A Kombi, não a da Tuna, mas a do jornal…

POR ELIAS RIBEIRO PINTO

1 Jornalistas sempre terão histórias para contar de motoristas que conduzem os carros da reportagem. Eles não só incorporam o espírito jornalístico – de ter de chegar à notícia antes dos demais – como se imaginam à direção de uma ambulância, de uma viatura policial. Também tenho meus testemunhos a dar, mas não vou acender agora – quer dizer, não vou contar agora.

2 Vou falar de um assunto que corre (e como corre) paralelo. Quase vinte anos atrás, quando eu escrevia, todo domingo, a reportagem especial de página dupla do DIÁRIO, costumava, de sexta para sábado, no dia de fechamento da matéria, sair de madrugada da Redação.

3 Às vezes o sábado já ia alto. Era só atravessar a Almirante Barroso e pegar o ônibus. (Eu ainda me mantinha invicto, no longo período em que preferi permanecer sem carro próprio.)

4 No mais das vezes, no entanto, a virada acabava lá pelas três, quatro da matina. E aí tinha de esperar o bonde do jornal, a Kombi que faz a entrega da moçada da virada a domicílio. Não sei se a Kombi ainda se mantém na ativa nesta função. Sei que ainda persiste como transporte preferencial da grande massa tunante.

5 Eu estava entre os poucos que vinham para essas bandas de cá, da Praça da República. Quando dava sorte, me deixavam primeiro – o que acontecia quando a Redação era na Gaspar Viana. Depois da mudança para o prédio defronte ao Bosque, como a maioria morava para as bandas do Castanheira em diante, eu preferia embarcar logo no circular a ter de esperá-lo no retorno.

6 E lá ia eu por uma Belém que conhecia, quando muito, de nome de linha de ônibus. Até a Cidade Nova conheço mais ou menos – mas dali o carro do jornal desandava a se enfiar por becos, passagens, outros conjuntos e arremedos de conjuntos, ajuntamentos.

7 Pertenço à linhagem daqueles andarilhos de antigamente, dos poetas europeus do século 19. Rimbaud atravessava campos e cidades na canela. Baudelaire preferia atravessar Paris flanando por suas então nascentes galerias urbanas.

8 Certo que ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire, também gosto de atravessar Belém e outras cidades em que me pego estrangeiro. Sigo por ruas inéditas, tateando, sentindo-lhes a pulsação, adivinhando-lhes o prazer e o perigo.

9 Se bem que nesses últimos e úmidos tempos, por ter cedido à tentação e comprado um carro, já não ando tanto (a pé) quanto gostaria.

10 Mas voltando no tempo, naquelas voltas intermináveis que a Kombi do jornal dava, ficava impressionado em percorrer uma outra cidade para mim completamente desconhecida, descomunal, labiríntica, periférica, que também atende pelo nome de região metropolitana.

11 Naquelas horas ermas da madrugada, vielas, ruas, passagens e becos compunham um enovelado impenetrável, uma meada sem fio. E mesmo sob a suavidade da madrugada, de sua aragem amena, era possível antecipar a aridez daquela Canudos (não me refiro ao bairro) belenense, menos miserável que a de Antonio Conselheiro, mas plena de taperas, barracos, amontoados de gente. Em alguns casos até lembrava, sim, a Canudos de “Os Sertões”. Não acho que tenha melhorado. Bem capaz de ter piorado.

12 Quando andamos pela Braz, pela Presidente Vargas, ruas centrais, não raro sentimo-nos órfãos de segurança. Imagine-se a vida nesses arruamentos e vielas, nessa malha de passagens (e Belém é um mar de passagens a perder de vista) que compõe as periferias da cidade. Se aqui no centro já se vive às escuras, com ruas respirando um ar de clima noir, que bem comporiam o cenário de um Dostoiévski equatorial, à medida que avançamos, ou retrocedemos na urbanidade, a luz míngua até quase o breu completo.

13 Uma daquelas reportagens especiais que escrevi foi sobre o Tapanã, que então registrava índices que o punham líder entre os bairros mais violentos da cidade.

14 Depois de um dia percorrendo aqueles territórios indóceis, desgovernados, cidadelas de dédalo, quando a noite se fez anunciar, serpenteando, achei melhor dar por finda minha porção Tim Lopes. Ao escrever a reportagem, tentei passar um pouco da “cor” local, dar voz a quem convive com a ameaça incessante do crime, desabrigado de justiça, segurança, urbanidade.

15 Quantos de nós desconhecemos essa Belém depauperada que vive enrodilhada como uma cobra, e da qual dela só nos apercebemos quando nos vem dar o bote?

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