Manual do perfeito midiota

POR LUCIANO MARTINS COSTA, no Jornal GGN

O midiota é, antes de tudo, um fraco.

Quase sempre, emerge das fileiras nebulosas do contingente social que costuma ser chamado de “a maioria silenciosa”. Salta diretamente do estado de alienação política para o fervor do ativismo cego e raivoso, alimentado por manchetes dos grandes diários e pelo histrionismo dos apresentadores de telejornais.

Guarda muitas semelhanças com aquele perfil que, num dia de julho de 2013, a economista Marilena Chauí chamou de “uma abominação política”.

O desabafo da doutora, retirado do contexto original, ainda circula pelas redes sociais, suscitando comentários magoados de gente que se considera de classe média e, numa lógica transversa, se sentiu ofendida por suas considerações.

 

Esse é um dos sintomas que denunciam a midiotice: a pessoa se considera a legítima herdeira da nacionalidade, apesar de, no íntimo e às vezes explicitamente, sonhar com um apartamento em Boca Ratón. Também se julga a mais autêntica representação da moral, apesar de nunca perder a chance de lesar o fisco ou de levar certa vantagem indevida quando a oportunidade se oferece.

A linha que conecta a “abominação política” identificada pela professora Chauí ao autêntico midiota foi traçada há 44 anos pelo sociólogo alemão André Gunder Frank, quando estudou o subdesenvolvimento da América Latina – o Brasil incluído – e cunhou o termo “lumpenburguesia”, para definir os cidadãos que desprezam tudo que é nacional e se projetam no universo de valores do colonizador.

Esse fenômeno, comum no nosso continente, se concentra nas classes médias urbanas, quando emulam as classes dominantes que, incapazes de articular um projeto nacional próprio e representativo, se transformam em agentes do interesse externo, em detrimento da nacionalidade.

Esse conjunto de valores pode ser percebido em grande número de  articulistas, editorialistas e comentaristas onipresentes na mídia tradicional.

Por que o midiota é, antes de tudo, um fraco?

Porque foge da angústia inerente à complexidade da vida contemporânea: se a criminalidade assusta, passa a defender a pena de morte e a extensão da legislação penal aos menores de dezoito anos, esperando, com isso, que aqueles negrinhos que incomodam o bairro sejam devidamente exonerados da vida social.

Se os jornais noticiam o aumento dos crimes violentos, sai vociferando contra a Justiça, que coloca na rua os marginais reincidentes. Nem se dá conta de que a violência da própria polícia aumentou proporcionalmente mais do que aquela praticada por civis.

Também não estranha que a imprensa nunca aborda a questão da reincidência, que é desde sempre o eixo do controle da criminalidade, porque esse é um dado que não interessa aos estatísticos do Estado. Se os ciclos do capitalismo o surpreendem num momento de realocação dos capitais internacionais, culpa o governo de plantão por todos seus aborrecimentos.

E assim segue, reduzindo ao simplismo linear tudo que pode dar um nó em sua cabeça. Pensar dá trabalho. É mais cômodo sair por aí repetindo o que dizem os pitbulls da imprensa hegemônica, aqueles para os quais o idioma reservou a palavra energúmeno.

Para ver: As abominações, segundo Marilena Chauí.

Para ler: Gunder Frank e a crise brasileira, em espanhol.

*Jornalista, mestre em Comunicação, com formação em gestão de qualidade e liderança e especialização em sustentabilidade. Autor dos livros “O Mal-Estar na Globalização”,”Satie”, “As Razões do Lobo”, “Escrever com Criatividade”, “O Diabo na Mídia” e “Histórias sem Salvaguardas”

10 comentários em “Manual do perfeito midiota

  1. O argumento é muito bom. Reduzir tudo ao simplismo linear faz do ciadão um midiota. Perfeito! De fato, não há midiota mais perfeito que aquele que procura explicar as complexidades mundiais como uma consequência da luta de dois grupos diferentes. Esse tipo de pensamento já gerou muitos desastres globais, mas continua em voga, defendidos por vários tipos de fundamentalistas e intelecuais de esquerda e direita.

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  2. Na verdade, caro Cardoso, o marxismo é uma epistemologia, bem longe, pois, de ser um simplismo. Baseados em Marx há milhares de pensadores, e nem 1/10, em Adam Smith. O marxismo é uma filosofia sólida, complexa e bastante estudada. Enquanto isso, o liberalismo é a imposição do poder do capital. Há mais para discutirmos, se você quiser, sobre Marx, mas de antemão, lhe recomendo alguma cautela, porque afirmar alguma coisa categoricamente sobre o que o senhor não conhece é um sinal de ignorância histórica, muito mais que de ignorância econômica ou política.

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  3. Lopes,

    Conheço muito bem Marx e quem usa Marx para justificar as suas ações. Como ciência, marxismo não existe. Foi derrubado por Karl Popper na década de 50 (leia The Poverty of Historicism, entre outros). Como filosofia (epistemologia), talvez seja útil para alguns, mas já é considerado uma escola ultrapassada. Como base para política, marxismo caiu junto com o muro de Berlim. Pergunte as pessoas que moravam na Europa Oriental se eles querem falar de Marx! Ler Marx é bom para entender a história das idéias da civilização ocidental, mas não é adequado para desenvolver uma visão de mundo. Sim, há vários historiadores interessados em Marx, o que é compreensível, pois historiadores estudam coisas do passado. Desenvolver uma visão de mundo com base em uma luta permanente de duas classes é, como disse o autor do artigo, preguiça intelectual.

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  4. Caro Cardoso, na melhor das hipóteses você conhece Marx muito mal, e na pior, não conhece. Também conheço Karl Popper e “A Miséria do Historicismo” já que, nessa obra específica, respondeu ao “A Estrutura das Revoluções Científicas”, de Thomas Kuhn, que tem enfoque histórico para o progresso da ciência. Quando você quiser, podemos debater sobre estes livros, será um prazer.

    No mais, a linha basal do pensamento marxista está em dizer que há disputa constante entre duas classes sociais, no que não posso compreender a negação liberal de Karl Marx no mesmíssimo campo onde o capitalismo diz que a competição é boa, no campo dos interesses sócio-econômicos. E, note, é exatamente sobre o mesmo princípio de funcionamento de que estamos falando, de que as coisas funcionam do jeito que funcionam, na economia e na história, porque existem disputas, concorrências ou lutas bem no meio da sociedade, e de qualquer sociedade, a qualquer tempo.

    Por exemplo, se duas empresas concorrem num mercado qualquer e agem para reduzir custos de produção e obter melhor preço e serviço e conquistar o cliente, vê-se aí o princípio liberal da livre concorrência funcionando, mas, se as mesmas empresas agem combinando preços, também há bem aí uma disputa, que não se consideraria liberal, porque agora entre um cartel e o consumidor. O principal erro dos pensadores liberais está em simplesmente falhar na previsão da ocorrência de cartéis e trustes, por exemplo. Enquanto isso, a teoria marxista abre uma perspectiva histórica para explicar o porquê de cartéis e trustes simplesmente porque admite os interesses conflitantes entre as classes dominantes (donde são os proprietários dos cartéis e trustes, genericamente chamados burgueses), e os dominados (proletários e o lumpemproletariado). Ora, se a concorrência é algo bom sempre, é preciso conscientizar o proletariado para ir de encontro aos interesses burgueses quando estes significarem a miséria e a predação do homem pelo homem e, francamente, isso é impossível sendo liberal.

    Cardoso, você apenas repete o discurso massificado e baseado em nada de que o marxismo está ultrapassado, o que, provavelmente pode levá-lo a compor a lumpemburguesia brasileira, o que poderia ocorrer sem mesmo que você se desse conta. Sugiro a leitura de alguma coisa da obra de Theodor Adorno, para entender os efeitos da cultura de massas do capitalismo, diferenciar marxismo de socialismo, e compreender que direita e esquerda são generalizações de ideologias ou mais à elite (de direita, ou liberal), ou mais ao proletário (de esquerda, ou socialista) e serão usuais enquanto houver pobres e ricos. Aliás, a sugestão é válida para todos que queiram saber um pouco mais.

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  5. Lopes,

    Você repetiu bom a minha crítica ao fundamento do marxismo. Não há duas classes sociais. Isso é simplificar demais o mundo. A competição sempre foi a base do capitalismo, isso ninguém pode negar. Se você não gostar de um produto, você sempre tem a opção de comprar outro. As empresas competem para quem produz o melhor produto. No final das contas, é o consumidor quem decide. Entretanto, essa descrição é como a economia funciona e não como a sociedade deve funcionar. Somos humanos porque cooperamos. Sociedades mais resilientes são as que têm alto nível de cooperação entre indivíduos. Uma sociedade moderna requer competição entre empresas para gerar inovação e cooperação entre indivíduos para gerar progresso social. Simples assim. Nem precisa de marxismo para ajudar.

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  6. Cardoso, as classes sociais, quais sejam, podem ser vistas, pela ótica de Karl Marx, como sendo aquelas que detém o poder do capital e as que dependem dos donos do capital. Duas classes generalistas, mas que existem bem assim: de um lado os podres de rico e, de outro, os pobres. Não há dicotomia ou maniqueísmo, mas a observação do que é fato. Como é fato que a história mostra suseranos e clero em conluio, a principal característica da idade média, a característica que tornou a Europa uma economia fechada, tal qual a China pós segunda guerra. O desenvolvimento do mercado interno foi a chave para a Europa sair do isolamento econômico, e para a China tornar-se a potência que é. Pela visão de Gramsci, um marxista, não ocorre de haver planos maquiavélicos, de um grupo que se encontra de noite em salas a penumbra para arquitetar conspirações contra o povo e a economia, mas os interesses econômicos que movem os capitalistas aos mercados não desenvolvidos, ou não tão fortes quantos as metrópoles…

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  7. Lopes,

    Esse mundo que você descreve não existe. Não há essa dicotomia, mas sim um gradiente de renda dos mais ricos aos mais pobres. Você esquece que há uma ampla classe média também? É por isso que se usa o índice de Gini para medir concentração de renda. Se não fosse assim, bastaria definir um limite de riqueza e outro limite de pobreza e depois encaixar as pessoas nesses grupos. No mundo de hoje todo mundo controla o capital. Se os pobres desistirem de comprar um certo produto fabricado por um rico qualquer, o tipo quebra. Há relação de interdependência. De outra forma, você não veria essa ênfase toda das companhias sobre os consumidores. A revolução tecnológica também quebrou essas barreiras e qualquer um pode se expressar e propagar as suas ideias para uma audiência global. Um meme qualquer pode destruir o lucro de qualquer empresa é transformar o rico em pobre. Da mesma forma como pode ajudar um pobre a ficar rapidamente rico.

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  8. Quero dizer, caro Cardoso, com o meu comentário anterior, que as crises, a globalização e as desigualdades sociais são produtos próprios do capitalismo porque nesse sistema o poder é o capital, e não o voto. Segundo Marx, a história tenderia a levar ricos e pobres a lutar pelo poder, ou seja, pelo capital, os ricos para acumular mais riquezas para si e os pobres a distribuí-las mais igualitariamente para todos.

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  9. Isso é o que significa o comunismo, não necessariamente o que foi feito por Lênin e Stalin. O socialismo é a maneira pela qual autores e políticos de esquerda percebem a maneira de agir pelo Estado para equilibrar as desigualdades sociais num patamar mais aceitável, é dizer, com distribuição de renda e programas sociais de governo. Concordo com essa via, o capitalismo aprofunda desigualdades e a crise que aí está é fruto desse movimento pelo capital. A concentração de renda retira a circulação de riqueza e leva o mercado à estagnação econômica. Aparentemente, não importa se o governo é direita ou esquerda, ou liberal ou socialista, o modo de funcionar do capitalismo vai tender a esse comportamento de crises alternadas e sempre vai pegar o governo e as economias dependentes da metrópole com mais força.

    O PSDB não iria, e nem vai salvar a pátria, com o discurso de economia do erário, o que é uma falácia, mero engodo, representando a acumulação de recursos que poderiam ser destinados a projetos sociais para pagar juros mais altos quanto mais sobe a SELIC. Mesmo nos +/- 12,5% a.a., a SELIC atual é mais de 3 vezes menor que a máxima de FHC, que bateu nos 45% a.a., ou seja, houve o contingenciamento muito maior que o de hoje de recursos públicos para o mercado naquele governo liberal, o que concentrou renda e não a distribui em nenhum momento. Com toda crise que vemos, ainda acho que o modo de agir dos mercados, pelo lucro a qualquer custo, é que é o verdadeiro causador da crise.

    Não repeti sua crítica, Cardoso, apenas mostrei que pessoas como você conhecem preceitos marxistas sem saber que são preceitos marxistas. A maior e mais ampla distribuição de renda, a maior presença do Estado no cotidiano, como em segurança pública, saúde e educação, além dos direitos e garantias individuais e os coletivos, ao mesmo tempo, sobre o patrimônio, são bandeiras de esquerda. O contrário, a menor distribuição de renda, a redução do Estado e dos serviços públicos, e a sobreposição do patrimônio aos direitos e garantias individuais e coletivos, são ações de direita.

    É preciso conhecer bem o que quer dizer o marxismo, o socialismo e o comunismo, e observar que certas bandeiras que estariam no SD de social-democracia do PSDB, na verdade, não estão lá.

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