“Democracia e soberania são inegociáveis”

Por Luiz Inácio Lula da Silva

“Decidi escrever este artigo para estabelecer um diálogo aberto e franco com o presidente dos Estados Unidos. Ao longo de décadas de negociações, primeiro como líder sindical e depois como presidente, aprendi a ouvir todos os lados e a levar em consideração todos os interesses em jogo. Foi por isso que examinei cuidadosamente os argumentos apresentados pelo governo Trump para impor uma tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros. 

Trazer de volta os empregos americanos e a reindustrialização são motivações legítimas. Quando, no passado, os Estados Unidos levantaram a bandeira do neoliberalismo, o Brasil alertou sobre seus efeitos prejudiciais. Ver a Casa Branca finalmente reconhecer os limites do chamado Consenso de Washington — uma receita política de proteção social mínima, liberalização comercial irrestrita e desregulamentação geral dominante desde a década de 1990 — justificou a posição brasileira. 

Mas recorrer a ações unilaterais contra Estados individuais é prescrever o remédio errado. O multilateralismo oferece soluções mais justas e equilibradas. O aumento da tarifa imposto ao Brasil neste verão não é apenas equivocado, mas também ilógico. Os Estados Unidos não têm déficit comercial com nosso país, nem estão sujeitos a altas tarifas. 

Nos últimos 15 anos, acumulou um superávit de US$ 410 bilhões no comércio bilateral de bens e serviços. Quase 75% das exportações dos EUA para o Brasil entram isentas de impostos. Segundo nossos cálculos, a tarifa média efetiva sobre os produtos americanos é de apenas 2,7%. Oito dos dez principais itens têm tarifa zero, incluindo petróleo, aeronaves, gás natural e carvão. 

A falta de justificativa econômica por trás dessas medidas deixa claro que a motivação da Casa Branca é política. O vice-secretário de Estado, Christopher Landau, teria dito isso no início deste mês a um grupo de líderes empresariais brasileiros que estavam trabalhando para abrir canais de negociação. O governo dos Estados Unidos está usando tarifas e a Lei Magnitsky para buscar impunidade para o ex-presidente Jair Bolsonaro, que orquestrou uma tentativa fracassada de golpe em 8 de janeiro de 2023, em um esforço para subverter a vontade popular expressa nas urnas. 

Tenho orgulho da decisão histórica tomada na quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, que protege nossas instituições e o Estado de Direito democrático. Não se tratou de uma “caça às bruxas”. A decisão foi resultado de um processo conduzido de acordo com a Constituição brasileira de 1988, promulgada após duas décadas de luta contra uma ditadura militar. Ela veio após meses de investigações que revelaram planos para assassinar a mim, ao vice-presidente e a um ministro do Supremo Tribunal Federal. As autoridades também descobriram um projeto de decreto que teria efetivamente anulado os resultados das eleições de 2022. 

O governo Trump acusou ainda o sistema judiciário brasileiro de perseguir e censurar empresas de tecnologia americanas. Essas alegações são falsas. Todas as plataformas digitais, sejam elas nacionais ou estrangeiras, estão sujeitas às mesmas leis no Brasil. É desonesto chamar regulamentação de censura, especialmente quando o que está em jogo é a proteção de nossas famílias contra fraudes, desinformação e discurso de ódio. A internet não pode ser um terreno sem lei, onde pedófilos e abusadores têm liberdade para atacar nossas crianças e adolescentes. 

Igualmente infundadas são as alegações do governo sobre práticas desleais do Brasil no comércio digital e nos serviços de pagamento eletrônico e sua suposta falha em fazer cumprir as leis ambientais. Ao contrário de ser injusto com os operadores financeiros dos Estados Unidos, o sistema de pagamentos digitais do Brasil, conhecido como Pix, possibilitou a inclusão financeira de milhões de cidadãos e empresas. Não podemos ser penalizados por criar um mecanismo rápido, gratuito e seguro que facilita as transações e estimula a economia. 

Nos últimos dois anos, reduzimos pela metade a taxa de desmatamento na Amazônia. Somente em 2024, a polícia brasileira apreendeu centenas de milhões de dólares em bens usados em crimes ambientais. Mas a Amazônia ainda estará em perigo se outros países não fizerem sua parte na redução das emissões de gases de efeito estufa.

O aumento da temperatura global pode transformar a floresta tropical em uma savana, alterando os padrões de precipitação em todo o hemisfério, incluindo o meio-oeste americano.

Quando os Estados Unidos abandonam uma relação de mais de 200 anos, como a que mantêm com o Brasil, todos perdem. Não há diferenças ideológicas que devam impedir dois governos de trabalhar juntos em áreas onde têm objetivos comuns. 

Presidente Trump, continuamos abertos a negociar qualquer coisa que possa trazer benefícios mútuos. Mas a democracia e a soberania do Brasil não estão em discussão. Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2017, o senhor disse que ‘nações soberanas fortes permitem que países diversos, com valores, culturas e sonhos diferentes, não apenas coexistam, mas trabalhem lado a lado com base no respeito mútuo’. É assim que vejo a relação entre o Brasil e os Estados Unidos: duas grandes nações capazes de se respeitar e cooperar para o bem dos brasileiros e dos americanos.”

Acerto de contas com o passado

Por Guto Lobato, no Facebook

Lembro perfeitamente do dia da prisão do Lula. Meio mundo declarando os vícios do processo, gente na própria direita incrédula com a ordem de confinamento sem qualquer prova cabal dos crimes dos quais o ex-presidente era acusado.

Na Saúde, bairro de classe média de São Paulo, onde a gente morou por 12 anos, uma horda de gente batia panelas e ofendia Lula e sua família, dizia que a petistada ia toda morrer de fome. Como no impeachment da Dilma, outro momento sombrio que nossa geração teve de aturar, a gente estava em casa, numa fossa surreal, em um anoitecer nublado, feioso.

Mesmo sem nunca haver votado no Lula até ali (somente na Dilma), senti uma vontade insana de dar soco na parede ao ver aquele homem, que tinha tirado o Brasil do mapa da fome, que nada tinha de prova contra si, ser escorraçado para a cadeia e carregado com afeto por seus eleitores e militância, no ABC. Uma cena sem qualquer violência, com uma entrega voluntária que seguiria respeitosa em sua permanência no cárcere por mais de 500 dias. Na televisão, cobertura em tempo real das viaturas da PF entre o ABC e o aeroporto, direto para Curitiba. Comentaristas, quase todos conservadores, mal disfarçando a empolgação juvenil. Aquele PPT; ah, aquele PPT. Claramente tinha algo muito errado naquele circo. 

E tinha. O processo foi – descobriu-se via um belo trabalho investigativo e de denúncia do jornalismo, este mesmo que o bolsonarismo e seus defensores detestam – absolutamente viciado, contaminado e embebedado pela sanha da extrema-direita, na sua vontade infinita de eliminar o outro e reinar absoluta na teocracia da arminha que Bolsonaro tentaria implantar.

Não deu certo. Ele perdeu as eleições de 2022 após assassinar 700 mil brasileiros, botar pessoas pobres para comer sopa de osso e, com isso, fazer gente sensata da direita tapar os olhos e até apertar o 13 que sempre detestou. Perdeu, não aceitou, tentou dar um golpe, mas perdeu. Lula assumiu e voltamos a ter alguma paz.

Corta para 2025.

Estou eu aqui, ainda morando aqui no Brasil, ainda acreditando em tudo isso aqui. Um pouco mais velho, um pouco menos paciente com gente maluca, mas também menos brigão. Agora, com dois filhos que Mayara e eu decidimos colocar no mundo, acreditando (tendo esperança) que isso ainda é lugar justo e bom de se viver. Afinal, para que faríamos filhos, se achássemos que não tem salvação? Hoje, estamos sem Bolsonaro no governo; em troca, temos um Bolsonaro encurralado, de tornozeleira e prisão domiciliar, combalido e corroído por seu próprio ódio, réu junto com seus asseclas.

Assisti ontem e hoje ao julgamento do processo que, no Supremo Tribunal Federal, confirmou a existência de uma organização criminosa mobilizada, entre 2021 e 8/1/2023, para assassinar Lula, eleito, seu vice, Alckmin, e um ministro do STF, entre outras coisinhas mais – tipo dar um golpe de estado, abolir o TSE, invalidar as eleições etc. Coisa miúda. Essa organização faz parte do mesmo grupo que assassinou centenas de milhares na pandemia, que desdenhou do sofrimento alheio, que atrasou a compra de vacinas. Que matou de Covid-19 pais de amigos meus, queridos, que nunca fizeram mal a uma mosca. Mas que está sendo julgada por motivos mais mundanos, por ora – por ora! -, e que teve na Primeira Turma sua sentença confirmada por uma somatória de crimes.

Mal consigo expressar a chuva de coisas que passaram pela cabeça quando vi os ministros descreverem seu voto e suas ideias. Juro que só conseguia pensar no Vinicius e na Athena. Nunca na vida senti com tanta segurança que o que se faz aqui, se paga aqui. Mesmo na hora do voto de Fux, o homem que se contradiz sem que ninguém o peça, esse julgamento foi uma experiência prazerosa. Distensão, catarse, vontade de ver alguém que tanto mal fez (e que já está pagando em vida pelo que fez, diga-se de passagem – uma vida horrenda, em uma família horrenda) ser responsabilizado, considerado criminoso em uma votação colegiada.

Lembro, ainda hoje, dos depoimentos e dos passos jurídicos do Brasil surtado do lavajatismo. Via Lula ali, sabendo que seria preso hora ou outra, sempre calmo, sem gritaria, reiterando que era um processo (e não um julgamento) injusto. Saiu da cadeia respeitando a Suprema Corte – a mesma que por fim teve a responsabilidade de anular seus processos viciados. Agora, vê-se Bolsonaro, sem cargo e sem poder, desesperado, fazendo drama nas redes e na mídia, ressaltando seu apodrecimento físico e psíquico. Diz-se, condenado antes mesmo do julgamento – não porque os juízes necessariamente queriam, mas porque a montanha de provas berrava na cara de qualquer um. Um decadente, rumo à decadência.

Há dois anos, mais ou menos, não escrevia nada aqui. Sigo sem paciência, sem saco, mas hoje é um dia muito especial. Um dia em que a gente vê que vale a pena ficar nesse país, abraçar o lado correto da História (que, sim, existe) e ter paciência e serenidade. Justiça existe. Os autos da ação penal da trama golpista não são sobre isso, as penas idem – mas tudo faz remeter à confusão iniciada há exatos dez anos, quando Dilma começou a ser expulsa a conta-gotas do cargo para o qual foi eleita. Dali em diante, a esquerda (qualquer esquerda, qualquer coisa que não a mais burra direita) foi ridicularizada, tomada como bandida, pisoteada, substituída por cristãos adoradores de armas. 

Hoje a coisa é diferente. Nossos filhos dormem tranquilos, e a gente vai dormir mais tranquilo ainda. A gente vai comemorar. Afinal, depois de tudo que qualquer pessoa sensata viu de errado e teve que engolir nos últimos dez anos, podemos finalmente dizer que o jogo virou. Valeu a pena acreditar que nosso país é decente, que sabemos punir e reprimir quem atenta contra nossa estrutura institucional, que respeitamos eleições. Que temos um Judiciário capaz de entender o senso de urgência dessa ação.

Em resumo, valeu e vale a pena insistir, viver, fazer família e planejar um futuro aqui. Esse país finalmente começou, hoje, a acertar suas contas com um passado horroroso e expurgar seus demônios. Acordamos de um pesadelo. Que seja só o começo – sem anistia, sem perdão, sem dó ou piedade.

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Nota do blogueiro – Identifico-me com o amigo Guto Lobato quanto a ter perdido por um bom tempo o tesão pra ficar protestando e manifestando indignação com as perversidades extremistas da direita no Brasil. Mas, aos poucos, os fatos estão permitindo que a velha fúria por Justiça reapareça viva e confiante.

Um país sabia o que fazer quando seu presidente tentou roubar uma eleição

Por Filipe Campante – The New York Times

Na quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal brasileiro fez o que o Senado dos EUA e os tribunais federais tragicamente não conseguiram fazer: levar um ex-presidente que atacou a democracia à justiça. Em uma decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal votou por 4 a 1 para condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro por conspirar contra a democracia e tentar um golpe após sua derrota nas eleições de 2022. Ele foi condenado a 27 anos de prisão. Salvo um recurso bem-sucedido, o que é improvável, Bolsonaro se tornará o primeiro líder golpista da história do Brasil a cumprir pena na prisão.

Esses desenvolvimentos contrastam fortemente com os Estados Unidos, onde o presidente Trump, que também tentou anular uma eleição, foi enviado não para a prisão, mas de volta à Casa Branca. Trump, talvez reconhecendo o poder desse contraste, chamou a acusação de Bolsonaro de “caça às bruxas” e descreveu sua condenação como “uma coisa terrível. Muito terrível.”

Mas Trump não apenas criticou o esforço do Brasil para defender sua democracia: ele também o puniu. Citando o processo legal contra Bolsonaro antes mesmo de ser decidido, o governo Trump
impôs uma tarifa colossal de 50% sobre a maioria das exportações brasileiras e impôs sanções a vários funcionários do governo e juízes do Supremo Tribunal Federal. O juiz Alexandre de Moraes, que supervisionou o caso, foi apontado por sanções especialmente duras sob a Lei Global Magnitsky.

Este foi um passo sem precedentes. O governo atacou um juiz da Suprema Corte em um país democrático com sanções que antes eram reservadas para notórios violadores de direitos humanos, como Abdulaziz al-Hawsawi, que estava implicado no assassinato em 2018 de um colaborador do Washington Post, Jamal Khashoggi, e Chen Quanguo, um arquiteto da perseguição do governo chinês à sua minoria uigur. Após o veredicto de Bolsonaro na quinta-feira, o secretário de Estado, Marco Rubio, dobrou a política de Trump (e sua analogia), declarando que os Estados Unidos “responderiam de acordo com essa caça às bruxas”.

Em suma, o governo Trump procurou usar tarifas e sanções para intimidar os brasileiros a subverter seu sistema legal – e sua democracia junto com ele. Com efeito, o governo dos EUA está
punindo os brasileiros por fazerem algo que os americanos deveriam ter feito, mas não conseguiram: responsabilizar um ex-presidente por tentar anular uma eleição.

As democracias contemporâneas enfrentam desafios crescentes de políticos e movimentos iliberais que conquistam o poder nas eleições e depois subvertem a ordem constitucional. Líderes eleitos como Hugo Chávez na Venezuela, Recep Tayyip Erdogan na Turquia, Viktor Orban na Hungria, Nayib Bukele em El Salvador e Kais Saied na Tunísia politizaram as agências governamentais e as implantaram para enfraquecer os oponentes e se entrincheirar no poder.

Uma lição das décadas de 1920 e 1930 – a última vez que as democracias ocidentais enfrentaram tais ameaças internas – é que as forças iliberais nem sempre jogam limpo nas eleições. Eles estão
mais dispostos do que os liberais a usar demagogia, desinformação e violência para ganhar e manter o poder. Como os liberais europeus aprenderam durante esse período, a passividade diante de tais ameaças pode custar caro. As democracias não podem se defender. Eles devem ser defendidos. Mesmo os controles constitucionais mais bem projetados são meros pedaços de papel, a menos que os líderes os exerçam.

Na última década, os Estados Unidos e o Brasil enfrentaram ameaças iliberais. Os paralelos são impressionantes. Ambos os países elegeram presidentes com instintos autoritários que, depois
de perder a reeleição, foram atrás das instituições democráticas.

Trump violou a regra fundamental da democracia quando se recusou a aceitar a derrota nas eleições de 2020 e tentou anular os resultados em uma campanha que culminou na insurreição de 6 de janeiro de 2021.

Bolsonaro, um político de extrema-direita eleito em 2018, pegou emprestado muito do manual de Trump. Atrás nas pesquisas à medida que a eleição de 2022 se aproximava, Bolsonaro começou
a questionar a integridade do processo eleitoral. Ele denunciou repetidamente as autoridades eleitorais e atacou – e tentou eliminar – o sistema de votação eletrônica do Brasil. Ele alegou que a única maneira de perder era por meio de fraude, o que implica que uma vitória da oposição seria ilegítima.

Depois de perder por pouco para Luiz Inácio Lula da Silva, Bolsonaro, previsivelmente, recusou-se a ceder e, em 8 de janeiro de 2023, milhares de seus apoiadores invadiram o Congresso, o
Supremo Tribunal Federal e o palácio presidencial do Brasil. Embora o levante tenha sido paralelo aos eventos de 6 de janeiro, o ataque de Bolsonaro à democracia foi além do de Trump. Com base no histórico de envolvimento militar do Brasil na política, Bolsonaro, um ex-capitão do exército, cultivou uma aliança com elementos das forças armadas. Na falta de um partido forte ou base legislativa, ele se apoiou nos militares para obter apoio.

Volumosas evidências descobertas pela Polícia Federal indicaram que Bolsonaro e alguns de seus aliados militares conspiraram para derrubar a eleição e bloquear a posse de Lula. A conspiração
parece ter incluído planos para assassinar Lula, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin e o ministro Moraes. Felizmente, o comando do exército, sob pressão do governo Biden, recusou-se a concordar com a tentativa de golpe.

Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, então, os presidentes eleitos atacaram as instituições democráticas, buscando se manter no poder após perderem a reeleição. Ambas as tomadas de poder falharam – inicialmente.

Mas é aí que as duas histórias divergem. Os americanos fizeram muito pouco para proteger sua democracia do líder que a atacou. Os alardeados controles constitucionais do país não conseguiram responsabilizar Trump por sua tentativa de anular a eleição de 2020.

Embora a Câmara dos Deputados tenha votado pelo impeachment de Trump em janeiro de 2021, o Senado, que poderia tê-lo condenado e impedido de concorrer à presidência novamente, votou por absolvê-lo. O Departamento de Justiça demorou a processar Trump por seu papel no fomento da insurreição de 6 de janeiro, esperando quase dois anos antes de nomear um procurador especial. Trump foi indiciado em agosto de 2023, mas a Suprema Corte, agindo sem senso de urgência, permitiu que o caso fosse adiado. Em julho de 2024, o tribunal decidiu que os presidentes gozam de ampla imunidade, inviabilizando o caso do governo contra Trump. O Partido Republicano indicou Trump para concorrer à reeleição em 2024, apesar de seu comportamento abertamente autoritário. Quando ele ganhou a eleição, os casos federais contra ele foram arquivados.

Essas falhas institucionais custaram caro. O segundo governo Trump tem sido abertamente autoritário, armando agências governamentais e implantando-as para punir críticos, ameaçar rivais e intimidar o setor privado, a mídia, escritórios de advocacia, universidades e grupos da sociedade civil. Rotineiramente contornou a lei e às vezes desafiou a Constituição. Menos de nove
meses após o início da segunda presidência de Trump, os Estados Unidos já cruzaram a linha do autoritarismo competitivo.

O Brasil seguiu um caminho diferente. Tendo vivido sob ditadura militar, os funcionários públicos brasileiros perceberam uma ameaça à democracia desde o início da presidência de Bolsonaro.
Muitos juízes e líderes do Congresso viram a necessidade de defender energicamente as instituições democráticas de seu país. Como o juiz Moraes disse a um de nós: “Percebemos que
poderíamos ser Churchill ou Chamberlain. Eu não queria ser Chamberlain”.

Vendo-se como um baluarte contra o autoritarismo de Bolsonaro, os juízes brasileiros reagiram com força. Quando surgiram evidências de que a campanha de Bolsonaro havia feito uso generalizado de desinformação durante a eleição de 2018, o tribunal lançou o que ficou conhecido como Inquérito de Notícias Falsas, no qual procurou agressivamente reprimir o que os juízes consideravam uma desinformação perigosa. Moraes, que se tornou presidente do Tribunal Superior Eleitoral (que é administrado pelo Supremo Tribunal Federal) em 2022, liderou o inquérito. Sob Moraes, o tribunal suspendeu as contas de mídia social de ativistas que descobriu terem se envolvido em atividades on-line antidemocráticas, ordenou a remoção de alguns conteúdos online que considerou ameaçadores à democracia, revistou as casas de empresários pró-Bolsonaro que supostamente apoiaram um golpe e até prendeu um congressista pró-Bolsonaro que pediu ditadura e a dissolução do tribunal. (Ele foi libertado depois de nove meses.)
Essas medidas foram controversas no Brasil e certamente estão em desacordo com a tradição libertária dos Estados Unidos, mas foram amplamente consistentes com a forma como a Alemanha e outras democracias europeias regulam o discurso antidemocrático.

No dia da eleição, o Tribunal Superior Eleitoral tomou várias medidas para garantir a integridade da votação, incluindo ordenar o desmantelamento de postos de controle ilegais estabelecidos pela
polícia pró-Bolsonaro e anunciar os resultados imediatamente após a conclusão da contagem dos votos, para que Bolsonaro não tivesse tempo de contestá-los. Crucialmente, em outro afastamento
marcante do que aconteceu nos Estados Unidos, proeminentes políticos pró-Bolsonaro, incluindo os principais líderes legislativos e governadores de direita, reconheceram prontamente a vitória de Lula.

Depois que os eventos de 8 de janeiro de 2023 deixaram claro que Bolsonaro representava uma ameaça à democracia, os tribunais brasileiros agiram agressivamente para responsabilizá-lo – e
impedir seu retorno ao poder. Em junho de 2023, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu Bolsonaro de ocupar cargos públicos por oito anos, fechando a porta para uma candidatura presidencial em 2026.

Em fevereiro de 2025, Bolsonaro foi indiciado por conspiração golpista, dando início ao julgamento que levou à condenação de quinta-feira.

Embora os apoiadores de Bolsonaro tenham saído às ruas para protestar contra sua acusação, a maioria dos políticos conservadores do Brasil aceitou amplamente esse processo. Embora muitos políticos conservadores tenham criticado o que consideram um exagero judicial e alguns deles tenham endossado propostas de impeachment de juízes do Supremo Tribunal Federal ou anistia a Bolsonaro e aos manifestantes presos em 8 de janeiro, o Congresso dominado pelos conservadores visivelmente falhou em seguir essas medidas. De fato, a maioria dos políticos de direita parece satisfeita em ver Bolsonaro afastado em 2026. Isso permitiria que eles se unissem a um porta-estandarte mais convencional (provavelmente um governador de direita) que, por
mais conservador que fosse, provavelmente seguiria as regras do jogo democrático.

Ao contrário dos Estados Unidos, então, as instituições do Brasil agiram vigorosamente e, até agora, com eficácia, para responsabilizar um ex-presidente por tentar derrubar uma eleição. É
precisamente a eficácia das instituições brasileiras que colocou o país na mira do governo Trump. Tendo ficado sem opções no Brasil, Bolsonaro recorreu a Trump. O filho de Bolsonaro, Eduardo,
fez lobby na Casa Branca por meses, buscando a intervenção dos EUA em nome de seu pai. Trump, que disse que o caso de Bolsonaro se parecia “muito” com o que “eles tentaram fazer
comigo”, foi persuadido.

Na tentativa de intimidar as autoridades brasileiras para que deixem Bolsonaro escapar da justiça, o governo Trump está abandonando quase quatro décadas de política dos EUA em relação à América Latina. Após o fim da Guerra Fria, os governos dos EUA foram bastante consistentes em sua defesa da democracia na América Latina. Os esforços do governo Biden para bloquear a tentativa de golpe de Bolsonaro foram uma manifestação clara dessa política. Agora, em um movimento que evoca algumas das intervenções mais antidemocráticas da Guerra Fria nos Estados Unidos, os Estados Unidos estão tentando subverter uma das democracias mais importantes da América Latina.

Com todas as suas falhas, a democracia brasileira é hoje mais saudável do que a dos Estados Unidos. Profundamente conscientes do passado autoritário de seu país, as autoridades judiciais e políticas do Brasil não consideravam a democracia garantida. Seus colegas americanos, por outro lado, falharam no trabalho. Em vez de minar o esforço do Brasil para defender sua democracia, os americanos deveriam aprender com isso.

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Filipe Campante é professor de economia na Johns Hopkins;
Steven Levitsky é professor de governo em Harvard e autor, com
Daniel Ziblatt, de “Tirania da Minoria”