O jornalismo investigativo está morrendo. E agora?

Walter Cronkite anuncia na CBS a morte de John Kennedy, 22/11/63
Por André Forastieri
A reportagem não morreu, mas respira por aparelhos. A principal razão é a queda na receita de publicidade que a sustentava. A grana que costumava vir anunciantes foi desviada para outras atividades de marketing, principalmente para os cofres das gigantes digitais.
Outra encrenca é a crescente concentração de dinheiro e poder no planeta e Brasil. Os bilionários cada vez mais dão as cartas ou até compram as maiores grifes do jornalismo planetário.
Uma terceira é a crescente balcanização da nossa atenção em plataformas digitais separadas – quanto tempo você passa trancado dentro de apps? E pra fechar: a queda na credibilidade da grande imprensa junto ao público, em todo o espectro político.
E agora?
Para começar evitemos afirmações apocalípticas como “o jornalismo morreu”. Fujamos dos clichês tipo “partido da imprensa golpista”. Escapemos de teorias conspiratórias sobre o grande conluio da mídia com “o mal”, seja qual for “o mal”.
Cabe muita coisa debaixo do chapéu “jornalismo”, inclusive uma imensa variedade de jornalismo de serviços. Cabe muito conteúdo temático, segmentado. Cabe análise, opinião, jornalismo cidadão, fofoca e muito mais. Há muita diversidade, ainda que não muitos empregos ou bem-remunerados. O que tudo isso tem em comum: é mais barato produzir do que reportagem.
Reportagem é apuração, investigação, contextualização e furo. Exige muita experiência, fontes, tempo, esforço. Boa parte da energia investida frequentemente não gera resultados, mas isso não é desperdício: esse é o processo. Boa reportagem e alta produtividade não combinam.

Walter Mathau e Jack Lemmon no imortal “A Primeira Página”
Não que a reportagem esteja acima de críticas. Muito menos os repórteres. Sempre houve e haverão picaretas. Mas o conceito, crucial e relativamente recente, é fator fundamental para viver com algum nível de liberdade e justiça: que haja investigação permanente de todas as reentrâncias da sociedade, independente dos três poderes.
Donde que políticos e poderosos em geral apreciam jornalismo com moderação. Preferem propaganda. E detestam reportagem, principalmente quando estilingada em suas eventuais vidraças sujas.
Os fiscalizados não sentirão tanto a falta de repórteres nos seus calcanhares. Mas nós sentiremos, cidadãos de sociedades acostumadas com a potência fiscalizatória, civilizatória, imperfeita da reportagem.
Em muitos lugares ela já desapareceu. Cresci no interior de São Paulo nos anos 70 em uma cidade com menos de 200 mil habitantes. Tinha dois jornais diários e um semanal. Não sobrou nenhum.
É a regra para cidades do interior. Também acabou o jornal de bairro. Quem nesses lugares vai fiscalizar as negociatas do vereador com o empreiteiro, quem vai apontar a ausência da roupa nova do prefeito?
Sim, tem muita gente postando a cada minuto nas redes. Mas post não é reportagem. Nem este que lês neste momento. Muito menos se genérico ou histérico. Lacração, meme, sinalização de virtudes ou aplauso acrítico não substituem apuração.
Em qualquer assunto que você queira escolher, a maioria acachapante dos youtubers e tiktokers e blogueiros e top voicers e creators e autores de newsletters (“carteiros?”) tendem a uma postura leniente, colaborativa com seus potenciais patrocinadores. Porque não fariam assim?
Os grandes veículos estabelecidos também cada vez mais são reféns de suas novas necessidades de financiamento. Todos têm seus B.O.s, sejam corporações influentes ou CEO de MEI conteudista.
Pululam sites sobre finanças que recomendam prioritariamente os produtos do banco que paga os salários da redação. O branded content multiplataforma produzido por excelentes profissionais faz greenwashing de quem provoca o Aquecimento Global. O evento do portal lucra com patrocinadores que deveria investigar.

Bari Weiss e o senador, Ted Cruz, em evento da sua “imprensa livre”, patrocinado pelo Uber e pelo X, de Elon Musk
É superficial procurar responsabilidades individuais. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato. A encrenca é estrutural.
São cada vez mais raros os veículos capazes de financiar reportagem e peitar as tretas que frequentemente a acompanham. Porque a pressão vem forte, às vezes acompanhada de processo. Jornalista independente escreve pisando em ovos. Tomo um cuidado danado para não tomar processo com o que escrevo aqui. Não tenho uma empresona por trás pra me defender.
É melancólica a situação no Brasil e em todo lugar. Inclusive onde há tradição de excelente reportagem, o Reino Unido. Lá até a veneranda BBC, que não depende de anúncio, tem dado show de colaboracionismo com o que há de mais retrógrado no país.
E inclusive onde ainda temos a mais milionária imprensa do planeta, os EUA. Tem sido impressionante acompanhar a derrocada da reportagem por lá. Os maiores veículos deixam os rabos à mostra, de tanto que se curvam para bullies poderosos e bilionários.
Um estridente prego no caixão da reportagem americana é a ascenção de Bari Weiss à direção de jornalismo da CBS. A rede é o padrão ouro em reportagem televisiva no país – e antes, reportagem radiofônica.

É a casa do lendário Ed Murrow, que você talvez tenha visto em “Boa Noite e Boa Sorte”. O filme foi dirigido por George Clooney, que agora e em boa hora vive o repórter na Broadway. Da CBS saíram programas lendários como Face The Nation e 60 Minutes, que literalmente inventaram seus formatos e seguem influentes há mais de meio século. Lá fez história Walter Cronkite, o ideal platônico de âncora” De Mike Wallace, Morley Safer, Dan Rather, Katie Couric. Escolinha de caras como Anderson Cooper. E a lista segue.
Bari Weiss fez fama denunciando o wokismo do “The New York Times”. Fez a cama com newsletter financiada pelo Silicon Valley, The Free Press, panfleto libertário-isentão anti-Democratas & progressistas. Faz agora fortuna vendendo seu business para os Ellison, novos donos da CBS e Paramount. Preço: R$ 150 milhões.
Ms. Weiss vai integrar The Free Press à CBS News e comandar toda a estrutura de jornalismo da emissora, respondendo diretamente para David Ellison, CEO da corporação. Bari passou pelo Wall Street Journal e The New York Times, nunca na reportagem. Nunca trabalhou com hard news. Nunca liderou uma redação. E The Free Press nunca deu dinheiro.
David promete revolucionar os negócios de entretenimento e jornalismo com a expertise tech da empresa da família. Larry Ellison, seu pai, é o fundador da Oracle e um dos homens mais ricos do mundo. Está entre os maiores doadores para Israel e é muito próximo de Benjamin Netanyahu.
Desde que David assumiu, a CBS demitiu Stephen Colbert, suspendeu Jimmy Kimmel e fechou acordo judicial milionário para fazer as pazes com Donald Trump. Um artigo sobre a ascenção de Bari a czarina da CBS News cita o republicano Frank Luntz: “ela fala com um centésimo de 1% dos americanos, mas eles a ouvem.” “Eles” são Bezos, Musk, Zuckerberg, Thiel.

Bari Weiss com Peter Thiel
Não é que The Free Press não critique nunca a ultraelite dos EUA. Só que essas raras ocasiões são gotas num oceano de matérias denunciando as mínimas falhas e contradições do campo oposto, frequentemente transformadas em máximas.
Não publicar mentiras é diferente de não mentir. É má reportagem aquela que não dá à verdade o espaço que a verdade exige. Ou pesar a mão nas opiniões de um lado só. Você pode conferir pessoalmente na cobertura do massacre em Gaza. Trata-se de militância camuflada em imparcialidade.
Mas será que a reportagem em geral está mesmo em risco? Para ficar nos citados Estados Unidos e Reino Unido, a contradita dos otimistas é sempre lembrar o sucesso de The New York Times e Guardian.
Só que ambos são dificílimos de imitar. Além do prestígio secular, são os principais jornais de duas capitais riquíssimas e lidos nos cinco continentes. Detalhe: os principais fatores para o assinante renovar sua assinatura digital do NYT são os games e as receitas de comida, nessa ordem.
Quanto ao Guardian, é propriedade de um truste sem fins lucrativos. Fora contar com a colaboração de muitos leitores mundo afora comprometidos com sua postura humanista, moderada, à esquerda da grande imprensa internacional. Por quinze dólares ao mês, é ótimo investimento.

Vale ressaltar que também no “campo progressista” a reportagem não vai bem das pernas. Nesse campo, sempre castigado pela pindaíba, o borderô para reportagem sempre foi pequeno. Com a popularidade das plataformas digitais, se multiplicam organizações e influenciadores que se dedicam ao opinol e gritaria, com pouca ou nenhuma investigação real.
Exceções se financiam com dificuldade, com apoios individuais, doações de ONGs, “grants”, campanhas. Cito uma que acompanho sempre, a Agência Pública, de onde saíram e saem reportagens vitais, que merece seu apoio. Há vários outros exemplos notáveis.
Sim, tem ótimos repórteres na grande imprensa. Sim, tem ótimos repórteres tirando leite de pedra em veículos alternativos. A reportagem resiste, mas resiste ocupando espaço cada vez menor no ringue, e apanhando à beça.
Seja quem estiver nas posições de poder – seja o poder público, econômico, cultural ou acadêmico, nos palácios ou na esquina – é crucial que enfrentem o poder da apuração rigorosa e da fiscalização fustigadora. Trabalho para profissionais na procura da verdade e veículos dispostos a uma boa briga.
Uns e outros precisam de dinheiro. E sem dinheiro, muitos veículos simplesmente fecham. Um levantamento do projeto Mais Pelo Jornalismo aponta que o Brasil tem hoje 2.352 veículos a menos que em 2014.
O que vem por aí? Fácil prever. A vida sem reportagem é regra na maior parte do planeta. Em muitas sociedades mundo afora, repórteres não têm vez ou voz. São censurados, presos, assassinados. No Brasil também não é o emprego mais seguro.
Os poucos países onde algum jornalismo investigativo prosperou por algum tempo estão abrindo mão dele. Seus cidadãos ainda não se tocaram quanto é importante para seu funcionamento decente um jornalismo competente e principalmente uma reportagem potente. E como é fundamenta garantir que eles sobrevivam e mais, floresçam.
Já dá pra ver daqui, 2025, o momento em que não haverá mais reportagem em lugar nenhum. Ou será tão pouca que pouca diferença fará. Há quem sonhe com esse mundo, quem invista para acelerar sua chegada, quem ganha se ele vencer – como Bari Weiss. Você não vai querer viver lá.
O que fazer? Seja o que fôr, é bom fazermos rápido.