Por Gerson Nogueira
Desde que o torneio começou, a balança pende para o lado latino-americano, como uma espécie tardia de vingança dos colonizados. Chile, Colômbia, México, Uruguai, Costa Rica, Argentina e Brasil já estão garantidos nas oitavas-de-final. Estados Unidos e Equador tem boas chances. Já a Europa amarga a eliminação de três campeãs mundiais – Espanha, Inglaterra e Itália – e acompanha a agonia de uma seleção respeitada (Portugal). Já é o pior desempenho inicial do Velho Continente em toda a história das Copas.
O fator geográfico (e climático) pode ter alguma influência nesse desenho da Copa, surpreendente sob todos os pontos de vista. No entanto, penso que há outros pontos determinando essa tendência. O envelhecimento das seleções espanholas e italianas, cujos principais jogadores estão em visível declínio, ajuda a explicar os maus passos dos representantes europeus. Portugal vive mais ou menos o mesmo problema, embora a presença do melhor jogador do mundo (Cristiano Ronaldo) pudesse atenuar as perdas. Ocorre que CR7, como já analisei aqui antes, vive um inferno astral que compromete sua performance em campo. Jogador talhado para o embate físico, embora dotado de muito talento, o atacante lusitano não conseguiu exibir em campos brasileiros a conhecida intensidade de seu jogo.
Já o caso inglês deriva de uma questão geracional. Planejada para ser o ponto de partida do processo de renovação do time, a Copa do Mundo testemunhou na verdade um meio-termo entre os jovens valores e veteranos entediados. Gerrard e Rooney, dois expoentes da geração que despontou no final dos anos 90, pareciam animicamente fora de sintonia com jovens como Sturridge, veloz e inquieto. Não podia dar certo.
Quanto ao êxito latino talvez esteja vinculado a um fenômeno oposto. Há uma renovação, forçada ou não, na maioria dos times. A Colômbia, mesmo sem Falcão García, é um time rejuvenescido, como não se via há anos. Do Chile pode-se dizer a mesma coisa, com o adendo de que ganhou finalmente um grande técnico para juntar suas peças e organizar o jogo. Jorge Sampaoli, um argentino cheio de estilo, fez os jovens jogadores chilenos acreditarem que é possível sair do patamar intermediário e brigar de igual para igual com seleções mais cascudas. Trabalho facilitado pela feliz reunião de um grupo de bons futebolistas, algo que não se via no Chile desde que Salas e Zamorano se aposentaram.
O Brasil experimenta um processo parecido, com um selecionado inteiramente modificado em relação à última Copa. Os poucos remanescentes da jornada na África do Sul são coadjuvantes num time que tem como astro incontestável um garoto de 22 anos. Felipão, apesar do estilo antigo de ver futebol, deu sequência ao processo iniciado por Mano Menezes e os primeiros resultados brotaram na Copa das Confederações. No Mundial, a equipe ainda não deslanchou, mas passou sem aperreios pela primeira fase. A Argentina vive momento parecido. Com Lionel Messi a liderar a companhia, a seleção tem jogadores que amadureceram desde a última Copa. Di Maria, Aguero e Higuaín são bons exemplos. O Uruguai completa o trio de campeões sul-americanos com um grupo mesclado, que repete praticamente a formação que chegou ao quarto lugar na Copa 2010. A força reside no potencial ofensivo da seleção, com a dupla Suarez e Cavani em grande momento.
Dentre os emergentes, o México vem ensaiando fazer uma grande campanha há vários mundiais. Desta vez, sem expoentes individuais destacados, aposta tudo no conjunto. Seus jogadores correm o tempo todo e entregam-se à marcação como nenhuma outra seleção nesta Copa.
Por fim, a Costa Rica se insere na galeria dos fenômenos. Em sã consciência, ninguém apostaria um tostão furado no time de Brian Ruiz e Campbell. Apesar da grande campanha nas eliminatórias da Concacaf, a equipe centro-americana não inspirava a menor expectativa. Suas façanhas diante de Itália e Uruguai chamam atenção para o futebol do continente e indicam que o futebol está cada vez mais nivelado. Os próximos dias da Copa irão mostrar se esse nivelamento é de alto nível ou apenas a socialização da mesmice.
Na coluna de amanhã, falarei dos europeus que sobreviveram à avalanche latino-americana.
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Luiz Gustavo, a exceção que conforta
No meio-campo do Brasil reinou confusão e lerdeza nos dois primeiros jogos. Contra croatas e mexicanos, a hesitação dos meio-campistas comprometeu a dinâmica do jogo e expôs as fragilidades defensivas do escrete. Diante de Camarões, os problemas foram amenizados, mas não corrigidos. A transição só se normalizou quando Paulinho foi substituído por Fernandinho no segundo tempo. Há, porém, um destaque que merece registro em toda a campanha da Seleção até aqui.
O volante Luiz Gustavo, aposta pessoal de Felipão, tomou conta de sua faixa de campo e tem desempenhado suas funções com grande competência. Além de guarnecer o lado esquerdo da defesa, dando cobertura a Marcelo, tem se aventurado em ações ofensivas, como no lance do primeiro gol contra Camarões. Como um ala moderno, foi à linha de fundo e cruzou na medida para a finalização de Neymar.
Titular absoluto, tornou-se um dos intocáveis do time. Não por ser um dos preferidos de Felipão, mas pelo futebol bem jogado.
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Manipulação de mentes desinformadas
Os mesmos apologistas do caos e profetas do desastre atacam outra vez. Depois de derrotados na ridícula campanha “Não vai ter Copa”, guerrilheiros do mundo digital estão a postos – a soldo não se sabe de quem – para tentar lançar dúvidas sobre a lisura da Copa das Copas. Falam em manipulação para beneficiar o Brasil por ser o país mandante. Como se o Brasil, com seus cinco títulos mundiais, necessitasse de esquemas para levantar a taça. E como se manipular 32 seleções fosse a coisa mais simples do mundo.
Para convencer desavisados, espalham pelas redes sociais o mesmo texto patético usado logo depois da Copa de 1998, que sinalizava para um arranjo envolvendo a convulsão de Ronaldo na véspera da final e injunções do patrocinador (Nike), tudo supostamente a fim de beneficiar a França. Na verdade, o atacante adoeceu mesmo, insistiu para jogar mesmo sem condições ideais e a seleção de Zidane venceu porque foi superior ao longo dos 90 minutos. Qualquer outro tipo de reinterpretação dos fatos é surfar na maionese. Como ocorre agora, num período ainda mais propício para isso, diante da legião de batráquios que infesta canais como Facebook, Twitter, blogs e chats.
A tese esdrúxula, alimentada pelo erro do árbitro japonês no jogo contra a Croácia, não resiste a uma simples análise dos grupos da Copa. No sorteio das seleções, coube ao Brasil um dos grupos mais fortes do mundial. Em contrapartida, a vizinha Argentina caiu no grupo F. Pegou como adversários Nigéria, Irã e Bósnia Herzegovina. Quer grupo mais garapa? E tem mais: o chaveamento prevê um caminho mais tranquilo para os hermanos em direção ao título. Não deverão pegar nenhuma seleção tradicional e ranqueada até as semifinais. Seu provável adversário nas oitavas é o Equador (ou a Suíça), enquanto o Brasil vai encarar o Chile. Por esse raciocínio míope, os manipuladores devem ter se enganaram de país a ser beneficiado.
Ora, o exercício de futurologia é sempre arriscado, mas permite brincadeiras e gozações quando envolve futebol. O problema é quando a intenção de confundir as pessoas é parte de uma ofensiva organizada, que despreza a inteligência dos internautas e reforça o nefasto complexo de vira-lata. É como se o Brasil não tivesse competência para ganhar uma Copa do Mundo. Onde essa gente estava em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002?
A questão é que, muito além da questão futebolística, está em jogo uma eleição presidencial. Essa agenda estimulou a baderna pré-Copa nas ruas, mobilizou terroristas virtuais e atiça o desespero final, que é o receio não declarado de que um eventual triunfo da Seleção Brasileira venha a beneficiar o governo.
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Estranha versão do beijinho no ombro
Como um renascido Mike Tyson dos gramados, o uruguaio Luizito Suarez vem se notabilizando pela mania de aplicar dentadas em adversários. Seria um impulso irresistível, uma superstição ou uma tara? Contra a Itália, ontem, o dentuço Suarez praticou sua terceira mordida oficialmente registrada. A vítima foi Chiellini.
Imagino que nos tempos de garoto lá pelo Uruguai tenha abocanhado muito mais gente. Só que no futebol filmado e vigiado de hoje, não dá mais para morder e esconder os dentes. Quem morde tem que pagar por isso.
A Fifa está desde a hora do jogo revendo as imagens e, sem chegar a uma conclusão, vai consultar os árbitros da partida para ver se aplica ou não uma prenda ao feroz uruguaio.Ora, as imagens não mentem. A mordida foi clara e a punição deve ser rigorosa, antes que o cidadão parta para uma nova mordida.
Costume mais besta. Lá em Baião isso tem outro nome…
Celeste ultrapassa outra barreira
O Uruguai continua a jogar quase como nos tempos de Obdúlio, Gighia e Máspoli. Arma-se com 200 defensores lá atrás e sai em disparada rumo ao gol inimigo quando as chances se apresentam. Esse estilo roceiro não funciona quando o adversário cultiva o jogo de toques e passes em velocidade, como a surpreendente Costa Rica. Contra italianos e ingleses, o professor Oscar Tabarez tratou de refinar a correria. Usou seus volantes para abastecerem Lodeiro, um meia que atua bem próximo a Cavani e Suarez. O expediente funcionou em vários momentos nas duas partidas.
Quando a aproximação entre meio e ataque não rendeu frutos, veio a velha tática do chutão para socorrer a Celeste. Contra a Inglaterra, um tiro de meta resultou no gol da vitória. Ontem, o triunfo surgiu em cabeceio de Godin escorando um escanteio. Nenhum mistério. Simplicidade e força. O Uruguai sempre foi assim e costuma ser temível quando une seu jogo objetivo à velha garra.
(Coluna publicada na edição do Bola/DIÁRIO desta quarta-feira, 25)