O lobby de Israel nos EUA, escancarado

Para discutir sobre Israel e Palestina, você precisa saber disso

Do The Intercept_Brasil

Como Israel garante o apoio multibilionário dos Estados Unidos, aconteça o que acontecer? Diante dos crimes de guerra do estado israelense contra os palestinos, você deve se perguntar por que os EUA seguem defendendo o país incondicionalmente. Foi unicamente por causa dos EUA, vale lembrar, que o Conselho de Segurança da ONU rejeitou a proposta brasileira de um cessar-fogo em Gaza esta semana.

Um documentário produzido pela Al Jazeera, que enviou um repórter infiltrado aos EUA em 2016, tem as respostas para sua pergunta – e elas são tão explosivas que a série acabou censurada por Israel. Agora, o Intercept mostra os episódios que não querem que você veja. 

A primeira explicação é simples. Dinheiro. Grupos de lobby pró-Israel irrigam campanhas de candidatos ao Congresso americano com centenas de milhares de dólares, sob uma única condição: que sigam à risca a propaganda israelense. 

Basta manter o lobby feliz para ser agraciado com rios de dinheiro e viagens luxuosas. Decepcione-o, por outro lado, e seu assento no Congresso provavelmente irá evaporar.

Os parlamentares que questionam o governo israelense não sofrem só com o fim do financiamento. A verdadeira punição é a perda do mandato. Isso porque o lobby imediatamente encontra um candidato favorável a seus interesses e bomba sua campanha até que ele vença as próximas eleições.

E os grupos pró-Israel têm encontrado um aliado improvável nessa missão: os evangélicos. Eles são extremamente antissemitas – acreditam que, no fim dos tempos, ou os judeus aceitarão Jesus ou serão merecidamente exterminados. Mas apoiam Israel, pois creem que os judeus precisam estar no controle desse território para Cristo voltar. 

É por conta do apoio que enxergam nos evangélicos no sul dos EUA que a Universidade de Tennessee, por exemplo, virou um alvo. Mais especificamente, os estudantes que apoiam o BDS, movimento pacífico pró-Palestina que pede, entre outras medidas, o boicote a Israel. 

Ali e em outros campi dos EUA, estudantes são monitorados e difamados como antissemitas. E o lobby vem tentando classificar como ódio aos judeus qualquer crítica a Israel. Opor-se ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que prometeu bombardear cada canto de Gaza – e tem cumprido a promessa – seria, portanto, antissemita.

Como cada vez menos jovens norte-americanos apoiam Israel, o país trata os estudantes do BDS como uma enorme ameaça. Até o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério de Assuntos Estratégicos se envolvem nas investidas contra eles. 

E, para isso, contam com outro braço amigo: a grande mídia. A estratégia é fazer amizade com jornalistas e enchê-los com pautas do interesse da propaganda pró-Israel (como o suposto antissemitismo nas universidades). 

O parceiro mais frequente nesta guerra de narrativas, segundo o democrata Jim Moran, é o jornal Washington Post. Ele afirma que um rabino o avisou que, se expressasse suas opiniões sobre o lobby israelense, seria o fim de sua carreira. “[Ele] insinuou que isso seria feito através do Post. Dito e feito, o Washington Post fez uma cobertura brutalmente editorializada e todos se alinharam”, contou.

Dito tudo isso, é importante ressaltar: o lobby por si só não é crime, nem aqui, nem nos EUA (você pode entender melhor o conceito aqui). A questão é a discrepância de forças em jogo. 

Israel comanda um dos lobbies mais poderosos do planeta enquanto mantém os palestinos de Gaza na maior prisão a céu aberto do mundo. Como poderia a Palestina, que sequer controla o fornecimento de água, comida e eletricidade a seu povo, bater de frente com o lobby do vizinho sobre o Congresso e a mídia da maior potência mundial?

Um lobby que dedica-se justamente a calar suas vozes e a fazer você esquecer que, muito antes do ataque condenável do Hamas, Israel já submetia os palestinos a um estado de apartheid. E é dessa forma que o lobby propaga pela mídia mundo afora a tese de que age agora apenas em autodefesa, enquanto promove um genocídio. 

Lembremos mais uma vez das palavras de Netanyahu: “Vamos transformar Gaza numa ilha deserta. Aos cidadãos de Gaza, eu digo: vocês devem partir agora”. Como se o anúncio já não fosse grave, ele bombardeou repetidamente os civis que tentavam partir.

Nenhuma dessas ações mudou a posição dos EUA, país afeito a suas próprias vinganças sangrentas, vale destacar. E, agora, você pode entender por quê. Corra para o nosso site, onde já estão disponíveis os três primeiros episódios de “The Lobby – USA”, e fique sabendo o que querem esconder de você.

Os donos da água: 50 empresas podem usar mesma quantidade que metade do Brasil

Levantamento inédito mostra quem são os grupos empresariais que têm direito de captar 5,2 trilhões de litros por ano

Da Agência Pública – texto: Rafael Oliveira; edição: Giovana Girardi

Em todo fim de ano, é certa alguma campanha televisiva pedindo para que os consumidores brasileiros economizem água. Fechar a torneira ao escovar os dentes, reduzir o tempo de banho e não lavar a calçada são apresentados como soluções para evitar desabastecimento. “Água: sabendo usar, não vai faltar”, diz o slogan de uma concessionária de saneamento público. Não é no consumidor final, porém, onde está o maior consumo. Levantamento inédito feito pela Agência Pública revela quem de fato são os “donos” da água no Brasil.

Em meio ao rápido avanço dos impactos das mudanças climáticas e do desmatamento na oferta de água – como mostra a histórica seca na região amazônica deste ano –, o que encontramos surpreendeu até mesmo pesquisadores do tema: os 50 grupos empresariais que têm direito a usar mais água de fontes federais no Brasil concentram nada menos do que 5,2 trilhões de litros por ano. É água suficiente para abastecer, por um ano, 93,8 milhões de pessoas — isso representa mais de 46% da população brasileira, se considerarmos dados do Censo 2022.

A lista inclui gigantes do agronegócio, do setor sucroalcooleiro e do papel e celulose, entre outras companhias, que pouco ou nada pagam para captar os trilhões de litros que são base para seus negócios. As empresas estão espalhadas por 139 municípios de 19 estados brasileiros nas cinco regiões do país, sendo que mais da metade da água autorizada está concentrada em Minas Gerais, Bahia e São Paulo.

O direito dessas empresas para usar a água é chamado de outorga, licença que é concedida pelos órgãos públicos para captação em fontes superficiais, como rios e lagos, e subterrâneas, como aquíferos. Para esta reportagem, consideramos apenas as outorgas federais, concedidas pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).

O volume médio de cada uma das autorizações analisadas é de 7,6 bilhões de litros. Isso é suficiente para abastecer uma cidade como Balneário Camboriú (SC) por um ano. Só em 2022, foram outorgados 1,3 trilhões de litros, um salto de 65% em relação ao ano anterior.

O levantamento inédito foi feito pela Pública com base em dados abertos da ANA referentes a outorgas em corpos hídricos de domínio da União – aqueles que estão em área de fronteira ou que se estendem por mais de um estado. Não foram incluídos, portanto, os de controle estadual. A autarquia tornou as informações públicas após recurso feito pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada no acesso a informações públicas. 

Foram selecionadas pela reportagem apenas as outorgas de captação de recursos hídricos, tanto de direito de uso quanto as preventivas (que reservam água para grandes projetos em fase de planejamento). Leia mais sobre a metodologia no fim do texto.

Imagem aérea de pivôs centrais de irrigação de água no oeste da Bahia
Pivôs centrais de irrigação de água no oeste da Bahia; mais da metade da água autorizada está concentrada em Minas Gerais, Bahia e São Paulo

Maior outorga poderia abastecer Amazonas inteiro duas vezes

Uma das maiores autorizações constatada pela reportagem foi concedida em uma das regiões banhadas pelo rio Amazonas que está sofrendo com uma das piores estiagens do registro histórico. Em dezembro do ano passado, a ANA concedeu uma outorga preventiva para a empresa de energia Eneva, que tinha a intenção de consolidar um projeto de exploração de gás natural em Itacoatiara (AM). A cidade, a 250 km de Manaus, registrou na semana passada a pior seca desde o início das medições. 

A outorga preventiva funciona como uma reserva para a empresa enquanto ela faz os estudos necessários para o empreendimento. O montante autorizado foi de 438 bilhões de litros por ano, a maior outorga única em volume no período analisado pela reportagem. É água suficiente para abastecer o equivalente a duas vezes a população do Amazonas inteiro por um ano.

Procurada pela reportagem, a empresa de energia, que tem como principal acionista o banco BTG Pactual, respondeu que a outorga “não está em curso e nem será utilizada”, e que o pedido foi feito “para avaliar o atendimento a um projeto em estudo e que não foi desenvolvido”. Até o fechamento desta reportagem, porém, a autorização seguia ativa na base da ANA.

A Eneva disse também que “frisa o seu compromisso com princípios e valores focados em conscientização e reutilização dos recursos hídricos, o cumprimento com rigor dos requisitos operacionais e legais previstos em outorga, monitorando a vazão captada e realizando todas as análises legais de qualidade da água, tanto na entrada quanto na saída das operações”. Confira a íntegra da resposta.

A autorização vultosa para a Eneva e o montante que as 50 empresas somam contrasta com o fato de que cerca de 32 milhões de brasileiros (15,8% da população) não têm acesso a água tratada e ao menos 91,3 milhões (45% da população) não têm esgotamento sanitário, segundo dados de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).

Entre 2010 e 2022, o Atlas dos Desastres contabilizou mais de 14 mil ocorrências de secas e estiagens no Brasil, com 121,5 milhões de afetados, incluindo 118 mortos. Os prejuízos desses eventos de seca, de acordo com a ferramenta ligada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, beiraram os R$ 217 bilhões no período.

“Teoricamente, a Lei 9.433/1997 [que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos] define como prioridade o abastecimento de águas para as pessoas. Há uma distorção: por um lado, uma desigualdade no acesso a água; por outro essa garantia de outorgas muito significativas para algumas empresas em termos de volume”, aponta Paulo Sinisgalli, pós-doutor em gestão de recursos hídricos e professor associado da Universidade de São Paulo (USP).

A escassez leva a disputas. Nos últimos dez anos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 2.447 conflitos por água, com 20 assassinatos. “Se antes era a terra, agora eles querem a terra, [a água do] subsolo e da superfície, o ar, o sol… A gente tem dificuldade de entender minimamente com quem estamos lidando. E o aumento do número de conflitos revela que há uma insuficiência da resposta organizada. Existem algumas resistências locais, mas com muita dificuldade de contar com o Estado nos diversos níveis”, relata Ruben Siqueira, assessor da CPT na Bahia. 

Critérios de outorga são alvo de críticas

Para conceder uma outorga, de acordo com os especialistas ouvidos pela Pública, é levada em consideração a quantidade de água requerida e a disponibilidade hídrica da bacia em questão, de acordo com critérios que variam por região. A partir daí, é definida quanta água pode ser entregue para quem está requerendo.

Os critérios adotados, porém, são alvos de críticas, já que não consideram a variação da disponibilidade e não é raro que os índices de vazão utilizados estejam desatualizados. “O modelo de outorga atual provavelmente vai causar conflitos pelo uso da água. Precisa ser pensada uma mudança na concepção da própria outorga, de uma forma mais integrada. Não olhar só a quantidade de água, mas de onde está tirando e como está tirando. Ou seja, pensar no sistema hídrico junto das dinâmicas de uso e ocupação do solo, levando em conta as mudanças climáticas, que vão forçar novas adaptações”, aponta Sinisgalli.

Para o doutor em ciências florestais e diretor executivo do Instituto Cerrados, Yuri Salmona, que vem investigando o impacto do desmatamento e das mudanças climáticas na vazão dos rios do Cerrado, os longos prazos de validade das outorgas, que chegam a 20 anos, também são um problema do sistema atual de concessão de água. 

“A outorga tem que ser condicionada à saúde hídrica da bacia hidrográfica. Fazer isso [conceder por prazos extensos] sem ter um monitoramento perfeito é um problema de gestão óbvio. Não dá para a gente aceitar as outorgas como são. Se tem hidrômetro na tua casa, por que que não tem um para [monitorar] as outorgas?”, questiona.

Salmona é  um dos autores do estudo que mostrou que o Cerrado já perdeu 15% de sua vazão de água e pode perder 34% até 2050. De acordo com o trabalho, 56% da redução é resultante do desmatamento do bioma, enquanto 43% é relacionada às mudanças climáticas. 

Atualmente, a lei prevê a cobrança pelo uso da água em cada bacia hidrográfica, mas isso depende de uma série de condicionantes, inclusive a formulação de um plano de bacia e o estabelecimento de um comitê de bacia, passos que têm sido dados de maneira lenta no país. A arrecadação da ANA com a cobrança pelo uso da água nas bacias federais rendeu apenas R$ 103 milhões em 2021 – cerca de 1,7% da receita líquida da Eneva no ano passado.

“É muito pouco, quando consideramos os mais de 5 trilhões de litros por ano [concedidos nas outorgas], ressalta Paulo Sinisgalli. “Um dos objetivos de cobrar quem tem outorga é racionalizar o uso, mas [hoje a cobrança] não é suficiente para otimizar o processo, então as empresas preferem pagar a melhorar a eficiência do uso da água. Se a gente cobrasse mais, as empresas iam cuidar melhor da gestão da água. E teríamos mais recursos para poder investir no monitoramento, no controle e até mesmo na aplicação dos planos de bacia”, diz o professor da USP.

Agronegócio consome maior parte da água

Enquanto os municípios às margens do Rio São Francisco e de seus afluentes concentram a maior parte das ocorrências de seca e estiagem do país, as empresas do agronegócio estabelecidas ao longo da região hidrográfica do Velho Chico acumulam nada menos que 1,38 trilhões de litros de água em outorgas por ano. É água suficiente para abastecer toda a população de Bahia e Pernambuco juntas no mesmo período.

No setor, a campeã em uso da água é a Santa Colomba, que inclui três empresas do agronegócio, com foco em tabaco, grãos e café. Ao todo, o grupo empresarial possui 11 autorizações, que a permitem captar 302,2 bilhões de litros na cidade de Cocos, no oeste da Bahia. É água suficiente para abastecer a população dos 14 municípios mais populosos do estado. 

A empresa, fundada pelo engenheiro naval e ex-militar Fernando Prado, conhecido como “Comandante Prado”, também é uma das líderes na captação de água em bacias estaduais do Cerrado baiano, como mostrou reportagem da Pública em 2021. O latifúndio controlado pela empresa na região passa de 130 mil hectares, o tamanho de Feira de Santana (BA). 

No dia 16 de outubro, veio a público denúncia de um trabalhador rural negro que afirmou ao UOL ter sido despedido, algemado e trancado em um cômodo escuro para ser espancado por seguranças da Santa Colomba. A empresa foi procurada pela reportagem, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação.

No estado, ainda aparecem na lista de maiores detentoras de água outros três nomes do agronegócio, que somam autorização para captação de 235,4 bilhões de litros anuais. A segunda maior fatia foi concedida a Tiago Ferraz de Moraes Coelho, filho do dono do Grupo Aratu, conglomerado de mídia que a afiliada do SBT na Bahia faz parte. A família ainda inclui o tio Nilo Coelho (União Brasil), ex-governador da Bahia, e a irmã Ana Ferraz Coelho (Republicanos), que foi candidata a vice de ACM Neto ao governo do estado em 2022. 

Uma das fazendas da família já foi flagrada com trabalho escravo, em 2011. Tiago Coelho tem 120,3 bilhões de litros em outorgas de direito de uso e preventiva, água que abasteceria sete vezes a população de Camaçari (BA). 

Considerando todo o país, os grupos empresariais do agronegócio (sem contar companhias sucroalcooleiras, retratadas separadamente) detêm 1,74 trilhão de litros de água outorgados por ano. O montante equivale ao consumo dos habitantes de Minas Gerais e Rio Grande do Sul somados. São 19 empresas, muitas delas situadas nos cerrados baianos e mineiros, mas também em outros cinco estados, que vão de Roraima ao Rio Grande do Sul.

Cabeças de gado pastam em área verde na Amazônia
Grupos empresariais do agronegócio detêm 1,74 trilhão de litros de água outorgados por ano

Cerca de metade das outorgas para o agronegócio está em Minas Gerais. No estado, dez grupos empresariais do agro somam 858 bilhões de litros em autorizações para captar água dos rios federais no estado. O montante poderia abastecer toda a Bahia, Amapá e Roraima somados.

Para Yuri Salmona, a dinâmica atual de uso de água e da ocupação do solo pelo agronegócio não é sustentável e acaba por afetar as pequenas comunidades que estão no entorno das plantações. 

“O agronegócio precisa entender o seu papel na manutenção dos insumos que o mantém, e o principal deles é a água. Quando [um fazendeiro] pega água e joga na lavoura dele milhares de metros cúbicos em segundos, não dá tempo de retroalimentar a bacia de uma maneira sustentável. E não é compatível com a perenidade do modo de produção e do modo de vida das comunidades, que não vão conseguir sobreviver”, afirma.

Setor sucroalcooleiro acumula água suficiente para abastecer metade de São Paulo

O vice-campeão em volume de autorizações para captação de água no ranking formulado pela Pública é o setor sucroalcooleiro, que inclui companhias do setor de álcool, açúcar e etanol. Treze empresas, espalhadas por nove estados brasileiros, concentram quase 500 outorgas, com permissão para captar 1,24 trilhões de litros por ano. O montante equivale ao abastecimento de 22,3 milhões de brasileiros. A maior parte da água outorgada a empresas do setor se concentra em São Paulo. São 580,8 bilhões de litros, quase 50% do total. 

Várias das companhias sucroalcooleiras “donas” da água acumulam histórico de denúncias socioambientais. Quem puxa a fila é a BP Bunge, união dos negócios de bioenergia e açúcar dos grupos BP e Bunge no país e dona de várias usinas espalhadas pelo Brasil. A empresa tem outorgas para captar 185,2 bilhões de litros anuais, água suficiente para abastecer toda Belo Horizonte (MG) e São Luís (MA) somadas.

Em março deste ano uma megaoperação resgatou 212 trabalhadores em condições análogas à escravidão do plantio de cana-de-açúcar de uma terceirizada em Goiás que prestava serviços para a BP Bunge. Na ocasião, a empresa disse em nota “repudiar qualquer prática irregular relacionada à saúde e segurança do trabalhador” e que “não compactua com situações que exponham as pessoas à condição degradante de trabalho”.

Em resposta à Pública, a BP Bunge afirmou que “todas as outorgas que a empresa possui referentes ao uso de recursos hídricos são concedidas pelos órgãos competentes, portanto regularizadas, e que o volume de consumo segue os limites por elas determinados”. Além disso, destacou medidas ambientais tomadas pela companhia, incluindo “uma regressão de 8% no volume de água captada para as operações industriais”. Confira a íntegra do posicionamento.

Entrada de uma das instalações da empresa Bunge alimentos. Ela pode captar cerca de 185 bilhões de litros de água anuais
BP Bunge tem outorgas para captar 185,2 bilhões de litros anuais

Outra empresa do setor que teve o nome associado a um flagrante de trabalho escravo é a Usina Coruripe, que tem unidades espalhadas em Minas Gerais e Alagoas e acumula 72,2 bilhões de litros anuais em outorgas. A sucroalcooleira, que é fornecedora da Coca-Cola e do Posto Ipiranga, arrendava as fazendas em que houve o resgate de 19 pessoas no ano passado. Um dos trabalhadores acabou morrendo por conta de uma infecção contraída na fazenda da Coruripe, que é parte do Grupo Tércio Wanderley. 

A usina não atendeu aos pedidos de posicionamento feitos pela reportagem, mas no ano passado, após as denúncias, divulgou nota dizendo que “pratica tolerância zero com esse tipo de conduta e, por isso, tão logo tomou conhecimento dos fatos, rescindiu os contratos com as empresas fornecedoras em situação irregular”. 

Também se destaca no setor a Raízen Energia, parceria da Shell com a brasileira Cosan, que já figurou na Lista Suja do Trabalho Escravo. Maior empresa do setor sucroalcooleiro do país, a Raízen possui outorgas para captar 115,3 bilhões de litros por ano em Minas Gerais e São Paulo. 

O atual CEO da companhia é Ricardo Mussa, que entre 2007 e 2013 esteve à frente da Radar Propriedades Agrícolas. A gestora de terras é uma joint venture entre a Cosan e a TIAA, que gerencia fundos de pensão bilionários de professores e servidores públicos dos Estados Unidos. O período de Mussa no comando da Radar coincide com a época em que a empresa comprou terras de acusados de grilagem no Brasil e atuou para driblar a legislação brasileira, como denunciou a Pública em parceria com a OCCRP. 

Em resposta aos questionamentos da reportagem, a assessoria de imprensa da Raízen e da Cosan disse que “a empresa realiza constantes estudos de corpo hídrico para que a captação de água seja compatível com a disponibilidade do recurso, ocorra de forma sustentável e tenha embasamento técnico”. Destacou também uma série de medidas que teriam sido tomadas para mitigar o impacto da utilização de água, como a “[economia] de 1 bilhão de litros de água” na última safra e uma política de águas e recursos hídricos.

Em relação à denúncia sobre a Radar, a Cosan afirmou que “não compactua com práticas irregulares e que sua atuação em gestão de terras, a partir de suas controladas, é pautada em protocolos rígidos e que respeitam a legislação fundiária vigente no Brasil”. Já sobre a presença da Cosan na Lista Suja por determinado período, a empresa afirmou que na época dos fatos, quando tomou ciência da situação, regularizou a situação dos trabalhadores e descredenciou a empresa terceirizada responsável. Leia a íntegra dos esclarecimentos.

Celulose de bilhões

Nas bacias de domínio federal, nenhum grupo empresarial consome mais água do que a Suzano, uma das maiores produtoras de celulose do mundo e uma das líderes globais no mercado de papel. A holding, que inclui a Suzano Papel e Celulose – fundida desde 2018 com a Fibria, então líder de mercado – e a Veracel Celulose, acumula 469,8 bilhões de litros por ano em 59 outorgas espalhadas por oito estados de quatro regiões. 

A água autorizada para captação e uso na indústria, na agricultura e em outras finalidades pela empresa seria suficiente para abastecer as populações das capitais Rio de Janeiro (RJ) e Manaus (AM) juntas.

Mas autorizações de captação de água não são a única coisa que a Suzano acumula. Além de 1,4 milhão de hectares de eucalipto plantado – uma área maior que as Bahamas –, a empresa fundada por um imigrante ucraniano há quase 100 anos também coleciona denúncias de violações trabalhistas. 

A lista inclui queixas de funcionários de falhas sanitárias, que chegaram a entrar em greve para pedir melhorias, até o arrendamento de parte de uma fazenda flagrada com trabalho escravo. Já na seara socioambiental, a holding tem um histórico de conflitos com comunidades quilombolas e tradicionais, em especial na Bahia e no Maranhão, estados que concentram quase um quarto da água outorgada à empresa. As queixas dos moradores locais incluem uso indiscriminado de agrotóxicos, contaminação de rios e grilagem.

No ano passado, 40 ONGs denunciaram as violações da companhia ao International Finance Corporation (IFC), exigindo que o braço do Banco Mundial vetasse um empréstimo bilionário pleiteado pela empresa para a construção de uma planta em Ribas do Rio Pardo (MS). O empréstimo, de mais de R$ 3,6 bilhões em valores atuais, foi concedido.

Imagem aérea das instalações da produtora de celulose Suzano. A empresa é a que mais consome água nas bacias de domínio federal
A produtora de celulose Suzano é a empresa que mais consome água nas bacias de domínio federal

Em respostas aos questionamentos da Pública, a Suzano destacou que em suas unidades industriais “cerca de 85% da água captada é recirculada dentro do próprio processo produtivo antes de ser tratada e devolvida ao meio ambiente” e que tem a meta de “aumentar a disponibilidade hídrica em 100% das bacias hidrográficas consideradas críticas e reduzir em 15% a água captada nas operações industriais, até 2030”.

Em relação às denúncias trabalhistas, a empresa afirmou que “inexiste qualquer investigação em curso em que tenha sido identificado trabalho análogo à escravidão em quaisquer de suas operações” e que a situação mencionada ocorreu em propriedade de terceiro “em área não arrendada pela empresa e que em nada se relacionava com sua operação”. Disse também que “a ausência de relação da Suzano com a ocorrência foi prontamente observada pelos órgãos de fiscalização do trabalho”. 

A empresa afirmou ainda que a operação junto ao IFC “foi precedida por uma extensa due diligence”, o que “reforça os aspectos socioambientais relevantes do projeto”. Leia a íntegra das respostas. As empresas do setor de papel e celulose listadas no recorte feito pela Pública acumulam 977,1 bilhões de litros anuais. O montante é o suficiente para abastecer diariamente uma população de 17,6 milhões de pessoas, o equivalente à população de São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) somada.  Apesar de avanços de produtividade nas últimas décadas, o setor segue sendo um dos que mais consome água em sua produção.

A lista de empresas do setor conta ainda com a Jari Celulose, que tem uma outorga para captar 109,5 bilhões de litros em Vitória do Jari (AP). No município a empresa foi condenada a diagnosticar a saúde da população por conta da poluição oriunda de sua fábrica. 

Originada de um projeto megalomaníaco de um empresário americano, a empresa acumula quase 1 milhão de hectares e tem um histórico de dívidas, chegando a ter sua produção paralisada nos últimos anos. 

Além disso, também acumula multas ambientais milionárias e um histórico de desmatamento e grilagem ligado ao seu braço madeireiro, a Jari Florestal, como já contou reportagem da Pública. A companhia tem como principal sócio o empresário Sergio Amoroso, dono do Grupo Orsa, do mesmo setor, e ainda presidente do Graacc e um dos fundadores da WWF do Brasil.

Em nota, o Grupo Jari informou que “dispõe de uma política de uso racional e responsável dos recursos hídricos” e que “o consumo máximo dentro de suas atividades industriais normais é de no máximo 88,5 bilhões de litros”. Disse ainda que, deste volume, cerca de 70% é devolvido ao meio ambiente “de forma responsável conforme os padrões estabelecidos por lei”.

Sobre as acusações em torno da Jari Florestal, o grupo informou que as atividades foram encerradas há quase uma década. “Essa interrupção se deu em razão da referida companhia ter sido severamente afetada por uma operação policial que ficou conhecida como ‘Operação Tabebuia’, a qual teve como objetivo identificar e reprimir quadrilhas que fraudavam planos de manejo junto aos órgãos de controle e cometiam crimes ambientais com a finalidade de explorar madeira ilegal”, disse a empresa.

“Ao final do inquérito policial restou comprovado que a Jari Florestal jamais integrou qualquer quadrilha ou cometeu qualquer ato criminoso em busca de legitimar a exploração ilegal de madeira, tendo sido mais uma vítima de um grupo especializado em fraudar projetos de manejo com o qual a Jari Florestal, de total boa-fé, firmou mero contrato comercial de compra de madeira em pé”, complementou. Leia a nota na íntegra.

Por cerca de dois meses, a Pública tentou insistentemente conversar com técnicos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, mas nem os pedidos de entrevista nem a solicitação de esclarecimentos tiveram retorno por parte da autarquia. 

Todas as empresas e pessoas citadas nominalmente na reportagem também foram contatadas. Com exceção das respostas já citadas ao longo do texto, não houve retorno até a publicação. O espaço segue aberto para atualizações.

Confira a metodologia usada na reportagem

O cálculo de quantas pessoas poderiam ser abastecidas com o volume das outorgas considerou o consumo médio de 152,1 litros por dia por pessoa, que foi estimado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) em 2021. Para montar o ranking apresentado na reportagem, foram selecionadas as outorgas de captação de recursos hídricos, tanto de direito de uso quanto as preventivas (que reservam água para grandes projetos em fase de planejamento). Não foram incluídas as outorgas de lançamento (que tratam dos efluentes que serão lançados em corpos hídricos), nem aquelas que tinham como finalidade o abastecimento público, esgotamento sanitário, consumo humano, criação animal, obras hidráulicas ou sem finalidade definida. Além disso, foram excluídos os órgãos públicos, os distritos de irrigação e demais projetos de irrigação para pequenos agricultores, incluindo os promovidos por empresas privadas.

Cinesíforo*

Por Heraldo Campos (*)

Outro dia lembrei do Irmão Leonardo (Antonio Tagliaro), marista, físico, professor de matemática e geometria descritiva. Ele era um grande personagem, dos anos 60/70, do tradicional Colégio Nossa Senhora do Carmo, que fechou suas portas em 1971 na capital de São Paulo.

Na época do terceiro ano do colegial o Irmão Leonardo costumava levar aos sábados, para uma palestra para as turmas da medicina e da engenharia (o científico era dividido nessas duas modalidades), um ex-aluno marista que poderia ser um dentista, um médico, um engenheiro, ou outro profissional que tinha estudado na escola.

Essa era uma boa formula para estimular mentes e corações daqueles alunos que ao final do ano de 1971 e início de 1972, iriam prestar o vestibular pela primeira vez na escolha de uma profissão.

O Irmão Leonardo tinha essa percepção e já vinha fazendo isso há alguns anos, ao mesmo tempo em que aplicava testes nas aulas de matemática, de desenho e de física para ir treinando os alunos para o vestibular. Muitos desses testes de vestibulares anteriores constavam do livro de física de sua autoria, cuja capa lembra uma cena de filme do Flash Gordon. Muito legal. Até hoje.” [1]

Não sei por que cargas d’água, naquela época, o Irmão Leonardo vira e mexe usava a palavra cinesíforo em aula. Pode ser que estava citando essa enigmática palavra para explicar algum tipo de movimento na física ou coisa parecida. Nas edições mais antigas dos bons e velhos dicionários “Aurélio” e “Houaiss”, no formato livro em papel, cinesíforo não aparece nos verbetes.

Porém, pesquisando na internet, cinesíforo seria aquele que “produz o movimento” e tem uma curiosa crônica escrita em 1992 por Otto Lara Resende intitulada “Palavras inventadas” em que essa palavra é citada no texto, como no trecho: “Hoje, chauffeur virou chofer. Todo mundo já esqueceu que vem de chauffer, esquentar. E também se diz motorista, brasileirismo que se deve a Medeiros e Albuquerque. Mas o prof. Castro Lopes deu tratos à bola e criou a palavra cinesíforo, a partir do grego. Não pegou, mas ficou no ar, envolvido na aura de pilhéria que até hoje cerca o nome do seu criador. Melhor sorte teve com outros neologismos também saídos da caturrice de seu bestunto. Menu por exemplo virou cardápio.” [2]

Por outro lado, ao contrário, ocorreu quando o geólogo e geógrafo uruguaio Danilo Antón batizou de “Aqüífero Guarani”, o mega-reservatório de água subterrânea existente no CONE SUL, e que “colou” praticamente logo de cara, quando a denominação foi lançada nos anos 90 para a comunidade científica, num primeiro momento.

Esse aquífero, que supre parte da água para a população de quatro países como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai tem reconhecida, internacionalmente, sua importância fundamental e estratégica para as atuais e as próximas gerações.

“Os mananciais de águas subterrâneas têm importância essencial para a sobrevivência humana, pois constituem cerca de 95% da água doce disponível no planeta. Apenas 5% provêm de rios, lagos e represas. O Aqüífero Guarani, batizado com esse nome em homenagem à população indígena que habitava a Bacia Platina à época do descobrimento da América, é um dos maiores reservatórios de águas subterrâneas do mundo – com 50 mil km 3 de água doce armazenada.” [3]

E antes de encerrar, cabe aqui o registro desse trecho da canção da Zizi Possi “Per amore”, que fica como uma modesta lembrança ao Lemos (Antonio Carlos Primo Nalesso Lemos), geólogo, colega de trabalho, amigo, que resolveu deixar essa “longa estrada da vida” cedo demais: “Eu conheço o seu caminho, cada passo que você dará (Io conosco la tua strada, ogni passo che farai) / Suas ansiedades fechadas e as pedras vazias que você afastará (Le tue ansie chiuse e i vuoti sassi che allontanerai) / Sem nunca pensar que, como uma pedra, volto para você (Senza mai pensare che, come roccia, io ritorno in te)” [4]. O Lemos era um produtor de movimento, um condutor de boas ideias.

“O perigo de meditar é o de, sem querer, começar a pensar e pensar já não é meditar, pensar guia para um objetivo.” (Clarice Lispector).

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Fontes
[1] “O segredo de Leonardo”.
http://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2020/03/o-segredo-de-leonardo-cronica-de.html
[2] “Palavras inventadas”.
https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/6778/palavras-inventadas
[3] “Aqüífero Guarani já está mapeado”.
https://sbpcacervodigital.org.br/bitstream/20.500.11832/8370/1/BR_SPCMAIHSBPC_PUB
LIC_JC_JC_448.pdf
[4] Canção “Per amore”, do álbum do mesmo nome de 1997, composta por Mariella Nava.

*Heraldo Campos é geólogo (Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, 1976), mestre em Geologia Geral e de Aplicação e doutor em Ciências (Instituto de Geociências da USP, 1987 e 1993) e pós-doutor em hidrogeologia (Universidad Politécnica de Cataluña e Escola de Engenharia de São Carlos da USP, 2000 e 2010).