O cozido de mamãe

Por Edu Goldenberg

Comecei o texto da semana passada assim: “Eu, ainda meninote, já tinha idéia do privilégio que era ser filho de quem eu era – e aqui, hoje, especial e especificamente, falo de mamãe.”

Em nome da verdade e da precisão, essa idéia do privilégio era também por conta do cenário da minha infância, da parentalha, da minha bisavó e de sua irmã, de meus avós maternos, dos inúmeros tios e tias, uma penca de primos, uma família relativamente grande que implodiu, eis a verdade, com a morte da matriarca – minha bisavó.

E ainda havia os amigos, as amigas, seus pais e seus filhos, e aqui me lembro especialmente da Lys, amiga de mamãe, de Eduardo (seu marido), e de dona Lucrécia (sua sogra).

Até a morte da minha bisavó, em dezembro de 1981 (ou teria sido 1982?, a data me escapa), não havia final de semana sem algum furdunço que, evidentemente, unia bebida e comida sempre muito fartas. E sempre com a parentalha toda reunida.

Alguns desses furdunços, com relativa freqüência, aconteciam na casa da dona Lucrécia, portuguesa como o nome denuncia. A casa ficava em Santa Teresa e era sempre palco de almoços inacreditáveis, de tão fartos.

Pouco me lembro (com detalhes) desses almoços, mas me é viva a memória de muita comida, muita bebida, muita gente sempre em torno da mesa.

E por que lhes falo de dona Lucrécia?

Porque domingo estive na casa de meus pais, no Alto da Boa Vista, para buscar Leonel pela manhã. O piá dormira com os avós no sábado para que pudéssemos (fui com Pedro) assistir ao mais novo show da Maria Bethânia (podendo, não percam).

E chegando na mamãe – que receberia uma prima, Soninha, para almoçar – deparei-me com essa pintura: ela estava fazendo cozido para o almoço e quero emendar dizendo que ninguém faz um cozido como o de minha mãe.

Mal comecei a rasgar meus elogios e ela mandou, de voleio:

— Sabe com quem aprendi a fazer cozido?

— Com a dona Lucrécia! – eu respondi num sem-pulo.

— Isso mesmo!

E quando ela disse isso mesmo eu fui arremessado para Santa Teresa imediatamente (onde estou, na foto abaixo, ao lado de minha bisavó e de Fernando e Cristiano, que não mais me dirigem a palavra – o primeiro há muitos anos, o último, mais recentemente).

É a única foto que tenho tirada justamente na casa da dona Lucrécia.

E lembrei que é daí, é desse tempo (a foto é de 1977), é dessa época, foi nesse tempo e nessa época que plantou-se em mim a paixão pela cozinha, por comida e bebida, por reuniões e festas, por furdunços que hoje se realizam quando faço a Feijoada da Apuração, o Barreado de Morretes, tantos outros encontros em torno da mesa.

Não me foi possível ficar para o almoço mas está marcado: em outubro, quando Virgínia (conto aqui uma historinha com ela, mãe de Pedro) e Valma estiverem no Rio, mamãe fará seu cozido para recebê-las (com Pedro) em casa.

Eu já estou contando os dias porque, creiam em mim, não há nada no mundo como o cozido de mamãe (com a licença da dona Lucrécia).

Volto às minhas memórias, em breve, mais uma vez.

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Sou fã inveterado de textos confessionais, reveladores das delícias da vida cotidiana brasileira, rica em detalhes que só as múltiplas diferenças regionais abarcam e unificam. O texto acima, do grande Edu Goldenberg, tem essa linhagem nobre, da poesia em forma de prosa derramada. Deliciem-se.

Democracia à beira do abismo (e o povo achando que é piscina)

Por Renato R. Valle

Bolsonaro pode até ter saído de cena, mas o bolsonarismo, esse monstrengo que ele batizou sem jamais ter mérito sequer para dar nome ao capiroto, continua vivo, treinando pesado e afiando as garras para 2026. O mito pode ter caído, mas o delírio coletivo que o sustentava ainda respira, pronto para reaparecer com outro rosto, outro discurso, mas o mesmo vírus.

E não nos enganemos: em 2026 trocaremos 2/3 do Senado, e acreditar que basta derrotar Tarcísio é de uma ingenuidade letal. O Executivo pode até ser a joia da coroa, mas sem um Congresso funcional governar vira uma experiência masoquista. O fascismo freestyle tropical não precisa de um presidente para prosperar; basta um Congresso tomado por soldadinhos do caos e pronto: Brasília vira quartel-general do autoritarismo.

Esse fanatismo de extrema-direita, lembremos, não é exclusividade nacional. É uma onda global que avança pelo Ocidente:

• Nos Estados Unidos, Donald Trump segue ditando as regras no Partido Republicano, e seu retorno ao poder mostrou o fôlego de um populismo rancoroso.

• Na Hungria, Viktor Orbán governa sob o rótulo de “democracia iliberal”, desmontando, passo a passo, qualquer freio institucional.

• Na Itália, Giorgia Meloni lidera o governo mais à direita desde Mussolini  (e isso não é metáfora literária).

• Na Polônia, o conservadorismo religioso e o ultranacionalismo continuam garantindo vitórias à direita radical.

• Na França, Marine Le Pen chegou perigosamente perto do Eliseu e segue crescendo.

• Na Alemanha, a AfD (Alternativa para a Alemanha) já ocupa espaço sólido no Parlamento, mesmo sendo herdeira ideológica dos piores espectros do século XX.

• Na Espanha, o Vox, com seu saudosismo franquista, influencia e corrói o jogo democrático.

• Na Áustria, partidos nacionalistas seguem respirando forte, com pautas xenófobas e antieuropeístas.

Ou seja: o fenômeno não é local, é mundial. E ignorá-lo é o mesmo que entregar a chave do templo ao incendiário.

E aqui, a história ensina: em 1964, foi o Congresso Nacional que abriu caminho para o golpe militar. Sob a alegação farsesca de que o presidente João Goulart havia abandonado o país, quando na verdade estava no Rio Grande do Sul tentando articular resistência, o Congresso declarou vaga a presidência da República em 2 de abril de 1964. Esse gesto, ilegal e imoral, rasgou a Constituição e pavimentou a ditadura. A lição é clara: basta um Congresso complacente para afundar uma democracia.

E não é preciso ir tão longe: basta um Congresso majoritariamente bolsonarista para anistiar Bolsonaro de todos os seus crimes. Ainda que o presidente da República vete, o veto pode ser derrubado por maioria simples. Ainda que uma ação direta de inconstitucionalidade seja ajuizada, o julgamento demoraria tempo suficiente para que o próximo presidente nomeie três ministros do STF: Rosa Weber (aposentada em 2023, já substituída por Flávio Dino), Ricardo Lewandowski (aposentado em 2023, substituído por Cristiano Zanin) e os próximos na fila, Cármen Lúcia (2029), Gilmar Mendes (2030) e outros ministros que atingirão a idade-limite. O tabuleiro da democracia pode ser redesenhado em silêncio, cadeira por cadeira.

Bolsonaro passou? Ótimo, soltem fogos.

Mas o perigo não era o personagem, era o vírus. Um vírus que, se não formos vigilantes, pode ocupar cada cadeira acolchoada deste Congresso e até saltar para o Executivo.

Por isso, ecoo as palavras do grande Ulysses Guimarães, conhecedor profundo do terreno:

“Está achando ruim esse Congresso? Então espere o próximo: será pior.”

Que este manifesto sirva como alerta: não é hora de relaxar, é hora de vigiar.

(E nem falei que esse tipo de preocupação nos tira o foco de problemas como a discussão ética sobre as redes e IA, questões ambientais e outras questões de primeira necessidade para uma coexistência pacífica e para que haja um futuro).

Ousadia que pode dar certo

POR GERSON NOGUEIRA

Causou surpresa e gerou rebuliço a contratação de Marcos Braz para ocupar a diretoria executiva de futebol do Remo, função remunerada dentro da gestão. Transcorridos três meses de seu desembarque no Evandro Almeida, pode-se dizer que o saldo é positivo, tanto no aspecto de retorno financeiro quanto na questão de ordem técnica.

Há um terceiro ponto satisfatório e ainda mais valioso na presença de Braz no futebol azulino: o reforço que trouxe à imagem institucional do clube no cenário nacional. Um exemplo claro é a facilidade com que o Remo passou a lidar com as transações internacionais, que normalmente emperravam e traziam atrasos prejudiciais ao time.

A expertise de Braz tem contribuído para viabilizar contratações de jogadores a que o Remo normalmente não teria acesso. A destreza para fechar negócios tem a ver com os anos de atuação em defesa do Flamengo, tratando com grandes clubes, empresários e instituições do futebol internacional. Não por acaso, pela primeira vez, o Remo tem lucrado com a negociação de jogadores para outros países.

Os que torceram o nariz, prevendo um fracasso retumbante da ousada aquisição do Remo, terão que rever as críticas iniciais. Algumas miravam o acordo financeiro com o dirigente, outras apontavam o risco de Marcos Braz não dar ao Remo a necessária prioridade e havia quem duvidasse que ele fosse acatar as diretrizes administrativas do clube.

Há algumas semanas, em meio à discussão sobre a permanência ou não do técnico Antônio Oliveira, Braz foi posto no olho do furacão, questionado e cobrado pela torcida por supostamente blindar o treinador. Verdade ou não, o fato é que uma demissão quase certa se transformou em nova chance a Oliveira, dependendo dos resultados de campo.

Passado o momento de fúria sanguinária da torcida contra o técnico, o cenário mudou bastante, principalmente depois de nova vitória obtida fora de casa – contra o Amazonas, em Manaus. A proximidade com o G4 é outro ponto a justificar a manutenção da comissão técnica.

A experiência profissional é sempre virtude a ser valorizada, principalmente no universo do futebol, afeito a invenções e picaretagens de toda ordem. O questionamento sobre a suposta insubmissão à diretoria gerou até sessão de esclarecimentos no Condel azulino. A simples suspeita não resiste ao desdobramento do raciocínio: pecado seria ter um executivo sem voz e/ou iniciativa. Dele se espera que tenha atitudes e ousadias, sim.   

Os planos de acesso seguem vivos no Remo. Mas, mesmo que não se concretizem, a ideia de contratar um super executivo deve ser aplaudida. Pensar com grandeza é atributo dos grandes clubes. Para chegar ao banquete da Série A, buscou-se os caminhos adequados, tanto nas contratações (em sua maioria) quanto no encarregado de cuidar do futebol. (Foto: Samara Miranda/Ascom CR)

Depois de recaída infeliz, Papão acerta a mão

Carlos Frontini foi o escolhido no início de maio para substituir Felipe Albuquerque, executivo que havia voltado ao PSC no começo do ano após uma turbulenta passagem inicial pelo clube. O ex-centroavante, de origem argentina, surgiu no mercado após bons trabalhos nos mercados goiano e catarinense, principalmente.

A rápida passagem pelo futebol paraense, jogando pelo rival em 2010, foi apenas mais um detalhe a enriquecer o currículo analisado pelos dirigentes do PSC. Estava claro que Frontini sabia onde estava se metendo, pois já havia convivido com a rivalidade e o ambiente das torcidas em Belém.

Em comparação com Albuquerque, ele chegou sem fazer muito barulho e nem despertar rejeição. Melhor ainda: acertou bastante na primeira ida ao mercado em busca de reforços na penúltima janela de transferências. Contratou 10 jogadores e pelo menos três (Maurício Garcez, Diogo Oliveira e Thalysson) foram aprovados de imediato.

Outros três deixaram boa impressão – Thiago Heleno, Denner e Vinni Faria. No total, alcançou um percentual de acerto em torno de 50%, algo raro no Papão e no próprio circuito da Série B. É reconhecidamente difícil conseguir contratações que efetivamente encaixem no time.

Apesar de um executivo ter outras responsabilidades, observadas pelo próprio Frontini na fatídica noite da demissão de Claudinei Oliveira, a tarefa de pesquisar, mensurar e contratar atletas é possivelmente a mais visível aos olhos do torcedor.

Executivos são avaliados pelo tamanho de seus erros e acertos. Felipe Albuquerque não deixou saudades, responsabilizado diretamente pela fracassada primeira leva de jogadores trazidos pelo PSC no início da temporada.

Apesar dos percalços enfrentados na competição, sob ameaça direta de rebaixamento, Frontini tem sido poupado da ira santa da torcida. Prova de competência na prospecção de atletas, inclusive na última janela de transferências, e uma singular capacidade de administração de crise.   

(Coluna publicada na edição do Bola desta sexta-feira, 12)