A legitimidade da imprensa, como instituição, presta relevantes serviços à sociedade – e tem a informação como um bem público – está na busca incessante da verdade factual, na pluralidade de fontes, no equilíbrio democrático de sua cobertura. Longe disso, o que se vê nas páginas e telinhas, nessa antecipação inequívoca da disputa eleitoral, é um protagonismo dos atores midiáticos de forma agressiva, enviesada e intensa, como poucas vezes se viu na história recente.
Por Samuel Lima (*)
No terreno das mídias tradicionais, desde a virada do ano vivemos uma espécie de antecipação do processo eleitoral, agendado formalmente para outubro de 2014. O foco das atenções das empresas de comunicação que compõem um ator social e político destacado é um só: a sucessão presidencial.
A questão rende um intenso debate e é preciso resgatar um grande estudioso do assunto. Trata-se do jornalista, publicitário, escritor e professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), Venício Artur de Lima. Autor de vasta obra sobre as relações entre mídia e política, da qual destaco um texto, que acabou virando livro, intitulado “Sete teses sobre mídia e política no Brasil” (leia a íntegra aqui: http://migre.me/j45Mo). Já na primeira tese, Lima vai fundo: “A mídia ocupa uma posição de centralidade nas sociedades contemporâneas permeando diferentes processos e esferas da atividade humana, em particular, a esfera da política”.
Em outras palavras, o pesquisador destaca o papel político preponderante que as empresas de mídia cumprem, no contexto da sociedade democrática contemporânea. E acrescenta: “O papel central da mídia, sobretudo da mídia eletrônica, em particular a televisão, foi inicialmente reconhecido pelo Estado militar durante o regime autoritário. Foram os militares e seus aliados civis que – por razões, em primeiro lugar, de segurança nacional, e de mercado, em segundo – criaram as condições de infraestrutura física indispensáveis à consolidação de uma mídia nacional. E foram também eles que primeiro fizeram uso político dela, não só com o recurso à censura, mas, sobretudo, com o apoio “conquistado” – explícito em muitos casos – das principais redes impressas e eletrônicas, algumas consolidadas durante o próprio período ditatorial” (cit.). É o caso, por exemplo, das Organizações Globo, com sua rede de TVs próprias e emissoras afiliadas de televisão.
Antes de seguir adiante, é muito importante fazer a distinção do quem vem a ser, na concepção de Venício Lima, o conceito de “mídia” tantas vezes usado e banalizado pelo senso comum: “A mídia, plural latino de medium, meio, é entendida aqui como o conjunto das instituições que utiliza tecnologias específicas para realizar a comunicação humana. Vale dizer que a instituição mídia implica sempre na existência de um aparato tecnológico intermediário para que a comunicação se realize. A comunicação passa, portanto, a ser uma comunicação midiatizada” (cit.).
Evidentemente, que isso vale também para o velho e tradicional jornal impresso, que dentre as mídias tradicionais é aquela que melhor tipifica esse fenômeno do jornalismo diário. A cobertura das manifestações sobre o Dia 1º de Maio é prova inconteste disso. Os três mais importantes jornais em papel do Brasil repercutiram (Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo, edições de 02/05/2014), em suas capas, o pronunciamento da presidente Dilma Rousseff (na véspera, 30/04) alusivo ao Dia do Trabalhador. Na ocasião, Dilma anunciara duas medidas de destaque: reajuste de 10% no programa Bolsa Família (a partir de junho) e a correção de 4,5% na tabela do Imposto de Renda, para 2015. Estadão e o Globo abriram generosos espaços aos principais candidatos de oposição, Eduardo Campos (PSB) e Aécio Neves (PSDB). As capas faziam a conta das medidas nos gastos públicos, com fotos dos dois candidatos destacando “um 1º de maio de oposição” (O Globo) ou ainda “oposição usa 1º de maio para atacar Dilma”.
Mas é na primeira página da Folha de S. Paulo que o protagonismo político aparece em sua forma mais explícita: “Dilma mente sobre o reajuste do Bolsa Família, diz Aécio”. A manchete, ilustrada por uma imagem mega destacada do candidato tucano (em três colunas, no alto superior esquerdo), no palanque armado pela Força Sindical (central que faz oposição ao governo federal e ocupa a Secretaria do Trabalho do governo tucano, em São Paulo), traz o político mineiro, ao lado do humorista Carioca (que faz imitação da presidente) e do sindicalista Paulinho da Força.
Não é necessário “ler nas entrelinhas”, tampouco elaborar sofisticadas teorias da conspiração. A mídia, na acepção aqui tomada do professor Venício de Lima, faz política sem ter legitimidade para isso. Nenhum executivo das empresas comunicação, colunista, comentarista, editor ou simples repórter recebeu votos e mandato para fazer política (falo dos profissionais que estão nas redações, naturalmente). A legitimidade da imprensa, como instituição presta relevantes serviços à sociedade – e tem a informação como um bem público – está na busca incessante da verdade factual, na pluralidade de fontes, no equilíbrio democrático de sua cobertura.
Longe disso o que se vê nas páginas e telinhas, nessa antecipação inequívoca da disputa eleitoral, é um protagonismo dos atores midiáticos, de forma agressiva, enviesada e intensa, como poucas vezes se viu, na história recente. Os barões da mídia brasileira repetem os erros grotescos do passado, colocando em xeque seu ativo mais sensível: a credibilidade. Ao exercer funções tradicionais dos partidos políticos (a oposição parece incapaz de ocupar esse espaço no debate público, e no Parlamento), as empresas de comunicação se enredam por uma trilha sem volta. Trata-se da “Terceira tese” do professor Venício: “Torna-se, assim, mais fácil o exercício pela mídia de algumas das tradicionais funções atribuídas aos partidos, como por exemplo: construção da agenda publica (agendamento); gerar e transmitir informações políticas; fiscalizar as ações de governo; exercer a crítica das políticas públicas e canalizar as demandas da população” (cit.).
Os dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2014 (hábitos de consumo de mídia pela população brasileira – veja a íntegra: http://migre.me/j47Lw), realizada pelo Ibope Inteligência sob encomenda da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, revela que “cerca de 65% dos brasileiros assistem TV diariamente e 97% ao menos uma vez por semana. Na média, são 3:29 horas de TV por dia”. Ou seja, é, sobretudo nesse espaço midiático central, uma concessão pública, que o jogo vai ser jogado até sua definição em outubro, no pós Copa do Mundo de futebol. A simples observação do comportamento dos principais canais de notícia e entretenimento, neste começo de maio, nos permite inferir que todos os personagens, desses mega atores políticos, foram escalados – com exceção talvez do jornalismo da Rede Record, que procura se diferenciar da “geleia geral de oposição”.
Retornando à obra de Venício de Lima, encontramos em sua “Quinta tese” uma constatação fundamental: “A mídia se transformou, ela própria, em importante ator político”. Do ponto de vista da cidadania, é um salve-se quem puder. E o pesquisador sênior conclui categórico: “As empresas de mídia são hoje atores econômicos fundamentais como parte de grandes conglomerados empresariais articulados a nível global. Além disso, pelo poder que emana de sua capacidade única de produzir e distribuir capital simbólico e pela ação direta de seus concessionários e/ou proprietários se transformaram também em atores com interferência direta no processo político”.
Entre o ativismo político antidemocrático e o perigoso jogo do antijornalismo, o ator político e econômico representado pela mídia vai testar a paciência e a sabedoria do distinto público. O discurso jornalístico, que tem como base fundamental a informação (e a busca incessante da verdade), neste embate, será substituído pela retórica tipicamente política. Ou ainda como avalia Venício de Lima: “Temos um sistema de mídia oligopolizado, que é corruptor da opinião pública, porque privatiza o acesso e exclui do debate público a maioria da população”. A ver.
(*) É jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) e pesquisador do Núcleo de Transformações sobre o Mundo do Trabalho (TMT) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC).
(Via blog de Manuel Dutra)