Um mundo sem reportagem

O jornalismo investigativo está morrendo. E agora?

Walter Cronkite anuncia na CBS a morte de John Kennedy, 22/11/63

Por André Forastieri

A reportagem não morreu, mas respira por aparelhos. A principal razão é a queda na receita de publicidade que a sustentava. A grana que costumava vir anunciantes foi desviada para outras atividades de marketing, principalmente para os cofres das gigantes digitais.

Outra encrenca é a crescente concentração de dinheiro e poder no planeta e Brasil. Os bilionários cada vez mais dão as cartas ou até compram as maiores grifes do jornalismo planetário.

Uma terceira é a crescente balcanização da nossa atenção em plataformas digitais separadas – quanto tempo você passa trancado dentro de apps? E pra fechar: a queda na credibilidade da grande imprensa junto ao público, em todo o espectro político.

E agora?

Para começar evitemos afirmações apocalípticas como “o jornalismo morreu”. Fujamos dos clichês tipo “partido da imprensa golpista”. Escapemos de teorias conspiratórias sobre o grande conluio da mídia com “o mal”, seja qual for “o mal”.

Cabe muita coisa debaixo do chapéu “jornalismo”, inclusive uma imensa variedade de jornalismo de serviços. Cabe muito conteúdo temático, segmentado. Cabe análise, opinião, jornalismo cidadão, fofoca e muito mais. Há muita diversidade, ainda que não muitos empregos ou bem-remunerados. O que tudo isso tem em comum: é mais barato produzir do que reportagem.

Reportagem é apuração, investigação, contextualização e furo. Exige muita experiência, fontes, tempo, esforço. Boa parte da energia investida frequentemente não gera resultados, mas isso não é desperdício: esse é o processo. Boa reportagem e alta produtividade não combinam.

Walter Mathau e Jack Lemmon no imortal “A Primeira Página”

Não que a reportagem esteja acima de críticas. Muito menos os repórteres. Sempre houve e haverão picaretas. Mas o conceito, crucial e relativamente recente, é fator fundamental para viver com algum nível de liberdade e justiça: que haja investigação permanente de todas as reentrâncias da sociedade, independente dos três poderes.

Donde que políticos e poderosos em geral apreciam jornalismo com moderação. Preferem propaganda. E detestam reportagem, principalmente quando estilingada em suas eventuais vidraças sujas.

Os fiscalizados não sentirão tanto a falta de repórteres nos seus calcanhares. Mas nós sentiremos, cidadãos de sociedades acostumadas com a potência fiscalizatória, civilizatória, imperfeita da reportagem.

Em muitos lugares ela já desapareceu. Cresci no interior de São Paulo nos anos 70 em uma cidade com menos de 200 mil habitantes. Tinha dois jornais diários e um semanal. Não sobrou nenhum.

É a regra para cidades do interior. Também acabou o jornal de bairro. Quem nesses lugares vai fiscalizar as negociatas do vereador com o empreiteiro, quem vai apontar a ausência da roupa nova do prefeito?

Sim, tem muita gente postando a cada minuto nas redes. Mas post não é reportagem. Nem este que lês neste momento. Muito menos se genérico ou histérico. Lacração, meme, sinalização de virtudes ou aplauso acrítico não substituem apuração.

Em qualquer assunto que você queira escolher, a maioria acachapante dos youtubers e tiktokers e blogueiros e top voicers e creators e autores de newsletters (“carteiros?”) tendem a uma postura leniente, colaborativa com seus potenciais patrocinadores. Porque não fariam assim?

Os grandes veículos estabelecidos também cada vez mais são reféns de suas novas necessidades de financiamento. Todos têm seus B.O.s, sejam corporações influentes ou CEO de MEI conteudista.

Pululam sites sobre finanças que recomendam prioritariamente os produtos do banco que paga os salários da redação. O branded content multiplataforma produzido por excelentes profissionais faz greenwashing de quem provoca o Aquecimento Global. O evento do portal lucra com patrocinadores que deveria investigar.

Bari Weiss e o senador, Ted Cruz, em evento da sua “imprensa livre”, patrocinado pelo Uber e pelo X, de Elon Musk

É superficial procurar responsabilidades individuais. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. A encrenca é estrutural.

São cada vez mais raros os veículos capazes de financiar reportagem e peitar as tretas que frequentemente a acompanham. Porque a pressão vem forte, às vezes acompanhada de processo. Jornalista independente escreve pisando em ovos. Tomo um cuidado danado para não tomar processo com o que escrevo aqui. Não tenho uma empresona por trás pra me defender.

É melancólica a situação no Brasil e em todo lugar. Inclusive onde há tradição de excelente reportagem, o Reino Unido. Lá até a veneranda BBC, que não depende de anúncio, tem dado show de colaboracionismo com o que há de mais retrógrado no país.

E inclusive onde ainda temos a mais milionária imprensa do planeta, os EUA. Tem sido impressionante acompanhar a derrocada da reportagem por lá. Os maiores veículos deixam os rabos à mostra, de tanto que se curvam para bullies poderosos e bilionários.

Um estridente prego no caixão da reportagem americana é a ascenção de Bari Weiss à direção de jornalismo da CBS. A rede é o padrão ouro em reportagem televisiva no país – e antes, reportagem radiofônica.

É a casa do lendário Ed Murrow, que você talvez tenha visto em “Boa Noite e Boa Sorte”. O filme foi dirigido por George Clooney, que agora e em boa hora vive o repórter na Broadway. Da CBS saíram programas lendários como Face The Nation e 60 Minutes, que literalmente inventaram seus formatos e seguem influentes há mais de meio século. Lá fez história Walter Cronkite, o ideal platônico de âncora” De Mike Wallace, Morley Safer, Dan Rather, Katie Couric. Escolinha de caras como Anderson Cooper. E a lista segue.

Bari Weiss fez fama denunciando o wokismo do “The New York Times”. Fez a cama com newsletter financiada pelo Silicon Valley, The Free Press, panfleto libertário-isentão anti-Democratas & progressistas. Faz agora fortuna vendendo seu business para os Ellison, novos donos da CBS e Paramount. Preço: R$ 150 milhões.

Ms. Weiss vai integrar The Free Press à CBS News e comandar toda a estrutura de jornalismo da emissora, respondendo diretamente para David Ellison, CEO da corporação. Bari passou pelo Wall Street Journal e The New York Times, nunca na reportagem. Nunca trabalhou com hard news. Nunca liderou uma redação. E The Free Press nunca deu dinheiro.

David promete revolucionar os negócios de entretenimento e jornalismo com a expertise tech da empresa da família. Larry Ellison, seu pai, é o fundador da Oracle e um dos homens mais ricos do mundo. Está entre os maiores doadores para Israel e é muito próximo de Benjamin Netanyahu.

Desde que David assumiu, a CBS demitiu Stephen Colbert, suspendeu Jimmy Kimmel e fechou acordo judicial milionário para fazer as pazes com Donald Trump. Um artigo sobre a ascenção de Bari a czarina da CBS News cita o republicano Frank Luntz: “ela fala com um centésimo de 1% dos americanos, mas eles a ouvem.” “Eles” são Bezos, Musk, Zuckerberg, Thiel.

Bari Weiss com Peter Thiel

Não é que The Free Press não critique nunca a ultraelite dos EUA. Só que essas raras ocasiões são gotas num oceano de matérias denunciando as mínimas falhas e contradições do campo oposto, frequentemente transformadas em máximas.

Não publicar mentiras é diferente de não mentir. É má reportagem aquela que não dá à verdade o espaço que a verdade exige. Ou pesar a mão nas opiniões de um lado só. Você pode conferir pessoalmente na cobertura do massacre em Gaza. Trata-se de militância camuflada em imparcialidade.

Mas será que a reportagem em geral está mesmo em risco? Para ficar nos citados Estados Unidos e Reino Unido, a contradita dos otimistas é sempre lembrar o sucesso de The New York Times e Guardian.

Só que ambos são dificílimos de imitar. Além do prestígio secular, são os principais jornais de duas capitais riquíssimas e lidos nos cinco continentes. Detalhe: os principais fatores para o assinante renovar sua assinatura digital do NYT são os games e as receitas de comida, nessa ordem.

Quanto ao Guardian, é propriedade de um truste sem fins lucrativos. Fora contar com a colaboração de muitos leitores mundo afora comprometidos com sua postura humanista, moderada, à esquerda da grande imprensa internacional. Por quinze dólares ao mês, é ótimo investimento.

Vale ressaltar que também no “campo progressista” a reportagem não vai bem das pernas. Nesse campo, sempre castigado pela pindaíba, o borderô para reportagem sempre foi pequeno. Com a popularidade das plataformas digitais, se multiplicam organizações e influenciadores que se dedicam ao opinol e gritaria, com pouca ou nenhuma investigação real.

Exceções se financiam com dificuldade, com apoios individuais, doações de ONGs, “grants”, campanhas. Cito uma que acompanho sempre, a Agência Pública, de onde saíram e saem reportagens vitais, que merece seu apoio. Há vários outros exemplos notáveis.

Sim, tem ótimos repórteres na grande imprensa. Sim, tem ótimos repórteres tirando leite de pedra em veículos alternativos. A reportagem resiste, mas resiste ocupando espaço cada vez menor no ringue, e apanhando à beça.

Seja quem estiver nas posições de poder – seja o poder público, econômico, cultural ou acadêmico, nos palácios ou na esquina – é crucial que enfrentem o poder da apuração rigorosa e da fiscalização fustigadora. Trabalho para profissionais na procura da verdade e veículos dispostos a uma boa briga.

Uns e outros precisam de dinheiro. E sem dinheiro, muitos veículos simplesmente fecham. Um levantamento do projeto Mais Pelo Jornalismo aponta que o Brasil tem hoje 2.352 veículos a menos que em 2014.

O que vem por aí? Fácil prever. A vida sem reportagem é regra na maior parte do planeta. Em muitas sociedades mundo afora, repórteres não têm vez ou voz. São censurados, presos, assassinados. No Brasil também não é o emprego mais seguro.

Os poucos países onde algum jornalismo investigativo prosperou por algum tempo estão abrindo mão dele. Seus cidadãos ainda não se tocaram quanto é importante para seu funcionamento decente um jornalismo competente e principalmente uma reportagem potente. E como é fundamenta garantir que eles sobrevivam e mais, floresçam.

Já dá pra ver daqui, 2025, o momento em que não haverá mais reportagem em lugar nenhum. Ou será tão pouca que pouca diferença fará. Há quem sonhe com esse mundo, quem invista para acelerar sua chegada, quem ganha se ele vencer – como Bari Weiss. Você não vai querer viver lá.

O que fazer? Seja o que fôr, é bom fazermos rápido.

Riviera de Trump sobre covas palestinas já é realidade

Por Leila Salim – Intercept_Brasil

Quando Donald Trump anunciou, em fevereiro deste ano, sua intenção de tomar a Faixa de Gaza e transformá-la na “Riviera do Oriente Médio”, houve indignação. A provocação (ou promessa) feita em entrevista ao lado do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu ganhou tons mais obscenos dias depois, quando o presidente dos EUA compartilhou um vídeo feito por inteligência artificial em que aparece ao lado de Netanyahu em resorts, aproveitando “a nova Gaza” cercado de mulheres, luxo e dinheiro. 

O que soou como mais um escárnio trumpista, marcado pelo exagero e o absurdo é, no entanto, realidade a alguns quilômetros dali. O que é hoje o balneário de Dor, concorrido destino turístico ao norte de Israel, foi Tantura até 1948 – um dos mais proeminentes vilarejos agrícolas e pesqueiros da Palestina, à época com 1,.7 mil habitantes. 

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Debaixo do estacionamento que dá acesso à praia paradisíaca e do resort Holiday Village Dor, há covas coletivas. Ali, foram enterrados os cerca de 300 palestinos mortos no massacre feito por uma milícia sionista em 22 de maio daquele ano, dias depois da criação do estado de Israel. 

“Quem está enterrado ali é a minha família. São meus tios, os avós que não tive o direito de conhecer, parentes e amigos. São as pessoas do lugar de onde venho”, diz Jihan Sarhan, apontando para o estacionamento. 

A palestina de 57 anos é filha de uma sobrevivente do massacre. Sua mãe, Rashida Hassan, tinha 18 anos quando escapou dos ataques com as duas filhas, de quatro meses e dois anos. Viu o marido, pais e alguns dos irmãos serem mortos. 

É final de julho de 2025, alto verão em Israel, e Dor vive o domingo em clima de normalidade. A praia está lotada, e o fluxo de famílias e turistas é intenso. Há bandeiras israelenses por toda a parte. Jihan fala a alguns metros de grandes chuveiros, instalados antes da faixa de areia. Um senhor de cerca de 70 anos, de calção, chinelos e sem camisa caminha até as duchas. Aciona a cordinha e libera litros de água. Repete o gesto e banha-se uma, duas, três, dez vezes, enquanto nos olha. 

Gaza, a uma hora e meia de carro dali, Israel utiliza a sede e a desidratação como armas de guerra contra palestinos. Naquela mesma semana, especialistas da ONU denunciaram a privação deliberada de acesso à água potável no enclave.  

“É impossível não relacionar o que acontece hoje em Gaza com o que aconteceu em Tantura. As pessoas que estão sendo mortas em Gaza são os netos de quem foi expulso dos territórios palestinos em 1948, inclusive de Tantura. São 77 anos de um genocídio contínuo”, diz Jihan. “É muito duro vir aqui e ver as filas de carros em cima das covas coletivas. Foi tudo construído sobre os escombros das áreas demolidas”, completa. 

Mas, se para Jihan e palestinos sobreviventes deste e outros massacres, estar em Tantura é uma experiência traumática e dolorosa, para israelenses e turistas pode ser absolutamente trivial. No balneário de Dor, sem qualquer referência ao massacre ocorrido ali, a história permanece soterrada pelo cimento. 

“Lugar maravilhoso! Passamos uma noite nesse resort. É muito próximo à praia, que é uma das mais bonitas de Israel. Um refúgio perfeito para crianças, já que a maior parte da praia é de águas rasas”, escreveu uma turista isralense em um site para avaliação de hospedagens.  

Vista aérea do resort no meio do balneário. Foto: reprodução.

De Tantura a Gaza

O contraste entre as experiências ilustra uma fissura mais profunda, inscrita na fundação do estado de Israel. A Nakba (catástrofe, em árabe, termo utilizado pelos palestinos para denominar o conjunto de massacres, expulsões e deslocamentos forçados que deram origem a Israel) é negada pela historiografia oficial e um tabu na sociedade israelense. 

No cotidiano, o negacionismo se traduz em mecanismos de apagamento contínuo dos episódios. Para historiadores como o israelense Ilan Pappé, os massacres fazem parte da limpeza étnica que está na base da criação do estado de Israel. O reconhecimento dos massacres, afinal, desmontaria um dos mitos da historiografia oficial isralense –  nesse caso, o de que os palestinos teriam abandonado suas casas voluntariamente em 1948. 

Fotos do acervo de Jihan mostram a expulsão de sua comunidade nos anos 1940.

Mais do que isso: para Pappé e outros pesquisadores da historiografia crítica, o reconhecimento da limpeza étnica é indispensável para impedir o genocídio atual em Gaza, baseado na mesma ideologia e sustentado por 77 anos de práticas institucionalizadas por Israel. 

“Limpeza étnica é mais do que uma política, é uma ideologia. E, se a gente não estudar, não analisar a conexão entre a ideologia sionista e o genocídio, a gente nunca vai conseguir impedir as ações do estado israelense contra a população palestina”, disse o historiador em visita recente ao Brasil. 

Justamente por isso, a memória de Tantura esteve no centro de uma disputa historiográfica que envolveu a revogação de um título acadêmico, o silenciamento de uma pesquisa e determinou a saída definitiva de Pappé de Israel, nos anos 2000. O pesquisador Teddy Katz, seu aluno na universidade de Haifa, defendeu em 1998 uma dissertação de mestrado sobre a história de cinco vilarejos costeiros palestinos naquela região. 

A pesquisa incluía mais de 120 depoimentos: metade de sobreviventes do massacre de Tantura e seus descendentes e a outra metade de israelenses, incluindo soldados da chamada “Brigada Alexandroni”. O grupo que invadiu o vilarejo na madrugada de 22 para 23 de maio de 1948 era uma das seis unidades paramilitares que integravam a milícia Haganah, que depois se tornou o núcleo do exército de Israel (IDF, na sigla em inglês).

Aprovada com grau “extremamente alto”, a dissertação foi aclamada e considerada “excelente”. Mas quando o trabalho ganhou repercussão na mídia, dois anos depois, foi descredibilizado. Os soldados entrevistados negaram suas declarações e acusaram o pesquisador de falseamento. Teddy Katz sofreu perseguição jurídica, perdeu o título e foi obrigado a se retratar – o que fez, sob pressão. 

Arrependeu-se horas depois, mas já era tarde. Retomou o título de mestre apresentando uma nova tese, aprovada com grau baixo e retirada da biblioteca da universidade. Pappé, que apoiou Katz publicamente, pediu demissão da universidade em 2007. Mudou-se para o Reino Unido e passou a lecionar na Universidade de Exeter. 

‘Eles não queriam os sobreviventes por perto’

Para Jihan, duvidar da existência do massacre nunca foi uma opção. Por causa da expulsão forçada, nasceu em Fureidis, vilarejo que fica em uma montanha a menos de cinco quilômetros de Tantura. Foi para lá que fugiram todos os sobreviventes do massacre de 1948, esperando retornar em poucos dias para suas casas.

Deve à sua mãe, no entanto, a permanência no local. “Sou grata à minha mãe por ter ficado e ter me permitido estar aqui hoje para contar a história”, diz. É que, dias após o massacre, caminhões israelenses chegaram a Fureidis, então uma pequena aldeia de 15 casas, para levar as famílias de Tantura para longe dali, especialmente para campos de refugiados na Jordânia. “Eles não queriam os sobreviventes por perto”, explica. 

Rashida se escondeu nas montanhas com as duas filhas e conseguiu escapar da segunda expulsão forçada. Ficou naquilo que os palestinos chamam de “territórios de 48” – o estado de Israel –, compondo a população enquadrada oficialmente como “árabe-israelense” (hoje, cerca de 20% da população total de Israel). Aos 18 anos, sozinha com duas bebês, lutou para sobreviver. 

Começou a trabalhar em subempregos para alimentar as crianças e, anos depois, viveu uma nova tragédia: a filha mais nova, então com seis anos, foi atropelada ao correr sozinha para uma estrada enquanto a mãe trabalhava. “São Nakbas contínuos. Essas tragédias só aconteceram por causa da primeira”, lamenta Jihan, lembrando também a história de um seus tios. Sobrevivente de Tantura, foi deslocado para o campo de refugiados de Tulkarm, na Cisjordânia – de onde foi expulso em uma incursão israelense. 

Nascida em 1968, Jihan cresceu no período de expansão da ocupação israelense na Palestina. Em 1967, na Guerra de Seis Dias, Israel anexara Jerusalém Oriental, ampliando o controle sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e ocupando as Colinas de Golã. Como palestina vivendo em Israel, fortaleceu os vínculos com sua comunidade ouvindo os relatos de sua mãe e de outros sobreviventes. 

Há três anos, ouviu pela primeira vez de ex-soldados algumas das histórias que cresceu escutando. Foi apenas em 2022, com o lançamento do premiado documentário Tantura, do diretor israelense Alon Schwarz, que o passado do vilarejo voltou a vir à tona para o grande público – apesar da pequena repercussão no Brasil. 

Alguns dos soldados da milícia sionista, agora nonagenários, confirmaram enfim a participação nos massacres. Entre risadas, relembraram os assassinatos, torturas e estupros cometidos. “Simples assim. Se você matou, fez a coisa certa”, disse Hanoch Amit, ex-soldado da Brigada Alexandroni. Entre controvérsias e diferentes versões, aparece o nome de Moishe Barbalar, ex-soldado citado por ter jogado uma granada contra uma casa e estuprado uma jovem. 

Eu ouvia essa história contada pela minha mãe”, diz Jihan. “Um soldado escolheu uma menina de 16 anos e a estuprou; o tio dela, que tentou impedir, foi morto. Eu evitava pensar nisso. Quando os ouvi contar, lembrei imediatamente da história”, conta. 

Caminhando pela areia entre o fluxo intenso de banhistas, Jihan lembra que, ali, foram enfileiradas mulheres e crianças na manhã seguinte ao massacre. O ataque por terra e mar aconteceu às duas da manhã. Alguns homens jovens tentaram resistir, com armamentos frágeis e poucas balas. Foram rapidamente derrotados.

As milícias avançaram, entrando nas casas e assassinando a população rendida. “Nós enfileiramos os árabes e matamos um a um, sem motivo”, disse outro soldado em entrevista ao documentário. Após matarem a maioria dos homens, rendidos, os soldados roubaram as joias e pertences das mulheres enfileiradas na areia. 

Alguns homens, como um de seus tios, foram mantidos vivos com a missão de cavar as covas coletivas. “Meu tio virou um corpo e reconheceu seu tio. Com uma arma apontada para sua cabeça, um soldado perguntou se ele conhecia aquele homem. Ele disse que não, para continuar vivo”.

A única casa remanescente de Tantura: uma prova histórica. Foto: Leila Salim/Intercept Brasil.

Jihan nos leva até a ponta da praia, onde está a única casa remanescente de Tantura. Todas as outras foram demolidas. Perdido na paisagem, o casarão de pedras parcialmente derrubado aparece em algumas fotos de turistas nas redes sociais como “uma casa antiga”. É, na verdade, uma prova histórica da limpeza étnica que permitiu que Dor existisse como existe hoje. 

“Nós [sobreviventes e familiares] entramos com um pedido junto à administração local para a construção de um memorial para as vítimas do massacre aqui. De início, pensamos que isso seria entendido por um povo que passou por um genocídio e que lutou pelo memorial do Holocausto para relembrar a dor de seus antepassados e para que ninguém esqueça”, conta Jihan. 

“Achávamos que eles entenderiam que esse também é um direito do povo de Tantura. Mas é claro que foi uma ilusão. O pedido foi negado”. Em 2023, os pontos onde estão localizadas as covas coletivas foram identificados por investigação técnica de uma agência independente inglesa, a pedido de uma organização de direitos humanos palestina. A pesquisa durou um ano e meio.  

Mas, hoje, quem tem direito à memória são os colonos instalados no local menos de um mês após o massacre. Em 14 de junho de 1948, 63 pessoas foram levadas para lá pelo estado de Israel, criando o kibutz de Nasholim – onde um memorial para os soldados da Brigada Alexandroni foi erguido. 

Rashida Hassan faleceu em 2019, aos 89 anos, sem nunca ter retornado a Tantura. Queria manter a memória de seu vilarejo antes do massacre. Mas até o final de sua vida, pedia à sua filha que, em suas visitas, coletasse um pouco da água do mar e colocasse em uma garrafa, para que pudesse cheirá-la. 

Hoje uma das vozes mais proeminentes da luta por memória e justiça em Tantura, Jihan continua visitando o local frequentemente. Faz questão, também, de levar seus filhos. “Aqui, estou próxima da minha história. Conheço todas as pessoas que estão enterradas aqui, mesmo nunca tendo as visto. Está dentro de mim, enraizado no meu coração e em minha memória”. 

A visita a Tantura com Jihan Sirhan foi organizada pelo Badil Resource Center em julho de 2025. A entrevista exclusiva para o Intercept com Jihan Sarhan foi traduzida por Ruayda Rabah.

Leão põe as ambições em jogo

POR GERSON NOGUEIRA

O Remo encara hoje um desafio que pode colocá-lo de fato entre os candidatos ao acesso. Contra o Atlético-PR, às 21h35, no Baenão, o time vai entrar com a necessidade de vencer para seguir se aproximando do G4. Caso consiga se impor, ficará a apenas 2 pontos do Novorizontino, que ontem à noite venceu e assumiu a quarta colocação.

As dificuldades são imensas. O Furacão é neste momento um dos times mais competitivos do campeonato, após uma sequência impressionante de sete vitórias seguidas. É verdade que na rodada passada perdeu feio (3 a 0) para o Atlético-GO, mas isso não muda o fato de que é uma equipe perigosa e com chances reais de alcançar o acesso.  

Dentro do Baenão, para onde foi obrigado a retornar devido à agenda de shows do Mangueirão, o Remo terá que explorar ao máximo a presença de sua torcida, fazendo valer a condição de mandante. A última atuação no estádio foi diante do Atlético-GO, com sabor amargo para o torcedor. Os goianos levaram a melhor por 1 a 0.

Além do trunfo de jogar sob o incentivo de um estádio lotado, o Remo conta com a volta do artilheiro Pedro Rocha, finalmente apto a atuar após ficar ausente de quatro rodadas. Rocha tem 12 gols no campeonato e é um dos principais atacantes da competição.

Com seu principal jogador em ação, o Leão terá condições de impor pressão ofensiva e fazer o Furacão tremer no caldeirão do Baenão. Não será uma tarefa simples. O visitante tem um elenco qualificado, talvez o melhor e mais caro da Série B.

As vitórias sobre o CRB e o Operário devolveram o entusiasmo ao Remo e valorizaram a presença do técnico Guto Ferreira. A convicção de que só uma sequência de vitórias pode concretizar a arrancada rumo ao G4, é certo que o time vai partir para cima do Furacão desde os primeiros minutos.

Os erros cometidos contra o Atlético Goianiense devem servir de alerta. Na ocasião, o Remo foi excessivamente tímido nos avanços e criou poucas oportunidades de gol. Passou a partida controlando a posse de bola, mas sem transformar isso em vantagem prática.

Hoje, além de Rocha, o ataque terá Diego Hernández e João Pedro. Ao mesmo tempo, poderá contar com o retorno de Cantillo. O volante está inteiramente recuperado e liberado para jogar, podendo se juntar a Panagiotis e Nathan Camargo no setor de meia-cancha.

Marcelo Rangel, apesar do susto diante do Operário, quando precisou ser substituído por Ygor Vinhas no intervalo, está confirmado no gol.

Para o Papão, rebaixamento é logo ali

A matemática ainda favorece os cálculos dos otimistas, mesmo que de forma precária. Nos sete jogos que faltam ao PSC, seis vitórias podem garantir a salvação. O problema é que, a essa altura, só os delirantes ainda acreditam nessa hipótese.

Depois da derrota diante do Botafogo-SP, na terça-feira (8), em Ribeirão Preto, o time de Márcio Fernandes afundou de vez na lanterna da Série B. Com apenas 26 pontos, o Papão está a cinco pontos do 19º colocado (Botafogo) e a 10 do Athletic, primeiro posicionado fora do Z4.

Diante do tricolor paulista, o time não demonstrou apetite ofensivo, preferindo ficar tocando bolas improdutivas no campo de defesa a partir para o ataque em busca do gol. Em boa parte do confronto, o PSC estranhamente parecia querer apenas empatar.

A única oportunidade criada no 1º tempo resultou em cabeceio torto de Diogo Oliveira, aos 7 minutos, após cruzamento de Edilson. Como o PSC se limitava a trocar passes lá atrás e o Botafogo praticamente não ameaçava, o jogo foi se arrastando sem emoções.

A única da etapa inicial foi a canhestra tentativa de simulação de pênalti por Edilson no minuto final. Caiu espetacularmente na área, mas a malandragem não resistiu à análise do VAR.

Na etapa final, já sem Garcez e Diogo, que saíram lesionados, Márcio Fernandes recorreu às alternativas de sempre, sem alterar a maneira frouxa de atuar. Rossi, Peterson, Ramon e Carlos Eduardo nada acrescentaram ao apático desempenho do time.

O castigo pela falta de agressividade veio aos 43 minutos do 2º tempo. Uma lambança junto à lateral, envolvendo Edilson, Rossi e Thalisson, deu ao Botinha a única chance de chegar ao gol. Jefferson Nem entrou na área e tocou para Carrillo marcar. Como se sabe, a bola pune os que dormem.    

Márcio põe culpa no gramado, mas a verdade é outra

Há nove rodadas na lanterna e há 28 na zona da degola, o PSC não tem mais como esgotar a paciência de seu torcedor. A sete rodadas do final da disputa, precisando desesperadamente vencer, o time caprichou na lerdeza contra o apenas esforçado Botafogo-SP.

Ao final do confronto, Márcio Fernandes surpreendeu pela explicação buscada para o novo revés. Culpou as condições do gramado da Arena Nicnet, em Ribeirão Preto. Disse que o campo interferiu na qualidade do jogo, prejudicando o PSC.

O gramado é meio careca, de fato, mas esteve longe de ser a causa da desventura bicolor. Márcio não disse, mas ao PSC falta qualidade, volúpia e fôlego para buscar vitórias. O elenco, reconhecidamente limitado, se traduz numa equipe fraca e sem convicção.

Bryan Borges foi mais certeiro na análise: disse que o time teve uma atuação horrível. Simplificar é sempre o melhor caminho.

(Coluna publicada na edição do Bola desta quinta-feira, 09)