Do Globoesporte.com
Os dentes da frente eram tortos, um tanto separados. No rosto de Heleno de Freitas, naquela expressão que fazia as mulheres tremelicarem em meio a suspiros, haveria de ter alguma imperfeição, como que a combinar com a personalidade dele. Porque o espírito do gênio da década de 40 também tinha pontos tortos. E é justificável. Não fosse assim, talvez ele não seria ressuscitado em homenagens mais de 50 anos após sua morte – reconhecido em filme, livro e exposição como uma das maiores personagens já criadas pelo futebol brasileiro. Antagonista de si mesmo, o goleador que deixou a vida em um hospício, na precocidade dos 39 anos, tem os vaivéns de sua história recontados. É uma trajetória que beira a ficção, com a pulsão de uma vida superacelerada pela fama e a dor de uma morte atormentada pela loucura.
Chega aos cinemas na semana que vem, dia 30, o filme “Heleno – o príncipe maldito”, dirigido por José Henrique Fonseca. O ídolo alvinegro é vivido por Rodrigo Santoro – quase uma cópia da personagem que interpreta, com um nível de semelhança capaz de assombrar os familiares do craque trágico. A inspiração para a telona saiu do livro “Nunca houve um homem como Heleno”, de Marcos Eduardo Neves, levado às livrarias em 2006 e relançado agora. A loja oficial do Botafogo, em General Severiano, tem até o fim do mês uma exposição com fotos da carreira e da vida pessoal do ex-atacante.
É o renascimento de uma lenda abençoada pela vida e amaldiçoada pelo destino. O galã de tantas mulheres, o artilheiro de tantos gols, o encrenqueiro de tantas confusões, o viciado de tantos excessos, o egocêntrico de tantos orgulhos, haveria de morrer longe da glória, louco, doente. E haveria de ser eterno.
Vale o clichê: Heleno de Freitas era uma estrela solitária. Era sua própria estrela. E era conduzido por ela. Possuía aquilo a que talvez só os gênios têm direito: o egocentrismo como núcleo da vida. Ele sabia que era diferente. Era um jogador de futebol que também era advogado. Lia Dostoievski. Escutava jazz. Assistia a representações de Shakespeare.
Ele sabia que era craque. Contava gols como se contasse os segundos nos ponteiros do relógio. É o quarto maior artilheiro da história do Botafogo. Foram 204 bolas nas redes adversárias em 234 partidas com a camisa alvinegra. Anotou pelo menos outros 45 vestido com uniformes diferentes: 14 pela Seleção Brasileira, cinco pela seleção carioca, 19 pelo Vasco, sete pelo Boca Juniors. Também jogou no Junior Barranquilla, da Colômbia. No América-RJ, onde encerrou a carreira, não fez gols.
Ele sabia que era um galã. Possuía um ar que misturava a grandeza que Carlos Gardel já tinha com a melancolia que Jack Kerouac ainda teria. Os cabelos negros eram penteados com precisão matemática, de forma a ficarem quase imóveis, no máximo com liberdade para a franja cair sobre a testa – o que lhe rendeu o apelido de Gilda, em referência à personagem interpretada por Rita Hayworth. Ele se vestia com cuidado de astro de cinema. Tinha o mesmo alfaiate de Getúlio Vargas. Andava em Cadillacs. Atraía as mulheres feito ímã ao circular pelos bailes cariocas ou pelas praias de Copacabana. A fama de mulherengo inclui boatos de que seduziu até Eva Perón quando esteve na Argentina – história presente em seus delírios no fim da vida, já atingido pela insanidade, e registrada em crônica de Nelson Rodrigues.
Mas ele não sabia que teria um fim tão trágico. A queda foi proporcional à ascensão. Com o tempo, perdeu dinheiro, perdeu qualidade, perdeu espaço, perdeu idolatria. E perdeu a vida. Abalado pela sífilis e fragilizado pelo vício em éter, acabou louco. Morreu assim.












