Temporada de caça às mulheres

Por Kalina Paiva

Sabe aquele ser com serpentes adornando-lhe a cabeça, a Medusa do mito grego? Ela não nasceu daquela forma, foi transformada. Era uma sacerdotisa da confiança da deusa Athena. A jovem foi estuprada pelo deus Poseidon dentro do templo da deusa. Esta, por sua vez, puniu-a pela profanação do seu templo, transformando-a na górgona que atravessou séculos e figura como exemplo arquetípico modelador de personagens lucrativas para a indústria cultural e dos jogos. Desde a criação desse mito, de maneira geral, as artes representam-na como personificação do mal. Não se nasce Medusa, torna-se Medusa. Poseidon segue intacto, deixando seu rastro na natureza.

Sabe aquelas mulheres que foram presas, obrigadas pelo Estado a assinarem confissões mediante tortura, atestando praticarem bruxaria? Jennet Device tinha 9 anos e residia na casa da avó juntamente com sua mãe e irmãos, em 1612, época sob a regência do rei James I, da Inglaterra, que popularizou a caça às bruxas, causando um terror coletivo, fazendo valer uma afirmação de Heinrich Kramer, clérigo católico, disposta no Malleus Maleficarum (1487), livro sobre a bruxaria, popularizado no período: “As mulheres têm tendência natural a se tornarem bruxas”. Um dia, Alison – irmã de Jennet – gritou uma maldição para uma pessoa que não aceitou lhe dar dinheiro. No mesmo instante, o homem sofreu um derrame. Acossada pela sociedade, Alison afirmou ser uma bruxa, acusando membros da própria família. A avó foi presa, morrendo na cela, devido às péssimas condições. Depois de muita vigilância e relatórios registrados pela Igreja, todos foram enforcados, após ouvirem o testemunho de Jennet. Motivo da condenação: prática de feitiços e assassinato. Nesse período, o Estado validou o testemunho de crianças para fazer prevalecer a caçada. O rei James I segue intacto na História, imortalizado na tela barroca King James I of England, pintada pelo artista John de Critz.

Sabe aquela menina de 10 anos de idade, que engravidou em 2020, após ser estuprada pelo tio há quatro anos? Mesmo com a legislação brasileira assegurando-lhe o direito de interromper a gravidez, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória-ES, negou-lhe o procedimento. O segundo hospital, localizado em Recife, procurado pela família, acolheu a menor. No dia, porém, grupos religiosos se reuniram para protestar, ajoelhados em frente à unidade médica. Na contramão do Código Penal Brasileiro que assegura o aborto nesses casos, a Câmara dos Deputados aprovou esta semana, em regime de urgência (23 segundos foi o tempo de votação), o Projeto de Lei 1904/24 (PL-RJ) que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. Na prática, a vítima de estupro pode pegar até 20 anos, enquanto o estuprador pode ser apenado em até 10 anos pelo crime. O Deputado Sóstenes Cavalcanti (PL/RJ), um dos 33 parlamentares proponentes, segue intacto com a segurança privada de sua família, enquanto mulheres (sobretudo, as periféricas) lutam para não serem estupradas. Este homem ainda declarou na mídia a justificativa para a criação do PL: “testar o presidente”.

Fazendo um arremate dessas três situações, ainda que o mito seja uma narrativa simbólica, a história de Medusa nos acompanha como uma sombra. Nos três casos acima, chamo atenção para algo que atravessa séculos: a falta de domínio sobre os nossos corpos e o quanto somos usadas como moedas de barganha nas lutas de cachorros grandes, independente de sistema político e de época.

Não à toa, Virginia Wolf mencionou em Um teto todo seu: “A história da oposição dos homens à emancipação das mulheres talvez seja mais interessante do que a história da própria emancipação”. Para esta coluna, foram escolhidos dois períodos representativos da História que serão comentados a seguir para melhor aclarar o pensamento da escritora inglesa.

Na transição do período medieval para implantação do capitalismo, o controle dos nossos corpos (mais uma vez) foram postos em foco pelo Estado, chancelados pela Igreja, pois, na manutenção desse sistema patriarcal movido pelas estratégias para extinguir possibilidades de emancipação feminina ou adiá-la, criar uma imagem que personificasse o mal, gerasse medo coletivo e garantisse o controle dos corpos que procriam seria bastante útil para manter o status quo. A imagem da bruxa é uma das maiores invenções arquetípicas que o patriarcado forjou na religião e nas práticas sociais com amplo apoio do Estado e da Igreja, fiscalizadora de comportamentos e impositora de padrões. Estima-se que 200 mil mulheres perderam a vida durante a Idade das Trevas, após serem denunciadas por serem irreverentes, independentes, por terem algum poder social.

Sobre a Idade Média, Silvia Federici lançou um novo olhar histórico-filosófico, quando trouxe ponderações a respeito da caça às bruxas como fator decisivo na construção de uma ordem patriarcal em que as capacidades reprodutivas e laborais femininas foram colocadas sob o controle do Estado e transformadas em recursos econômicos. Dentro dessa ótica produtiva, o corpo feminino é um poderoso instrumento de instalação (e posteriormente, de manutenção) do sistema capitalista, por ser visto como uma máquina de reprodução viável para abrandar a crise econômica, social e populacional europeia vitimada por surtos e guerra.

A contribuição da filósofa italiana detalha o modus operandi europeu responsável pela mudança do sistema produtivo, a saber, do Feudalismo até a implantação capitalista, começando pela legislação. Para isso, menciona a lei do cercamento na Inglaterra e suas implicações nas relações sociais – foram séculos para a mudança ocorresse efetivamente. Segundo a teórica, a mulher foi a maior resistência do sistema capitalista iminente, uma vez que era extremamente explorada e atingida negativamente pelas regras, leis e novos paradigmas.

Agora, venha para os dias atuais e analise se mudamos alguma coisa ou se a receita antiga está em modo de preparo full time.

O Brasil está envelhecendo e quem diz isso é o Censo de 2023: cresceu 57,4% o número de idosos em 12 anos. Além disso, as famílias estão cada vez menores. Mulheres que decidem não casar ou ser mãe são duramente criticadas. 

A política neoliberal, indiferente às pautas sociais, deseja arrebanhar eleitores e corpos produtivos sob uma força de trabalho precarizada, doutrinando massivamente dentro dos templos neopentencostais. Antes, o discurso meritocrático e a teologia da prosperidade davam a tônica dentro dos ritos nos templos. Agora, parecem fichinha diante do que está em curso, a teologia do domínio. Nesse sentido, a bancada evangélica no Congresso reúne o poder do Estado e da religião. Essa gente, que avança dominando as comunicações com uma maciça propaganda política de cunho fundamentalista religiosos em nome de Deus, Pátria e Família, agora busca modificar a legislação para vir como rolo compressor sobre tudo que gera vida.

Semanas atrás, buscaram legitimar a destruição massiva das matas nativas e entregar nossas praias à especulação mobiliária. Agora, procuram controlar os corpos das mulheres. Nossos corpos geram vida e, além disso, somos uma peça fundamental na sociedade, ao realizarmos o trabalho doméstico não remunerado. Há que se entender que estamos dentro de um grande projeto rentável à elite do atraso que, ocupando essa bancada, encarrega-se de retirar direitos e precarizar nossa existência. São semideuses que definem quem gera, quem vive e quem morre, usando a política do fundamentalismo religioso para isso.

Essa mesma bancada evangélica que acusa o assistencialismo das bolsas e auxílios é a mesma que deseja criminalizar vítimas de estupro, obrigando mulheres e principalmente meninas a seguirem adiante com uma gravidez. Para não ficar só em minhas palavras, em 2023, 12 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães no Brasil. Diante desses dados, deveríamos estar discutindo novas políticas de proteção às mulheres, jovens e meninas, não é? Se isso não for suficiente para chacoalhar a sociedade civil a reagir, o que resta acontecer então?

Enquanto você pensa sobre as perguntas inseridas ao longo da coluna de hoje, encerro com a indicação de “O conto da aia”, de Margaret Atwood. A dominação dos corpos das mulheres é a temática central que conduz o enredo, pois disso decorrem os desdobramentos da República de Gilead, cujo cenário não possui meios de comunicação nem universidades, nem direito à defesa e é dominado pelo poder militar que sentencia à morte os que emitirem qualquer opinião sobre o sistema. A autora canadense revelou em entrevista que a obra se refere a algum momento do passado, também do presente e, infelizmente, do futuro. Quando observamos a História, constatamos que a luta das mulheres é uma constante. Sempre vão se levantar dominadores dos nossos corpos para nos acossar. Fico pensando se todas as mulheres do mundo sumissem por uma semana, deixando os homens responsáveis por lidar com o trabalho e os filhos. Só por uma semana. Mas isso é assunto para outro texto…


Kalina Paiva, professora do IFRN – Campus Natal-Central, é natural de Natal/RN. É autora de poesia e contos de terror. Gatilhos Poéticos (2022), Cantigas de amor e guerra (2023) são seus livros mais recentes. Membro da União Brasileira dos Escritores – Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN. É pesquisadora na área de Literatura, História e memória, e mídias.

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