez muito barulho diante de um Morumbi esvaziado de torcedor do São Paulo. O fenômeno foi tão surpreendente que a Rede Tupi gravou o áudio do canto da torcida e o usou durante o jogo do Brasil com a Suécia. Depois eu soube que, na verdade, teve o dedo do meu pai nessa história, na extinta TV Marajoara, mas isso é outra história! Estranhamente, passei a gostar do São Paulo por uma razão esdrúxula: o formato da camisa. Nunca havia visto um clube de cores com uma camisa naquele formato. Amor à primeira vista.
Sofri muito por torcer pelo São Paulo. Durante minha adolescência, fui um torcedor solitário. Somente conhecia 3 pessoas em Belém que torciam pela equipe nos idos da década de 80. O São Paulo foi o time da década do futebol paulista, campeão em 80, 81, 85, 87 e 89, com dois vices seguidos em 82 e 83. Ainda conquistou o título nacional de 86. Na hora de comemorar, porém, sentia o drama de me recolher à alegre solidão da conquista. Nos anos 90, graças à Telê Santana (e em menor escala por Rogério Ceni), passei a desfrutar de larga companhia com uma torcida que se tornou nacional e a que mais cresceu, mas a condição de adulto e profissional, me tirou o brilho da adolescência, em razão desproporcional à evolução da equipe. Fui roubado dessa alegria de torcer em conjunto nos melhores tempos de nossas vidas.
A questão central, porém, ainda está a ser respondida: Que desrazões, afinal poderiam indicar a gênese em torcer? Por que a influência de um irmão, o espírito de revanche, o formato de uma camisa, podem significar tanto assim a marcar sua história de vida no amor ao futebol? Uma pista talvez, seria recorrer aos pós-cartesianos em suas complexidades, da teoria quântica a Edgar Morin: buscar a razão na desrazão e na improbabilidade.
Nesses tempos de futebol globalizado, de estratégias racionais de suores, de futebol pragmaticamente brucutu, mais do que nunca, sentimos a necessidade de evocarmos nossa década de ouro, a “década perdida” da economia e da política, mas última fronteira do futebol-arte. A geração que resgatou os anos do “futebol romântico” de Pelé, Garrincha, Tostão, com Zico, Sócrates, Falcão, mas também foi a década que deu origem aos treinadores das estratégias que transformaram o futebol em ciência e começaram a esmagar o espírito. Odiavam Marx, mas não voltaram a Hegel. Preferiram recorrer ao mais distante Descartes. Por que torcemos, enfim? Talvez, essa questão nem precise ser respondida. Melhor sair do conforto da salvação e encontrar resposta nenhuma no suplício e na perdição.