Sheik do Bitcoin, avião da FAB e Bolsonaro: os bastidores dos pivôs do escândalo Damares-Marajó

Saiba quem é a família Hayashi, os barões evangélicos da Zion Church que estão de olho nas missões no arquipélago

Por Raphael Sanz, no DCM

É claro que o Arquipélado do Marajó, no Pará, assim como qualquer outro lugar do país (e do mundo), convive com crimes de todos os tipos e tem pessoas responsáveis pela prevenção, investigação e repressão dos mesmos. Mas a recente viralização de uma fake news sobre um suposto esquema endêmico de maus tratos e crimes sexuais contra crianças e adolescentes na região, impulsionada pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e barões evangélicos a ela ligados, se tornou um verdadeiro escândalo. E o fim da linha, é claro, é uma campanha de arrecadação por Pix.

O agora chamado ‘Escândalo Damares-Marajó’ tem uma série de “núcleos”: a própria Damares, que promoveu a entrada do chamado movimento “Abrace o Marajó” nos anais do governo Bolsonaro; os influenciadores digitais e suas respectivas agências que impulsionaram a viralização do vídeo da cantora gospel Aymée Rocha, que apresentou música sobre as supostas denúncias em show de talentos internacional; e a atuação da família Hayashi, os barões evangélicos que estão por trás da Zion Church, a igreja que promove as missões evangélicas na região, e do instituto Akachi, a ONG recém publicizada que está recebendo as doações. Nestas linhas vamos nos ater ao terceiro “núcleo”.

O programa, um show de talentos gospel internacional, é produzido pela UniCesumar em parceria com o Deezer e transmitido no canal da UniCesumar no Youtube. A instituição, por sua vez, teve como diretor executivo Tiago Stachon, que hoje é vice-presidente da Vitru Educação. Este último é um grupo empresarial que atua no mercado de Ensino A Distância (EAD) e em 2022 comprou a UniCesumar, tornando-se o principal da categoria no Brasil.

Na semifinal do Dom Reality em que Aymée emocionou os jurados, entre eles estava outra figurona evangélica: Mariana Valadão, irmã dos pastores Ana Paula e André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha. E vejam só a ironia do destino: a própria Igreja Batista da Lagoinha se envolveu, recentemente, num caso de estupro de vulneráveis.

A família Hayashi

Lucas Hayashi, que aparece ao lado de Aymée promovendo sua canção, é justamente o pastor que em setembro de 2023, após viagem ao Marajó, voltou alertando em alto e bom som que a ilha amazônica estava infestada de casos de abuso sexual de crianças. Um ano antes, em outubro de 2022, Damares dava seu grotesco discurso, em pleno culto evangélico, “denunciando” que as crianças no Marajó teriam os dentes arrancados para facilitar o sexo oral.

Mas a atenção sobre o arquipélago paraense começou bem antes. Há registros de 2019 sobre os interesses da Zion Church, da família Hayashi e de Damares Alves sobre o Marajó. Naquele ano, Lucas Hayachi gravou um vídeo à bordo de avião da FAB (Força Aérea Brasileira), supostamente cedido pelo governador Helder Barbalho, para fazer uma vistoria no arquipélago. Na narração, o pastor deixa bem claro que está lá para colaborar com Damares, com o governo Bolsonaro e com o movimento Abrace o Marajó.

Zion Church é liderada por Junia e Teófilo Hayashi – irmão do pastor Lucas Hayashi. O clã ainda conta com a mãe deles, Sarah Hayashi. A matriarca recebeu em 2022, direto das mãos de Damares, a Medalha da Ordem do Mérito Princesa Isabel, criada pelo ex-presidente inelegível como uma das maiores honrarias da República (e devidamente extinta pelo ministro Silvio Almeida em 2023).

Damares entrega a Medalha da Ordem do Mérito Princesa Isabel a Sarah Hayashi, da Zion Church. Créditos: Divulgação.

A igreja, por sua vez, foi fundada no continente africano pelo bispo Engenas Barnabas Lekganyane, em 1910, e professa uma doutrina autodenominada “cristianismo sionista”. Os adeptos acreditam na vida, ascensão aos céus e retorno de Jesus Cristo à Terra e que, quando isso ocorrer, o povo hebreu finalmente terá retornado à sua terra natal e haverá um reino de mil anos em que os fieis governarão o mundo.

A versão brasileira da instituição religiosa funciona como uma espécie de franquia da original. Nos últimos anos, a Zion Church se transformou numa das maiores do mercado gospel brasileiro. É também uma das organizadoras do The Send, um evento que mistura o ideário de extrema direita com esse evangelismo típico dos EUA professado pela instituição. Foi num The Send que Bolsonaro teria “se convertido” a Jesus Cristo.

Bolsonaro recebe oração no The Send. Créditos: Reprodução/Instagram/Dayse Barbosa

O The Send, por sua vez, também tem relações com o grupo Jocum, que reúne missionários evangélicos que foram expulsos da região amazônica pelo Ministério Público Federal em 2016. A razão da expulsão: um documentário mentiroso e amplamente repercutido por Damares ao longo dos anos que denúncia uma suposta cultura de infanticídio entre os povos indígenas da região. Anos depois, em 2020, Damares tentaria levar dois missionários do grupo a uma aldeia do povo Suruwahá, mas o MPF não permitiu.

O fim da linha: campanha de Pix

Recapitulando: pelo menos desde 2019 Damares Alves e seus aliados da Zion Church, Dunamis Movement, The Send e afins, vêm falando sobre os supostos casos de exploração sexual infantil no Marajó. As mentiras de Damares renderam até mesmo um processo do MPF quando ela declarou que as crianças teriam os dentes arrancados para facilitar o sexo oral. Depois da invertida, o tema saiu do radar.

A apresentação de Aymeé Rocha na semifinal do Dom Reality ocorreu em 15 de fevereiro e a viralização do seu vídeo – em que denuncia o suposto escândalo antes de tocar a música “Evangelho Fariseu – só viralizaria nas redes sociais 5 dias depois, na última terça (20), quando um verdadeiro tsunami de influenciadores digitais oriundos de 3 agências inundou a internet brasileira com as “denúncias”.

Na matéria publicada ontem na Fórum, apontamos que o principal fim da Zion Church é financiar missões evangélicas e dissemos que uma denúncia de que a população inteira de um enorme arquipélago nos rincões do Brasil seria conivente com um esquema hediondo de abuso infantil poderia ser um combustível e tanto para agregar tais doações.

É claro que não deu outra. Desde a última quarta-feira (21), uma ONG chamada Instituto Akashi tem coletando doações por Pix numa campanha em prol do “fim do sofrimento das crianças”. Pesquisando o CNPJ divulgado com a campanha, descobrimos que o registro data de 15 de setembro de 2020 – contrariando as próprias redes sociais da ONG que apontam o início das atividades em 2019 – e que a sede da associação privada fica em Pariquera-Açu, em São Paulo.

Além disso, o Instagram da entidade data de outubro de 2023 e o seu Twitter foi criado neste mês de fevereiro de 2024.

A família Hayashi não está no quadro de sócios, mas as ligações entre o “Instituto” e todo esse arcabouço político-evangélico-digital aparentemente são grandes. Além de uma infinidade de posts nas redes pedindo doações por Pix com chave no CNPJ da empresa, há também uma página de doações no site oficial do Instituto Akashi que tem sido amplamente divulgada desde a viralização. Ainda não sabemos qual é o total arrecadado desde quarta-feira (21).

Sheik do Bitcoin, a cereja do bolo

Francisleu Valdevino da Silva, conhecido como o “Sheik do Bitcoin”, se envolveu em fevereiro de 2023 numa polêmica entre o pastor Teófilo Hayashi e a famosa cantora gospel Priscilla Alcantara. O Sheik ficou famoso entre 2017 e 2018, quando a criptomoeda teve uma alta sem precedentes e ganhou o debate público. Ele teria ficado milionário com os investimentos.

Mais tarde, em novembro de 2022, seria preso acusado de roubar bilhões num esquema de pirâmide financeira envolvendo as próprias criptomoedas. Evangélico, ele possui fortes ligações com os barões da fé.

Pois bem, em fevereiro do ano passado, Priscilla Alcantara, que já era famosa antes de ser uma cantora gospel por ter trabalhado no SBT quando era criança, anunciou que deixaria de fazer músicas religiosas para tentar lançar sua carreira com músicas pop ‘seculares’. O anúncio da aclamada artista não agradou em nada a muitos desses barões da fé.

Entre os pastores que não pouparam críticas à artista estava Teo Hayashi e seu perfil com 700 mil seguidores no Instagram. Ele literalmente chamou a cantora de “apóstata” e se revoltou por conta da decisão da artista, que tinha liderado os “louvores do The Send”, evento que conta com a organização da Zion Church. O que mais irritou o pastor foi o fato de Alcantara ter feito uma apresentação na diabólica festa de Carnaval daquele ano.

Reprodução/X

A polêmica tomou as redes evangélicas e, em meio ao “fogo cruzado digital”, reapareceu o nome do Sheik do Bitcoin como um dos patrocinadores do The Send. Ele teria financiado o festival ainda em 2020, quando o evento foi promovido pela primeira vez e juntou mais de 150 mil pessoas em estádios como o Morumbi (São Paulo), Allianz Parque (São Paulo) e Mané Garrincha (Brasília).

O próprio App do The Send foi produzido pela Allgency, empresa do Sheik dos Bitcoins. Além disso, o especulador também teve uma sociedade com o pastor Silas Malafaia. Ambos criaram a AlvoX, empresa de marketing voltada para o mercado evangélico.

E mesmo sem que a organização do The Send tenha confirmado a relação comercial, a história caiu na boca do povo e os Hayashi tiveram de ouvir dos fãs de Alcântara perguntas sobre como se sentiam com “o maior esquema de pirâmide do país, que deu golpe de bilhões nos fieis da igreja, patrocinando seu evento”.

Lula está certo sobre Gaza e não é antissemita

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Por Glenn Greenwald

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo —indicado por Netanyahu— afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro Ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pela Folha, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Polk Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas —isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, todos as semanas. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza se trata de um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito —e, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século 21.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo – inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen – é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

(Transcrito da Folha de S. Paulo)