Não entrarei pra História. Melhor assim. “Tempo e Dinheiro”, final
Por André Forastieri
Você ouviu falar do campeão de Wimbledon que recebeu o Oscar de diretor? E daquela prima bailarina do Bolshoi que levou o Nobel de Química? Nem eu. É impossível atingir este nível de excelência em dois campos completamente diferentes. Já é dificílimo você ser razoavelmente bom em dois campos razoavelmente correlatos.
Aliás, já é uma obra a gente conseguir ser mediano. Tanto que exatamente metade de nós está abaixo da média, né?Um dos filmes mais bizarros dos anos 80, quando filme bizarro era o que mais pululava nas locadoras, já era exótico a partir do nome. É “As Aventuras de Buckaroo Banzai Através da Oitava Dimensão”, de 1984.
É uma homenagem desconjuntada aos romances pulp dos anos 30, que precederam a explosão dos gibis. Com heróis como o fortão supercrânio Doc Savage, enfrentando vilões mefistofélicos e monstros gosmentos em cenários exóticos.
O ator que faz Buckaroo é Peter Weller, anos depois famoso como Robocop. Seu personagem é simultaneamente um neurocirurgião estiloso, piloto de provas, físico de partículas, cantor e guitarrista em uma banda de rock e líder de um grupo de aventureiros que enfrenta invasores alienígenas.
O filme me inspirou a criar a “Síndrome de Buckaroo Banzai”, que diagnostico com frequência crescente.
O principal sintoma é uma crença completamente descabida na própria capacidade de dedicar-se a muitas atividades diferentes e mandar bem em todas. É uma fantasia prepotente e perigosa. É martelada repetidamente na gente, “you can have it all”. Mas tudo é muita coisa.

Buckaroo: só assistindo para acreditar
O professor popstar Scott Galloway popularizou a teoria das “Dez Mil Horas”. Para você mudar seu status de zero à esquerda para realmente bom em algo, diz Scott, você precisa deste tempo de dedicação. Quer lutar jeet kune do como Bruce Lee? Treine dez mil horas. Quer pilotar como Lewis Hamilton? Dez mil horas.
Queres ser ótimo em ganhar dinheiro? Limpa a mesa, tira o resto da frente, faça o que tiver que fazer pra ganhar dinheiro e fôda-se o resto. Dez mil horas e estás pronto pra Faria Lima.
Você entendeu. Não é “dez mil”. Pode ser oito mil ou oitenta mil, depende de quão rarefeita é sua meta e aguerrida a concorrência. Dedicação prolongada e caprichada não é garantia. Mas suando a camisa, se não chegares lá, certamente chegarás mais perto. Onde quer que seja “lá”.
Quando você aloca essas dez mil horas na sua agenda diária, entende a demência da proposta. Digamos que você reserve duas horas por dia para o forno e fogão, porque sua meta é cozinhar tão bem quanto a Helena Rizzo.
Vai precisar de cinco mil dias. Quase 17 anos.
Esta é a razão porque centenas de garotinhas russas começam a ralar com cinco anos. Ensaiam manhã, tarde e noite, enfrentando peneira após peneira, pela oportunidade de estar no palco do Bolshoi.
Galloway simplifica mas não mente. Ser um dos melhores em qualquer coisa exige esforço paca (além de ter nascido premiado na loteria da vida e um belo empurrãozinho do acaso. Se você é baixinho, jamais será astro da NBA; se altão, não vencerás corridas no Jockey Clube).
Para se tornar ótimo, o ser humano precisa otimizar seu tempo. Planejar minuciosamente e executar nos trinques o planejado. Ter um único objetivo e persegui-lo incessantemente, acima de todos os outros.
Treinar, treinar; estudar, estudar; repetir, repetir; melhorar, melhorar, melhorar.
Scott passa por cima de um detalhe crucial. Se você, minha jovem, investir dez mil horas em uma única atividade na busca da excelência, duas coisas tristes vão acontecer.
Você chegará à idade adulta sem ter curtido sua infância, adolescência, juventude. Fases que se foram, experiências e convivências que não podem ser repostas.
E você provavelmente será excelente em uma área e medíocre em todas as outras. Simplesmente porque não dedicou horas a elas. O tempo não tem dó da gente. Como usas determina o que és. Ser é fazer. Não há escapatória, tic-toc, tic-toc.

Galloway posa gatão nos lençóis
É uma fantasia: o CEO de sucesso que também é triatleta, leitor voraz, pai dedicado, talentoso músico de fim-de-semana, criativo na cama, socialmente consciente, pele vinte anos mais jovem etc. Sempre com um comentário pertinente pra fazer sobre literalmente tudo.
Aliás, quem sabe muito de um tema frequentemente se convence que é expert em todos os assuntos sobre o céu. Todos conhecemos aquela pessoa que é uma sumidade da sua área e fala um monte de groselha sobre assuntos que não manja picas.
A gente encontra estes super homens e mulheres toda hora na mídia. E mesmo sendo ideais inatingíveis, muita gente se esfalfa tentando alcança-los. Se a executiva gata lá conseguiu, porque não eu?
Talvez a síndrome de Buckaroo Banzai esteja crescendo porque a gente carrega esses celulares com apps super eficientes em suas funções específicas, e estamos confundindo nossos devices com nossos cérebros primatas.
O mais provável é que drive insano seja exclusividade de um perfil muito específico de personalidade. O sujeito que sempre quer se superar, que jamais se satisfará com sua vitória mais recente.
Pode ser um perigo para seus relacionamentos, familiares, subalternos. Pode ser mortal. O caso mais espalhafatoso de perfeccionista que implodiu: Michael Jackson. São essas estrelas, campeões e medalhistas que são imortalizados na História. Mas não são só elas e eles que fazem a humanidade evoluir.
Simpatizo com as palavras que o escritor Robert A. Heinlein colocou na boca de sua mais conhecida criação, o sábio Lazarus Long: “o progresso não vem dos que acordam cedo, mas dos homens e mulheres preguiçosos, procurando uma maneira mais fácil de fazer as coisas.”
Adivinhe: não acordo cedo, sou preguiçoso e sempre procuro uma maneira mais fácil de fazer as coisas.
Quem cravar como será o mundo daqui dez anos ou está confuso ou mal informado. Sabemos que será de ficção-científica. Algumas tendências são inexoráveis e surpresas inimagináveis nos aguardam, boas e ruins. Experts em RH e coaches variados profetizam isso e aquilo.
Não faço ideia se em 2035, 2045, 2055 se darão melhor os hiper-dedicados & especializados ou os diletantes & flexíveis. Tecnologia e política podem acelerar a desigualdade ou proporcionar uma sociedade mais igualitária.
A seleção natural costuma premiar com a sobrevivência as espécies onívoras, adaptáveis. Mas o que há de natural no sistema em que vivemos? Fora o fato que é criação nossa, pouco.

Heinlein em seu ambiente natural: com foguetes retrô
Ser ótimo em algo deve ser um prazer inenarrável. Nunca saberei.
Nunca tive determinação suficiente para ser excelente em nada. Não ficarei para a História.
Você talvez também não.
Aceito que sou mezzo capaz em algumas coisas. E mesmo ser meia-boca em meia-dúzia já requer investimento à beça.
Li aos vinte anos e carrego no coração outra lição de Lazarus Long:
“Um ser humano deveria ser capaz de trocar uma fralda, planejar uma invasão, estripar um porco, projetar um prédio, escrever um soneto, manter sua conta bancária equilibrada, construir um muro, tratar um osso fraturado, confortar os moribundos, obedecer ordens, dar ordens, cooperar, atuar sozinho, solucionar equações, analisar um novo problema, espalhar estrume, programar um computador, preparar uma refeição saborosa, lutar com eficiência e morrer galantemente. Especialização é para insetos.”
Não se trata de advogar a mediocridade. Só a variedade, tempero da vida. E a consciência dos nossos limites – inclusive, sim, de tempo e dinheiro.
Dá pra viver assim, aprendendo sem brilhar, sempre aluno, nunca mestre. Entre o hiperfoco e o desencano. Distraindo fácil, brincando nas onze. Estações que se vão, novas paixões chegando arrasadoras.
Sempre de olho em oportunidades fresquinhas, que pintam exigindo conhecimentos que não adquirimos e habilidades que não dominamos.
É hora do show, venham amigos! São só três acordes, sambarylove. Não me tornei rico ou célebre, jamais ganharei medalha de ouro nem Nobel. Imortalidade, me escapaste, mas reconheço: nunca te busquei.




