
POR FELIPE MACHADO (*)
Antes do início do show dos Rolling Stones, quarta-feira, no estádio do Morumbi, me peguei pensando: “o que escrever sobre os Rolling Stones? Será que existe algo que ainda não foi escrito sobre uma banda que está na ativa há 54 anos? É possível ser relevante sem cair em algum tipo de clichê sobre monstros sagrados do rock, etc?”
“Ladies and gentlemen… the Rolling Stones!”
A clássica introdução deixa arrepiada até a tiazinha que vende cerveja ‘uma por dez duas por vinte real’.
Durante o show, no entanto, percebi que há sempre algo a escrever sobre os Rolling Stones – mas não aquele tipo de informação que todo mundo já sabe. Ninguém mais precisa escrever sobre “a carreira mais longa do rock”, “Mick Jagger é carismático” ou “nunca descobriremos como Keith Richards ainda está vivo”.
A característica mais interessante dos Stones – e aquela sobre a qual nunca cansaremos de falar – é o poder que a banda emana sobre o público. E isso tem muito a ver com a música, claro, mas tem mais ainda a ver com os músicos. Que não são músicos, mas personagens. Mick, Keith, Ron e Charlie são super-heróis assumidamente decadentes, mas que continuam salvando o mundo do rock graças a super-poderes que independem da idade. São super-heróis do rock e homens normais ao mesmo tempo.
Quando os Rolling Stones entram no palco e tocam o riff de ‘Start me up’, ficamos magnetizados não apenas pelo som que sai das caixas, mas por celebrar, inconscientemente, que estamos diante de personagens únicos na história da cultura pop. Os Rolling Stones não são infalíveis, e é por isso que nos identificamos tanto com eles. São deuses do rock, mas têm rugas como qualquer homem de 70 e poucos anos. São milionários, mas não conseguem comprar a juventude. São provas vivas de que a vida passa, mesmo quando o tempo está do seu lado – eles já cantavam ‘Time is on my side’ quando ainda eram jovens.
Não sei se faz sentido para as outras pessoas, mas o que me emociona é saber que estou no mesmo ambiente que eles, que durante duas horas participarei como testemunha da experiência que eles vivem há 54 anos. Como se eu pegasse emprestado a energia emanada do palco, a vitalidade desses sobreviventes, e até mesmo suas histórias trágicas. Talvez eu esteja sendo muito metafísico; mas estar no mesmo local, fisicamente, que Mick Jagger ‘em pessoa’ me permite roubar um pouco de sua mágica. Naquele momento, Mick não está em uma ilha particular no sul da França; nem Keith não está em uma cobertura triplex fumando charuto; Ron não está em um pub de Londres trocando uma ideia com Rod Stewart; Charlie não está em um estúdio de Dublin tocando jazz e tomando whisky com seus velhos companheiros.
Não. Mick, Keith, Ron e Charlie estão ali, no Estádio do Morumbi, na Praça Roberto Gomes Pedrosa, número 1, CEP 05653-070. Eles estão lá, da mesma maneira que eu, mortal, também estou. Respiro o mesmo ar e sinto no corpo os mesmos pingos da chuva que eles, gotas invisíveis que insistem em cair e parar, cair e parar, como notas de uma melodia levemente dissonante que incomodam até o momento em que esqueço que elas existem.
Uma apresentação dos Rolling Stones não é um show, mas uma experiência que vivemos e que deixa marcas em quem somos. Lembraremos desse show da mesma maneira que lembramos do 11 de setembro, ou da morte de Ayrton Senna. É único demais para ser comparado a outros shows. É um capítulo da história do rock compartilhado por 60 mil pessoas.
Reforço esse lado místico e lúdico (para usar uma palavra que está na moda) porque acho tudo isso mais importante do que o próprio som dos Rolling Stones. O quê? Sacrilégio? Nada disso. É que a música é apenas uma parte do que é os Rolling Stones. Claro que há músicas maravilhosas como ‘Gimme Shelter’ (a melhor do show), ‘Sympathy for the Devil’ (com seu telão incrível de vodu pós-psicodélico) e ‘Paint it Black’. Outras bandas podem ter um repertório tão bom quanto os Stones, mas nunca terão o peso institucional que eles têm.
Acho que isso tem cada vez mais a ver com a personalidade dos músicos. Ironicamente, acho que os Stones estão virando cada vez mais… os Beatles. Não em termos artísticos, volto a dizer. Os Beatles sempre foram mais sofisticados musicalmente, enquanto os Stones sempre tiveram mais atitude e espírito rock ‘n roll. Mas os personagens Mick, Keith, Charlie e Ron estão cada vez mais parecidos com Paul, John, George e Ringo. Digo isso em termos de arquétipos, teoria sobre a qual já escrevi aqui.
Mick é Paul, o business man, o profissional, o mais bonito, o vocalista para quem o tempo não passa; Keith é John, o rebelde, o subversivo, o cara sincero sem papas na língua; Charlie é George, o homem sério, o cara quieto e introspectivo, o guardião da credibilidade; Ron é Ringo, o divertido, o amigo de todos, o cara que sorri mais vezes do que o necessário.
Os Rolling Stones já tiveram outras formações no passado, mas não dá para imaginar os Stones hoje em dia sem um dos quatro personagens atuais. Eles se completam. Em termos musicais, o show dos Stones não traz a parede sonora que estamos acostumados a ver em outros megashows atuais: como não há guitarristas de apoio, o som depende totalmente de Keith e Ron, e o estilo de tocar deles “não ocupa os espaços”; tem uma sonoridade mais próxima de uma canja do que de um som coeso. Tocam de maneira despojada, informal, ‘sloppy’, para usar um termo mais técnico. Parece que estão tocando em um pub, com a diferença de que esse pub cabe 50 mil pessoas. E Charlie é um baterista razoável, preciso apenas em sua simplicidade. O trabalho sobra mesmo para o baixista Darryl Jones, excelente, o cara que segura a banda para que Keith e Ron possam tocar… bem, do jeito deles.
Mick Jagger é especial e basta um segundo no palco para sentir isso. Seu corpo se movimenta como um ímã de carne e osso, magnético, atraindo os olhares como se não tivéssemos outra opção a não ser prestar atenção em quem ele é. Simpático, profissa, arrancou risos da plateia falando em português (“Que cidade fantástica, São Paulo”) e pronunciando uma expressão que nunca imaginei ouvir da boca de um Rolling Stone: “Beijinho no ombro!” Será que Mick sabe quem (ou o quê) é Valeska Popozuda?
Mick ainda canta muito bem e sua voz nos leva a um lugar confortável, seguro, diferente do que acontecia nos anos 1970, época em que ele era um porta-voz da rebeldia. É um senhor de 72 anos, sim, e não há nada de errado com isso. Só achei que sua performance às vezes é um pouco exagerada, como se ele sentisse a necessidade de provar para todos que está bem fisicamente. Não, precisa, Mick. Está na cara que você está bem melhor que a maioria de nós.
Quando o final do show se aproxima, a gente percebe que participou de um evento histórico. E fica a dúvida: será que eles voltarão? Talvez sim, talvez não. Mas a sensação de fazer parte de algo que ficará para sempre gravado na memória já traz uma satisfação enorme. Os Rolling Stones não serão eternos, mas serão infinitos enquanto durarem.
Setlist Rolling Stones
Estádio do Morumbi – 24 de fevereiro de 2016
1. Start Me Up
2. It’s Only Rock ‘n’ Roll (But I Like It)
3. Tumbling Dice
4. Out of Control
5. Bitch (escolhida pelo público)
6. Beast of Burden
7. Worried About You
8. Paint It Black
9. Honky Tonk Women
10. You Got the Silver (Keith Richards no vocal)
11. Happy (Keith Richards no vocal)
12. Midnight Rambler
13. Miss You
14. Gimme Shelter
15. Brown Sugar
16. Sympathy for the Devil
17. Jumpin’ Jack Flash
BIS
19. You Can’t Always Get What You Want (com Coral Sampa)
20. (I Can’t Get No) Satisfaction
Post originalmente publicado no site Palavra de Homem
(*) Consultor na área de Conteúdo, Comunicação e Mídias Digitais