A idade do atraso

POR JANIO DE FREITAS, na Folha SP

Repetir a votação sobre maioridade penal, com disfarçante alteração do texto, para transformar em vitória a sua derrota 24 horas antes, não é a principal função dessa já conhecida ousadia de Eduardo Cunha. Não importa se impensado ou mesmo inconsciente, ainda assim o maior sentido dado ao ato é o de demonstração da minoridade política, moral, democrática e cultural do Brasil.

No vocabulário dos garotos carentes, um país “dimenor”.

É inimaginável que um gesto sequer parecido possa ser feito na Câmara de algum dos países, digamos, adultos, seja ou não desenvolvido. No Brasil, além de feito, é aceito pela quase totalidade dos deputados, é repetido (antes no projeto sobre financiamento privado de campanhas eleitorais, agora no da maioridade penal) e outra vez aceito. Adendo brasileiramente supérfluo: o que estava em votação não era um projeto de lei, comum, era um texto da Constituição.

A rigor, foram dois os textos constitucionais questionados no ato e na aceitação. Um, o que proíbe a votação, “na mesma sessão legislativa”, de “emenda rejeitada”. Outro, o que veda “emenda tendente a abolir os direitos e garantias constitucionais”, como muitos consideram a maioridade de 18 anos, que a Câmara manteve e logo depois baixou para 16 anos.

No século 21, estamos no mesmo baixio político, moral e cultural de muitas dezenas de anos atrás, quando o relógio da Câmara era parado às 23h58, para que entrassem pela madrugada a disputa e a votação cujo prazo se encerrava à meia-noite. Congressistas adulteravam resultados dando votos fraudulentos por vários outros. Em textos votados e aprovados fora substituída ou retirada uma palavra determinante. Coisas de país atrasado. E, vê-se, ainda aí.

Entre os pouquíssimos que se manifestam sobre a validade, ou não, do artifício de Eduardo Cunha, alguns propõem o recurso imediato ao Supremo Tribunal Federal; outros, só ao término do processo de votação no Senado, porque o Supremo recusaria pronunciar-se sobre matéria ainda pendente de decisão do Poder Legislativo.

A discussão é ociosa. A redução da maioridade foi levada à segunda votação com o argumento de ser um projeto diferente. A diferença: dos crimes especificados para responsabilização penal já aos 16 anos, foram retirados do projeto derrotado o roubo com violência e o tráfico de drogas, ficando os crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.

Mas a emenda constitucional não é sobre os crimes. É sobre as idades, presentes e iguais nas duas propostas levadas a votação. E nesta igualdade, essência das duas emendas, é que se configura a dupla apreciação proibida pelo texto constitucional.

Consumada a votação do projeto apenas maquiado, trata-se de ato acabado. O questionamento é a esse processo parlamentar, a ser examinado em confronto com a proibição da Constituição. O teor da proposta, idade alterável ou não, é discussão à parte.

A importância da definição do Supremo vai além da idade penal mínima. Os tumultuosos procedimentos da Câmara atual recaem sobre decisões importantes para milhões de famílias, para o Tesouro Nacional, para o próprio Congresso. E integram, como um dos fatores de estímulo, a degradação de condutas e procedimentos em que o atraso adota a pregação de violência, discriminações e retrocessos que o país já tem demais.

2 comentários em “A idade do atraso

  1. Apesar de eu ser em principio, favorável a redução da maioridade penal pra 16, apenas por achar que com esta idade o individuo já pode responder pelos seus atos, da forma como aconteceu, foi quase um golpe.

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  2. O positivismo científico funciona muito bem. As leis de Newton, Lavoisier e Maxwell, são deterministas. Basta calcular que teremos resultados e daí podemos construir tecnologia. A ciência é uma maravilha, não? Mas o positivismo da lei é diferente porque ela só é determinista onde pode ser determinista: no cálculo da pena. Lei não é medida sócio-educativa. A lei, por si só, não vai inibir os ainda menores de 18 anos a cometer crimes porque a motivação não é a impunidade, mas a oportunidade. Hoje é bem mais fácil ser malandro que um garoto estudioso. Por que não tem escola, por que não tem qualificação, por que não tem políticas públicas que resgatem a juventude dos tráficos de drogas, armas, animais, madeira… O ilegal, o clandestino, o que não paga imposto arregimenta rapidamente uma legião de jovens semi, ou totalmente, analfabetos. Pobres, rejeitados, abandonados. O mesmo deputado que votou a favor da criminalização da juventude, reduzindo a maioridade penal, quer somente livrar-se da culpa de ter levado a juventude a delinquir, porque a deixou sem escola, sem preparo e sem futuro. Cadeia não é educação, é punição, e nem sempre justa. O que houve na câmara pode ser chamado de golpe, ainda mais quando vem de deputados que viajaram no tempo, da idade média para o presente.

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