POR GERSON NOGUEIRA
A última gravação dos Beatles como banda completa não podia ter nome mais emblemático: The End é o nome da canção derradeira. É bem verdade que o grupo já vivia o esfacelamento das relações internas. Apesar das palavras dos próprios músicos, asseverando que não havia a noção de que tudo estava no fim, algo induziu à escolha de um título que The Doors já havia utilizado antes. A letra diz: “Oh yeah, alright/ Are you going to be in my dreams tonight?/ And in the end, the love you take/ Is equal to the love you make.” (“Ora, sim, tudo bem, você vai estar em meus sonhos esta noite?/ E, no fim, o amor que você recebe/ É igual ao amor que você faz.”)
Sobre o trecho acima, Paul comentou que “são versos que podem fazer você pensar por um bom tempo, podem ser sobre bom carma. Tudo o que se faz, se paga, como dizem nos EUA”. Admitiu depois que tinha Shakespeare em mente ao escrever a letra.
No monumental The Complete Beatles Chronicle, Mark Lewisohn esmiúça a agenda das atividades do Fab Four de 1957 a 1970, com as fichas técnicas de todas as gravações. Ele descreveu o que se passou nos estúdios Abbey Road, Londres, naquela quarta-feira, 23 de julho de 1969:
“Uma boa carga de ensaios deve ter precedido o rolar das fitas durante a sessão de 14h30 às 23h30 no Estúdio Três, pois desde a primeira tomada foi uma gravação tensa, começando com algumas notas da guitarra e pavimentando o caminho para o primeiro e único solo de bateria de Ringo numa canção dos Beatles. O grupo fez sete tentativas e o estilo do solo de Ringo mudava a cada uma, a última durando quase 16 segundos e a canção em si 1m20s. (Dublagens posteriores a elevaram para 2m41s, embora a edição do ‘melhor’ mix a reduzisse a 2m05s.)”
Apesar do abismo emocional que marcava o crepúsculo do grupo mais importante da história do rock, no breve período de 1º de julho a 25 de agosto, entre gravações e edições, eles produziriam o que muitos consideram mais uma obra-prima: as 17 faixas do disco que homenagearia, no título, Abbey Road, o estúdio onde gravaram todos os seus álbuns, a partir de 11 de setembro de 1962.
O próprio Lewisohn comenta: “Foi um feito surpreendente, porque a animosidade entre o grupo foi quase totalmente apagada durante as sessões e impediu qualquer interferência com aquilo que, no fundo, era a essência dos Beatles: a música”.
Nas palavras de George Harrison, nenhum deles fazia ideia de que o fim havia chegado. “Eu não sabia na época que era o último disco dos Beatles. Lembro-me de gostar do disco e de ter apreciado, mas não me lembro de ter pensado que era isso, porque havia muita coisa acontecendo naquela época.
Ringo Starr vai na mesma linha: “Nós não estávamos sentados no estúdio dizendo: ‘Último disco, última faixa, última tomada'”, reforçando que ninguém sabia que Abbey Road era o canto do cisne. Nem mesmo as pessoas que trabalhavam diretamente com eles, incluindo o maestro George Martin. Além disso, pra ser rigorosamente oficial, a última música que os Beatles gravaram foi a belíssima “I Me Mine”, mas John não participou da sessão final.
Os engenheiros de som eram Geoff Emerick e Phil McDonald. Paul se encarregou dos vocais, tocou guitarra solo, baixo e piano. John e George fizeram backing vocals e tocaram guitarra solo e base. Ringo tocou bateria e fez backing vocal. Não há informação sobre os músicos que tocaram 12 violinos, 4 violas, 4 violoncelos, contrabaixo, 4 instrumentos de sopro, 3 trompetes, trombone e trombone baixo na sessão final.
Abbey Road chegou às lojas inglesas em 26 de setembro de 1969 e foi lançado nos Estados Unidos em 1º de outubro de 1969.
A composição, apesar de creditada a Lennon-McCartney, é essencialmente de Paul. Aliás, ninguém melhor que ele para escrever o epitáfio dos Beatles, e fez isso com a competência habitual. John não gostava do medley do álbum, embora tenha contribuído com algumas canções. Mais que isso: desejou que suas músicas e as de Macca estivessem em lados separados do disco. George estava de saco cheio do que considerava domínio absoluto de Paul dentro da banda.
Um fato a destacar na canção: de curta duração, ela expõe o virtuosismo de quatro músicos excepcionais. Ringo aparece com a sequência arrebatadora, o único solo dele com os Beatles. Em seguida, em sentido rotativo, Paul, George e John executam solos com dois compassos para cada um. De forma magistral, comovente até, cada um deles soa extremamente verdadeiro em segundos preciosos de grande música em cima do backing vocal “love you, love you”.
Paul e John não tinham a função de lead guitars no grupo, mas entregam tudo nos solos, com características bem distintas. A adição dos solos ocorreu entre 18h e meia-noite daquela quarta-feira mágica. Vamos combinar: mesmo sem ter sido planejado, é um final digno de gigantes.
(Desculpem o texto longo, baseado em informações colhidas aqui e acolá, para enriquecer a descrição de um momento icônico do rock moderno)