Quem quer ser um bilionário?

Nunca foi tão fácil

Por Tatiana Dias, no Intercept_Brasil

Não sei vocês, mas eu gastei bons minutos vendo as fotos dos bilionários das big tech alinhados, em traje de gala, na posse de Donald Trump. Naquela foto, mesmo que não dê para enxergar, estão bilhões e bilhões de dólares (trilhões?), assim como as vidas de bilhões e bilhões de pessoas pelo mundo. Olhei para seus rostos e sorrisos cínicos. São os sorrisos de quem está arrastando a humanidade para o colapso.

Um relatório muito oportuno da Oxfam, também lançado nesta semana, traz muitas evidências sobre o que há por trás daqueles rostos felizes. Nunca foi tão fácil ser um bilionário – para quem já chegou lá. Quanto pior o mundo, melhor para os poucos super-ricos que sentam em cima da população mundial. Foi assim na pandemia e está acontecendo de novo: de um ano para cá, surgiram 204 novos bilionários no mundo.

E eles estão enriquecendo três vezes mais rápido do que em 2023: US$ 2 milhões por dia, em média. Nesse ritmo, o planeta caminha para ter não apenas um, mas cinco trilionários em uma década. Enquanto isso, destaca o relatório, o número de pessoas que vivem na pobreza pelo mundo praticamente não mudou.

O relatório também aborda o quanto essa elite financeira é, também, herdeira do colonialismo, e ajuda a perpetuar relações de poder e desigualdade entre os países. Segundo o relatório, o 1% mais rico do Norte Global extraiu US$ 30 milhões por hora do Sul Global em 2023.

Embora essa elite financeira venda a ideia de que qualquer um pode chegar lá e o que vale é a meritocracia – um conceito repetido à exaustão por Trump –, a verdade é que o dinheiro dessas pessoas vem, em sua maioria, de heranças, corrupção, monopólios ou conexões com a realeza. Nada de novo no front.

O colonialismo digital – que se materializa na imagem dos bilionários de tecnologia alinhados a Trump – é um dos pilares dessa nova exploração colonial, aponta a Oxfam. “Ao controlar o ecossistema digital, as grandes empresas de tecnologia controlam as experiências mediadas por computador, o que lhes dá poder direto sobre os domínios político, econômico e cultural da vida”, diz o texto.

Apesar de defenderem a liberdade e o livre mercado, a verdade é que essa indústria é marcada por monopólios – basta lembrar que o Google domina 90% do setor de buscas – e vive de transformar a vida das pessoas em dinheiro, com múltiplas violações de privacidade e outros direitos no caminho. “O setor de Big Tech é fundamental para novas formas de colonialismo econômico e extrema desigualdade no século 21″, diz a Oxfam.

De forma cruel, essas várias formas de exploração dos mais pobres acontecem ao mesmo tempo em que a indústria e seus CEOs prometem e materializam promessas de enriquecimento e ascensão social por meio da tecnologia. O Brasil já utiliza IA generativa mais do que a média mundial. O presidente do Google no Brasil, Fábio Coelho, diz que essa adesão dócil do brasileiro à IA é “inspiradora”. Eu acho extremamente preocupante.

Enquanto entubam as últimas novidades buscando extrair ao máximo de populações marcadas pela pobreza, informalidade e escolaridade baixa em países como o Brasil, essas empresas também minam qualquer possibilidade de resistência ou de imaginação de realidades alternativas.

Presos nas telas 24/7, ficamos anestesiados. Temos sempre a sensação que falta tempo, enquanto o mundo social se fragmenta, como descreve o filósofo Jonathan Frazer no excelente e deprimente livro “Terra Arrasada” (editora Ubu).

“É notável que, em um momento de perigos sem precedentes para o futuro do planeta e para a própria sobrevivência de humanos e animais, tantas pessoas optem por se confinar voluntariamente em armários digitais dissecados e concebidos por um punhado de corporações sociocidas”, ele escreve. E sentencia: “rotas para um mundo diferente não serão encontradas nas ferramentas de busca da internet”.

A juventude não tem espaço para criar e imaginar um outro futuro: no lugar disso, as possibilidades são a aceleração do sistema em curso. “A prioridade é sabotar a possibilidade de uma juventude potencialmente rebelde e, a fim de ocultar um futuro sem empregos em sem planeta, aposta-se na ficção tétrica de uma geração que aspira virar ‘influencer’, fundadora de startups, ou que de algum modo se alinha com os valores embotados do empreendedorismo”.

Com a monetização de absolutamente tudo, as redes sociais – ou melhor, as empresas dos amigos do Trump – prometem a possibilidade de riqueza, materializada pelos homens bem-sucedidos que vendem o discurso meritocrático.

“Mas a realidade da internet está em sua eficiência em canalizar os minúsculos ativos de muitos em direção à carteira de investimentos de uma elite de poucos”, sintetiza Frazen, bem antes que os bilionários hi-tech saíssem do armário abraçando o sociopata que chegou à Casa Branca.

A crise não é sobre as big tech; elas materializam a crise do capitalismo contemporâneo. “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. A célebre frase que intitula a edição brasileira de “Realismo Capitalista” (Autonomia Literária), do filósofo Mark Fisher, ajuda a explicar.

Fisher explica como o capitalismo se introjetou nos nossos inconscientes, na cultura, no modo de pensar e ver o mundo, de tal forma que se torna uma realidade quase indiscutível. Nós não construímos alternativas porque nem sequer conseguimos imaginá-las. O capitalismo engole tudo.

A maneira como o discurso ambiental foi apropriado por empresas que violam direitos indígenas para ganharem dinheiro vendendo créditos de carbono é um exemplo. Permanecer no X depois da saudação nazista de Elon Musk porque, bem, não consegue sair ou todo mundo está lá, também. O realismo capitalista faz com que fiquemos com uma sensação de derrota, como se não houvesse escapatória.

Transposto para a tecnologia, esse realismo de plataforma, como chamou o artista e pesquisador Ben Grosser, funciona mais ou menos da mesma forma. É como se não houvesse saída. O sistema é eficiente para sufocar as possibilidades alternativas, de modo que só floresçam as iniciativas que têm como fim atender às exigências do capital.

Seremos cúmplices desses homens?, perguntou nossa colunista Fabiana Moraes. Muitas pessoas não vêem saída. Não há nada de errado com elas. O sistema foi feito para que isso acontecesse. Como sair disso, então? Grosser propõe alternativas que tenham como princípio valores públicos, com escala menor e mais lentos.

Parece inviável, utópico, ingênuo? Talvez você tenha sido picado pela mosquinha do realismo capitalista. Nada de errado com você: todos nós fomos.

Normalizar o enriquecimento brutal daqueles poucos, em nome da destruição do mundo, das nossas relações e da nossa saúde mental, é que deveria ser o absurdo. Agora que os CEOs saíram do armário, fica mais fácil visualizar a quem suas plataformas estavam servindo.

O relatório da Oxfam mostra que a estratégia está dando muito certo.

Por que devemos chamá-lo de fascista

Estratégia de Trump é desmantelar a democracia, perseguir os estrangeiros, insuflar o nacionalismo. Como Hitler e Mussolini

Por Eugênio Bucci (*)

Donald Trump é fascista? Há quem diga que não devemos qualificá-lo dessa forma. A cientista política Wendy Brown, por exemplo, acha que o autoritarismo que tem crescido no nosso tempo é de outra natureza. Em 2022, numa entrevista para o site Nueva Sociedad, ela apontou distinções entre a ditadura de Benito Mussolini e os regimes atuais de extrema direita. Segundo ela, as autocracias do século 21 “nascem da racionalidade neoliberal” e se diferenciam do fascismo clássico por serem “autoritárias no âmbito político e libertárias nos assuntos da vida civil e pessoal”.
Eu não discordo de Wendy Brown. Existem autocratas na atualidade que não ligam a mínima para temas como casamento gay. Se alguns são machistas furibundos, e Donald Trump é um deles, outros não adotam o moralismo misógino do velho Duce. Existem até líderes de extrema direita que são lésbicas declaradas.
As dessemelhanças não param aí. O fascismo de cem anos atrás era mais estatizante que o autoritarismo ultraliberal que aí está. Era mais “trabalhista” também. Mussolini posava de defensor do operariado e, na Alemanha, o partido de Adolf Hitler até tinha “socialista” no nome: Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Bem sabemos que ambos dizimaram os sindicalistas de todos os tipos, mas, ao menos no início, fingiam representar os pobres. Não por acaso, Getúlio Vargas, vulgo “pai dos pobres”, foi buscar na Carta del Lavoro da Itália fascista a inspiração para a sua Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Ora, Trump não quer nada com os sindicatos, promove unicamente a causa capitalista e convence as massas: hoje, os serviçais mais espoliados se definem como “empreendedores”, não mais como trabalhadores. Aparentemente, portanto, não teria nada em comum com Hitler ou Mussolini.
Se formos além das aparências, porém, veremos que Trump tem um pé, ou mesmo dois, no fascismo mais descarado. Sua estratégia é desmantelar a democracia para destroçar os direitos sociais, abandonar os mais frágeis no deserto, perseguir os estrangeiros, insuflar o nacionalismo e autorizar toda forma de acumulação de capital em seus territórios. Como Hitler e Mussolini.
Em 1995, o pensador italiano Umberto Eco escreveu para a revista The New York Review of Books um ensaio intitulado Ur-Fascism. Eco não tinha em mente o fascismo histórico, mas um regime totalitário que seria atemporal, o “fascismo eterno”, que ele descreveu em 14 traços característicos.O primeiro desses traços é o elogio de um passado glorioso da pátria, um passado inventado. Trump, com seu Make America Great Again, ou, simplesmente, Maga, cumpre o figurino. O segundo traço é a recusa da modernidade e do iluminismo, com forte repúdio ao intelectualismo. Vêm em seguida o irracionalismo, abastecido pelas teorias da conspiração, o discurso do “nós” contra “eles”, o racismo (ou o ódio aos imigrantes), o apelo aos ressentimentos das classes médias frustradas, o nacionalismo exacerbado, a exploração do sentimento de humilhação e a construção de um clima de guerra permanente. O décimo traço do “fascismo eterno” consiste no desprezo pelos mais fracos, seguido pela educação para o heroísmo: todo mundo deve querer morrer pelo regime. A fi-xação em objetos fálicos, como armas, é outra característica, bem própria do “machismo” (esse é o vocábulo usado por Umberto Eco). Depois, temos o populismo exacerbado. O traço de número 14 é o discurso tosco, primário, que repele raciocínios complexos e a razão crítica.
Deu para reconhecer o trumpismo? Ou você quer mais? Outro estudioso que pode ajudar é Jason Stanley. No livro Como Funciona o Fascismo, ele enumera características essenciais (algumas coincidem com as de Umberto Eco): o passado mítico, a propaganda como fonte da verdade, o anti-intelectualismo, o senso de irrealidade, a predileção por soluções hierarquizantes, a cultura de vitimização (sobretudo do líder), o apelo constante à lei e à ordem, a ansiedade sexual (desejos reprimidos à flor das mucosas), a obsessão pela pátria (“America first”, “Brasil acima de tudo” ou “Deutschland über alles”) e a desarticulação da união e do bem-estar público. Os fascistas geram instabilidade, produzem tumultos e arruaças (como o 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos e o 8 de janeiro de 2023 no Brasil), enquanto prometem disciplinar a sociedade por meio da autoridade violenta.
Num artigo de 1951 (A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista), o filósofo Theodor Adorno mostrou que a comunicação do fascismo “tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos”. É o que o trumpismo fez e faz com as big techs.
Sim, é preciso chamar Trump de fascista. Ele restaura e impulsiona o fascismo. Numa das solenidades de sua posse, na segunda-feira, Elon Musk subiu ao palco e fez uma saudação nazista. Duas vezes. Foi um “Heil, Trump” aloprado. Na véspera, num comício informal em Washington, Steve Bannon fez o mes-mo gesto para cumprimentar os representantes da AfD alemã. Duas vezes. Valei-nos, democracia.

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JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP